Conteúdo da página
ToggleA vitória praticamente consolidada de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais brasileiras de 2018 foi analisada como o retorno de algum tipo de fascismo para o Brasil: hoje os ditadores são eleitos, anteriormente precisavam usar tanques. No entanto, os brasileiros, ao contrário dos portugueses, nunca retiraram seus ditadores do poder.
Os militares brasileiros deram lugar às suas contrapartes civis. A estrutura de governo criada em 1986 permitiu a retirada discreta do pessoal uniformizado dos cargos públicos sem serem responsabilizados publicamente pelas consequências de seus atos. No entanto, essa retirada não acabou com o papel dos militares no governo do Brasil. Por razões históricas e ideológicas, isso não era necessário.
A tradição militar-tecnocrática no Brasil é tão antiga quanto a fundação da República. Essa foi uma das razões pelas quais as forças armadas brasileiras aceitaram tão prontamente a “ideologia de segurança nacional” que os EUA propagaram em suas instituições como o National Defense College. Universidade cujo currículo foi amplamente imitado pela Escola Superior de Guerra do Brasil.
Os militares no Brasil devem ser melhor entendidos se pensarmos neles como os gerentes de elite do complexo tecnológico militar-industrial da república, um dos meios de sobreviver à ditadura.
Embora certamente não seja um acidente, a unção de Bolsonaro como um salvador no tempo de dificuldades do Brasil é fortuita. Sua aparição no cenário e sua eleição (a menos que algo totalmente inesperado ocorra em 28 de outubro) devem ser entendidas no marco da antiga cultura política interna do Brasil e a subordinação das forças armadas brasileiras, no sentido mais amplo do termo, à ideologia de Segurança Nacional hemisférica, que prevaleceu desde sua formulação ao final dos anos 1940.
Blog do Esmael
O capitão canditado bate continência à bandeira dos Estados Unidos
Comparação com Trump é puro diversionismo
Comparações com Trump são distrações assim como os ataques a Trump. Eles desviam a atenção das questões reais envolvidas na luta pelo poder e de quem realmente detém o poder.
A eleição de Bolsonaro não pode ser totalmente entendida sem analisar o tema desde a perspectiva internacional. O Brasil, apesar de ser um país muito grande e com uma enorme economia, é dominado por uma minúscula elite com mais lealdade à elite norte-americana do que a seus próprios interesses nacionais. Sempre foi, no hemisfério, um país subordinado, embora os mecanismos de subordinação tenham mudado ao longo do tempo. Ao contrário dos EUA, as eleições brasileiras são ativamente manipuladas por governos estrangeiros. A mídia brasileira é ainda mais concentrada do que nos EUA, com a Rede Globo ocupando o monopólio virtual de todos os meios de comunicação no Brasil não controlados por um conglomerado dos Estados Unidos.
No entanto, sempre houve uma tensão entre facções pró-EUA e nacionalistas na elite do Brasil. A única base política de massa já estabelecida no Brasil – antes do PT – era o regime de Getúlio Vargas, que era vigorosamente combatido pelos que no Brasil detestam qualquer coisa que se assemelhe à democracia, ao nacionalismo ou à política de massa. O PT surgiu apesar da repressão para se tornar o primeiro partido democrático de massa do Brasil. Quando lhe foi permitido governar, após a tão esquecida corrupção da presidência de Collor de Mello, foi porque alcançou uma ampla base democrática que lhe permitiu ganhar eleições.
Se passam dos limites os bancos aplicam freios
Eleições vitoriosas foram consideradas no período inicial após o colapso da União Soviética como a condição sine qua non da “vitória” do capitalismo. O PT começou então a criar sua própria base política no contexto brasileiro – uma combinação de clientelismo local e trabalho de base organizado, mas incluindo setores que anteriormente haviam sido excluídos dessa fórmula. No sistema federal do Brasil, era necessário estabelecer um orçamento social sério a nível federal para compensar as dificuldades a nível estadual. Para isso, o PT precisava de um orçamento público para financiar essas despesas. E aqui é onde os bancos internacionais – que historicamente sempre agiram como uma força contrária ao desenvolvimento nacional brasileiro – aplicaram os freios. O PT teve que se comprometer com a extorsão, também conhecida como serviço da dívida externa. E assim como qualquer outro país dominado pela “dívida”, ao pagar a extorsão dos bancos o Brasil só podia honrar as promessas sociais mais superficiais.
