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A verdade ainda que tardia – II

Maria Cláudia Badan Ribeiro

Tradução:

Com um prazo de dois anos para apresentar um relatório final (que deve ser entregue em maio de 2014), e abrangendo o período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988 a Comissão da Verdade visa mapear arquivos, localizar documentos, sistematizar informações e esclarecer o período do regime militar no Brasil.

Maria Cláudia Badan
Maria Cláudia Badan RibeiroA Comissão da Verdade fez recentemente um apelo à sociedade brasileira para a entrega de acervos privados. Dois acontecimentos recentes demonstraram que ex-militares mantinham em suas casas, documentos valiosos sobre o paradeiro de mortos e desaparecidos.?? Na residência do coronel Miguel Molina Dias, comandante do Destacamento de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) assassinado no início do mês de novembro de 2012, foi apreendido pela polícia uma cópia do registro oficial da prisão do ex-deputado Rubens Paiva no Destacamento de Operações e Informações DOI-CODI, RJ,em 1971,até então considerado “desaparecido” pelo governo 13.

Na fazenda do ex-policial do DOPS Tácito Pinheiro Machado, em Jaborandi,interior do estado de São Paulo, foram encontradas 11 fichas referentes a pessoas detidas pelo órgão14. Um ano antes, um arquivo secreto do DOPS foi encontrado abandonado num prédio da Polícia Civil na cidade de Santos (SP). Constavam no local documentos que espionavam cerca de 45 000 pessoas relativos aos anos de 1943 a 1982 15.

Jair Krische no Movimento de Justiça e Direitos Humanos

Novos documentos lançaram luz também quanto à participação do Brasil na Operação Condor. Jair Krischke do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Brasil, com base em documentos recentemente encontrados, afirmou que as operações militares passaram a ser realizadas na região por agentes brasileiros a partir de 1970 e ainda durante o governo de Emilio Garrastazu Médici (1969-1974) contrariamente ao que se sabia 16. As ditaduras trocavam informações, prisioneiros e coordenaram assassinatos em operações clandestinas sem respeitar às normas internacionais e diplomáticas. Aquela operação, como ele diz, desde 1970 não tinha existência formal, mas física, e operava uma ação da rede internacional dos militares com apoio de diplomatas que haviam montado um sistema muito eficaz de espionagem 17.
A se considerar a farta documentação produzida no exílio brasileiro dando conta dos acordos econômicos que determinavam a vigilância no Cone Sul podemos também entender os gastos em Segurança Nacional e com formação de quadros, em zonas consideradas estratégicas para a política econômica do governo 18. Em 1964 os militares da Escola Superior de Guerra chegaram a se referir à existência de fronteiras ideológicas na América Latina. Os treinamentos ocorreram tanto no exterior ? na Escola das Américas ? como no Brasil, já é de conhecimento público, por exemplo, que em Manaus, se instalou em 1967 o CIGS, Centro de Instrução de Guerra na Selva, comandando pelo coronel Jorge Teixeira de Oliveira, que treinaria inclusive militares chilenos e cujos “formandos” atuariam anos depois na região do Araguaia. Era neste momento exato que estava sendo instalada a Zona Franca de Manaus na região, e que o governo militar se lançava na construção da Transamazônica, obra “faraônica” utilizada para a legitimação do regime e de sua política econômica.
Aviões fretados de multinacionais serviam para levar a Polícia Federal (junto a agentes do Departamento de Produção Mineral -DNPM e da Fundação Nacional do Índio- FUNAI) para prender garimpeiros em Rondônia, deixando espaço livre para as empresas multinacionais (exploradoras de minérios e madeira) se implantarem na região 19. O antigo Departamento de Estradas de Rodagem (DNER), por exemplo, serviu como um centro de torturas e era conhecido como a Casa Azul.
Massacre indígena praticado por colonizadores portugueses. Nada Mudou
Na política ditatorial de abrir estradas e integrar o território nacional, muitas tribos indígenas sofreram verdadeiros genocídios com remoções, envenenamento, e bombardeamento de suas aldeias, como ocorreu com os índios guarani-kaiowá 20.??Um vídeo encontrado por Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, no Museu do Índio (RJ), mostra que ditadura treinou indígenas a torturar.O filme “Arara” de Jesco Puttmaker mostra cenas da formatura da 1ª turma da Guarda Rural (GRIN) indígena realizada em 1970. O pau-de-arara, instrumento de tortura, aparece em desfile público na Cerimônia de formatura 21.
Está sendo investigada também, a vertiginosa redução dos povos indígenas waimiris-atroaris cuja população, segundo as estimativas dos especialistas, diminuiu em mais de 2000 durante a vigência do regime. Caso a Comissão da Verdade estabeleça a relação entre o regime militar e o desaparecimento dos waimiris, o número de vítimas da ditadura pode quintuplicar. Atualmente os documentos produzidos no Brasil indicam os militantes de esquerda, como os principais alvos da repressão no Brasil.
Há denúncias de que, no imediato pós-golpe, trabalhadores foram atirados em caldeiras no Nordeste. Muitos camponeses do Araguaia foram transformados, contra vontade e sob tortura, em guias das Forças Armadas. Pesquisas da CNV indicam pelo menos uma vítima (Elmo Correia) foi envenenada pela distribuição do inseticida Aldrin na região e tenta-se responsabilizar o médico coronel Walter da Silva Monteiro, como o responsável pela aplicação de injeções letais nos militantes. Corpos eram jogados em cisternas, próximas ao alojamento dos oficiais no Araguaia, e apelidados de “casa da judiaria”, assim como a Usina de Itaipu também foi utilizada como um meio de se “desembaraçar” de corpos 22.
Quanto ao Araguaia, o Brasil foi condenado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) no início deste ano, pelo desaparecimento de mais de 60 pessoas entre os anos de 1972 e 1974, durante a Guerrilha do Araguaia. O trabalho da Comissão da Verdade vem sendo realizado com base em visitas e oitivas na região encontrando-se com indígenas e camponeses. A passagem da CNV estimulou, positivamente, a criação de uma Comissão própria dos índios da etnia Surui. De acordo com Maria Rita Kehl, ossuruis foram torturados para contribuir com os militares no combate à guerrilha. Além destas iniciativas, foram promovidos diversos encontros do Grupo de Trabalho do Araguaia, coordenado por Paulo Fonteles, com os moradores locais, que criaram a Associação de Torturados na Guerrilha do Araguaia. Em março deste ano, o Ministério Público Federal denunciou o Coronel de Reserva do Exército, Sebastião Curió Rodrigues pelo crime de “seqüestro qualificado”. Foi ele quem comandou as tropas que atuaram em Marabá (PA) em 1974.
Outros processos foram impetrados pelo Ministério Público contra notórios assassinos e torturadores. Foi feita denúncia criminal contra Dirceu Gravina e Carlos Alberto Brilhante Ustra por crime continuado e seqüestro qualificado do líder sindical Aluízio Palhano Pedreira Ferreira. Brilhante Ustra deverá depor na Comissão da Verdade sobre crimes de tortura cometidos sob sua responsabilidade enquanto era chefe do DOI/CODI (Destacamento de Operações de Informações -Centro de Operações de Defesa Interna), em São Paulo. Atualmente, o militar enfrenta dois processos na esfera civil. A Justiça pede que ele seja reconhecido nominalmente como torturador 23.