Então, o que aconteceu com certeza foi o seguinte: os encarregados da engenharia política do PT decidiram subsidiar secretamente sua consolidação política e parte do orçamento destinado aos projetos sociais, desviando fundos da companhia estatal de petróleo, a paraestatal Petrobras. Isso tinha que ser feito de forma sigilosa, para escapar do garrote de extorsão (formado pelas agências bancárias e monetárias internacionais) e evitar a manipulação nas classificações de crédito brasileiras e na taxa de câmbio. Então, muitas pessoas pegaram esse trem para manter o esquema funcionando. Naturalmente, ao ter que pagar a todos aqueles cuja cooperação era necessária para manter esse mecanismo em funcionamento, mais dinheiro acabava ficando com os facilitadores do que com os beneficiários pretendidos da política.
A ideia de drenar fundos de uma corporação através de meios secretos não é nova. (A Enron era essencialmente um esquema liderado por bancos para lavagem de dinheiro e exportação para bancos offshore. Teria continuado não fosse por alguns problemas de pessoal e alguns acidentes – o maior dos quais foi a possibilidade de implicar o próprio presidente George W. Bush. ) Aliás, essa prática é totalmente desculpável quando os fundos são transferidos para os ricos. No entanto, torna-se um crime hediondo quando o dinheiro destina-se a beneficiar as pessoas comuns. Os agentes multilaterais da dívida (EUA) sempre se colocaram como defensores dos responsáveis por empréstimos oficiais a ditadores corruptos, onde o dinheiro foi transferido para contas suíças privadas.
Assim, dado o número de pessoas no trem de carga da Petrobras, essa política poderia ter continuado com relativa impunidade se não fosse por duas questões internacionais muito importantes nas quais o regime dos EUA tem um interesse direto: os BRICS e a Venezuela.
Vale a pena ver um pequeno segmento no documentário On Company Business, de Allan Frankovich, de 1980. Há uma entrevista com um sindicalista dos EUA com experiência em organização, recrutado pelo AIFLD para ir ao Brasil e organizar “sindicatos anticomunistas”. Ele explica o que achava que estava fazendo e o que depois constatou ser sua missão real. Mas a sua constatação mais notável foi que ele havia sido enviado ao Brasil para realizar esse trabalho em 1962 – dois anos antes da “crise” que levou oficialmente ao golpe militar brasileiro e à destituição de João Goulart.
Anticorrupção substitui o anticomunismo sem comunismo
Bolsonaro é discutido como um produto da cruzada “anticorrupção”. A “anticorrupção” apenas substituiu o “anticomunismo”, já que este último foi considerado extinto. De fato, o motivo para interromper a política do BRICS no Brasil e isolá-la do “eixo” Venezuela-Cuba, foi dado quase imediatamente após a primeira eleição de Lula. Mas, levou algum tempo para colocar as pessoas e as circunstâncias na melhor posição para depor o PT. O cenário certamente estava pronto quando terminou o segundo mandato de Lula. A morte de Chávez e, depois, a morte de Castro (esta, pelo menos, de causas naturais) tornaram imperativo fechar a fronteira Brasil-Venezuela em todos os sentidos. E a escalada da guerra contra a Rússia e a China tornou imperativo retirar o “B” dos BRICS.
O sucesso da estratégia “anticorrupção” na legitimação da destituição de chefes de estado havia sido comprovado assim como a capacidade de gerar apoio social em contextos específicos, como eleições e manifestações de rua. As campanhas anticorrupção foram dirigidas contra figuras públicas e servidores do estado, mas nunca contra as forças armadas (embora a corrupção do comércio de armas seja endêmica e aparentemente incurável) nem contra corporações que iniciam atos de corrupção e / ou se beneficiam delas. Há uma relutância conspícua em atacar instituições fundamentalmente antidemocráticas: as grandes empresas e os militares. A “anticorrupção” é realmente, desde 1989-90, um eufemismo para um amplo ataque a todas as instituições democráticas.
A esquerda não compreendeu que a dívida é instrumento de dominação
Um dos fracassos da esquerda e da falsa “gauche” foi não compreender essas questões fundamentais. Isto se deve, em parte, ao fato de eles compartilharem a mesma “linguagem moral” e as ideias dos tecnocratas progressistas sobre como o Estado deveria ser organizado e operado. Tem havido uma clara incapacidade ou relutância em defender a independência fiscal e em denunciar o que a dívida externa (ou em muitos países todos os empréstimos públicos) de fato é: a conversão deliberada de recursos públicos em fluxos de caixa privados para a classe dominante. Essa é a principal razão pela qual o sistema bancário central adotado pelo regime dos EUA em 1913 e internacionalizado em Bretton Woods e na UE inviabiliza todas as tentativas de socialismo. É impossível remediar um sistema corrupto de finanças públicas e operações do governo sem uma mudança radical no controle antidemocrático do dinheiro. Enquanto a economia for tratada como ciência quando é, de fato, uma teologia, todo governo de esquerda terá seus teólogos louvando o massacre de camponeses que se revoltam enquanto reivindicam os privilégios de suas próprias liberdades particulares.