Guerrilheiros dados como desaparecidos
Guerrilheiros dados como desaparecidos

A Comissão da Verdade da Câmara de São Paulo convocará ainda o ex-ministro Delfim Netto para esclarecer o financiamento do regime militar no país, além de como a Oban (Operação Bandeirante) arrecadou fundos. Além disso, ela investigará as mortes do ex-reitor e educador Anísio Teixeira, que morreu em circunstâncias suspeitas no Rio de Janeiro 24, assim como a do ex-presidente da República João Goulart 25.
Outras investigações estão sendo realizadas pela Comissão com respeito ao Massacre da Chácara São Bento em Pernambuco 26, assim como a tomada de depoimentos de advogados de presos políticos, e de outros opositores do regime que estiveram presos e foram testemunhas de torturas infligidas a outras pessoas.
Espera-se, portanto, que a Comissão da Verdade, além de elucidar novos casos deste período represente, de fato, um avanço na luta pelos direitos humanos, e no aperfeiçoamento do processo democrático brasileiro. Pois como disse Rosa Cardoso, uma de suas integrantes, o regime militar, cometeu “violência infame”, agindo com mentira, dissimulação e cinismo. Fez parte também de sua natureza, todos os tipos de excessos como lavagem de dinheiro, carreirismos, sustentados sempre pela violência e censura de Estado.
Que a Comissão da Verdade, aprovada pelo Congresso, possa mobilizar a opinião pública para que a Lei da Anistia seja revista e a história seja contada às nossas crianças nas salas de aula.
Notas:

  1. Rubens Beyrodt Paiva foi um engenheiro civil e político brasileiro desaparecido durante o regime militar. Foi deputado federal por São Paulo, na legenda do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e participou da Comissão Parlamentar de Inquérito -CPI, criada na Câmara dos Deputados para examinar as atividades do IPES-IBAD (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – Instituto Brasileiro de Ação Democrática).
  2. Disponível em <http://www.istoe.com.br/reportagens/259689_DOCUMENTOS+SECRETOS+DA+DITADURA> Acesso: dezembro de 2012.
  3. O Ministério Público Federal em Santos instaurou uma investigação para apurar as razões que levaram um arquivo secreto do DOPS a ficar abandonado num prédio da Polícia Civil naquela cidade, já que um decreto de 1994 do governo paulista determinou que todos os papéis do DOPS fossem levados para o Arquivo do Estado.
  4. A versão oficial é a de que a Operação Condor foi criada em uma reunião de militares em Santiago, no Chile, em 1975, quando o Brasil teria enviado apenas observadores. Segundo as novas descobertas, e de acordo com Krischke, o Brasil foi o fundador da Operação Condor, cinco anos antes.
  5. Estima-se que a Operação Condor resultou em 400 000 torturados e 100 000 assassinados, segundo fonte publicada no Jornal Zero Hora em 2/11/2012.
  6. Tudo leva a crer que os decretos secretos assinados por Garrastazu tinham como intenção dar maior liberdade à Marinha, e estavam baseados justamente em acordos econômicos velados.
  7. A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) estava subordinada ao Exército. Seus principais dirigentes eram militares do alto escalão. Os sertanistas que atuavam junto aos povos waimiris foram treinados pelo 6º Batalhão de Engenharia na Construção do Exército, com sede em Boa Vista.
  8. Como vem a descobrir o Grupo de Trabalho sobre a Violação dos direitos humanos relacionados à luta pela terra e contra populações indígenas, por motivações políticas, coordenado por Maria Rita Kehl.
  9. A guarda rural indígena (GRIN) foi criada em 1969. Reunindo 84 índios das etnias xerente, maxacali, carajá, krahô e gaviões, tinha como objetivo, “criar a guarda indígena, para os próprios índios cuidarem de suas aldeias”. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1182605-como-a-ditadura-ensinou-tecnicas-de-tortura-a-guarda-rural-indigena.shtml>. Acesso: novembro de 2012.
  1. Aluízio Palmar, Onde foi que vocês enterraram os nossos mortos?, 4ed., Travessa dos Editores, Curitiba, 2012. Disponível em https://docs.google.com/viewer?url=http://www.documentosrevelados.com.br/wp-content/uploads/2012/04/Onde_foi_que_voces_enterraram_nossos_mortos.pdf
  2. Outras denúncias vêm sendo realizadas contra a condecoração pela Organização das Nações Unidas (ONU), de Ubirajara Ribeiro de Souza, terceiro sargento no 10º contingente do Batalhão de Suez, Boinas Azuis, integrante da Força de Paz no Oriente Médio em 1962 e acusado de participar de sessões de tortura, assassinatos e desaparecimentos de presos políticos, principalmente na Casa da Morte, em Petrópolis, RJ. Pela própria decisão da ONU a tortura é considerada crime de lesa humanidade, inafiançável e imprescritível.

  3. Anísio Teixeira junto a Darcy Ribeiro foi um dos mentores da Universidade de Brasília, fundada em 1961. Era segundo reitor e com o golpe, foi afastado. Em 13 de março de 1971, seu corpo foi encontrado no fosso do elevador do prédio de seu amigo Aurélio Buarque de Holanda. A versão oficial é de acidente, mas várias suspeitas foram levantadas por ocasião do lançamento da Comissão da Verdade da Universidade de Brasília (UNB). Disponível < http://www.unb.br/noticias/unbagencia/unbagencia.php?id=6934> Acesso: agosto de 2012.

  4. As afirmações de que João Goulart foi envenenado pela Operação Condor, feitas por um ex-agente do serviço secreto uruguaio, Mário Neira Barreiro, reabriram as discussões sobre a causa mortis registrada no atestado de óbito do ex-presidente. Disponível <http://www.institutojoaogoulart.org.br/conteudo.php?id=38>. Acesso: dezembro de 2012.

  5. Em 07 de janeiro de 1973, os militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) Eduardo Gomes da Silva, Pauline Reichstul, Evaldo Luís Ferreira de Souza, Jarbas Pereira Marques, José Manoel da Silva e Soledad Barret Viedma são torturados e mortos no município de Paulista (PE), após informações do cabo Anselmo fornecidas ao Delegado paulista Sérgio Paranhos Fleury. O episódio ficou conhecido como o massacre da chácara São Bento.

Referencias: Maria Cláudia Badan Ribeiro, « A verdade ainda que tardia », Cahiers des Amériques latines, 70 | 2013, 7-16 http://www.rededemocratica.org/index.php?option=com_k2&view=item&id=4832:a-verdade-ainda-que-tardia


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Maria Cláudia Badan Ribeiro

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