O PT tentou fugir dessa restrição criminal a um governo democrático usando uma instituição paraestatal para fins sociais. Esse foi o seu crime capital e será punido como tal. Faz pouca diferença que a Petrobras nunca tenha financiado todas as atividades que o governo do PT poderia ter implementado se não fosse pelas limitações impostas pelo serviço compulsório da “dívida”. O efeito escandaloso de uma tática evasiva bastante disfarçada por um governo discretamente socialista foi o catalisador necessário para romper a maioria eleitoral que permitiu ao PT obter resultados eleitorais sólidos.
Dr T.P. Wilkinson
As estratégias de Langley (a CIA) também amadureceram com os anos. Em 1964, não hesitou em usar a força militar direta para tomar o controle do Brasil. Mas agora isso é desnecessário e indesejável. Nenhuma quantidade de protestos impediu que Temer exercesse o cargo de presidente, apesar das enormes acusações de corrupção pendentes contra ele. Ninguém pode defender atos criminosos notórios se eles forem notificados antes mesmo de o julgamento determinar se um crime foi cometido.
Outra inovação passou em grande medida despercebida: o refinamento do programa Phoenix. A chamada “guerra às drogas” e seus vários teatros oferecem hoje cobertura em toda a América Central e do Sul para a contra insurgência ou a guerra política contra os pobres. Quando Temer ordenou que os militares entrassem no Rio, a justificativa dada foi a necessidade de reprimir a extrema criminalidade, que representava o perigo a que estavam expostos os habitantes civis. Além do fato de que os militares e a polícia em todos os países fazem parte integral do comércio de drogas e outras formas de contrabando, a militarização da aplicação da lei é uma cobertura clássica para os esquadrões da morte e instrumentos terroristas semelhantes. Colocar os pobres sob a lei marcial é algo que as forças armadas brasileiras praticaram ativamente, em conjunto com as Forças dos EUA, quando estavam no Haiti sob a cobertura da ONU. Nenhum comentarista sério da situação no Haiti dúvida que o “crime” que estava a ser combatido no país era qualquer tipo de organização de base que se insurgisse contra os donos de um Estado com novas formas de escravidão.
A eleição de Bolsonaro e as operações levadas adiante para desmobilizar os setores do eleitorado brasileiro que forneceram apoio e legitimidade ao PT deixando de fora apenas a classe média historicamente descontente e proporcionalmente insignificante (não muito diferente da classe média anti-chavista, na Venezuela) – como resultado da campanha para votar na mítica “vassoura limpa”. Aqui voltamos ao fato de que os militares nunca saíram do palco. Ao falarmos em forças armadas entendemos que elas devem ser compreendidas em um sentido “cultural” – isto é, nesse conceito estão incluídas todas aquelas pessoas da elite e das classes que lhe dão apoio que pensam como os militares, sejam membros das forças armadas ou não. Isso inclui os estratos tecnocráticos e aqueles que acreditam ingenuamente na “racionalidade militar” como uma virtude pura e nacional. Mas uma coisa deve ser lembrada sobre a política moderna e os candidatos “independentes”. Bolsonaro é dispensável. Ele pode ser visto como um “zero à esquerda”, como um instrumento de uma força institucional mais ampla que age ativamente para frustrar a democratização do Brasil, com o objetivo prioritário de impedir que prospere toda organização política sólida das classes populares e obstruindo a qualquer preço qualquer tentativa, por mais tímida que seja, de remediar as grotescas desigualdades socioeconômicas brasileiras.
A resistência à equidade política e econômica, nem falamos em igualdade, é uma tradição secular nas duas maiores repúblicas de escravos do hemisfério ocidental. O enriquecimento a partir do trabalho forçado e da pilhagem sempre foi a força motriz nos EUA e no Brasil. Faz pouca diferença que a escravidão foi abolida no século XIX. A alocação democrática dos recursos de um desses países por qualquer fórmula viola a própria essência do sistema econômico que a escravidão tornou possível. Somente enfrentando essa profunda corrupção dos regimes brasileiro e estadunidense será possível o surgimento de movimentos sociais capazes de criar uma democracia genuína e talvez até mesmo abrir caminho para o socialismo na maioria dos países das Américas, que nunca desfrutaram nem de uma democracia verdadeira nem, obviamente, do socialismo.
Publicado em 15 de outubro de 2018 no sítio web: Global Research
Bolsonaro and Brazil’s “National Security Ideology”: Order and Progress Was Never a Civilian Slogan
Este artigo também foi publicado no Dissident Voice.
Dr T.P. Wilkinson é escritor e professor de História e Inglês. Ele também é autor de Church Clothes, Land, Mission e the End of Apartheid na África do Sul. Ele é um colaborador frequente da Global Research.