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Toggle“Eu serei sempre minoria. Nesse sistema eu me sinto um fracassado. E estou muito feliz de ser um fracassado”. É assim que padre Júlio Lancellotti define o estilo de vida que escolheu levar ao buscar a defesa e acolhimento aos mais vulneráveis ao longo de seus 71 anos. “E eu não quero ser nunca maioria. Eu gosto quando o Darcy Ribeiro diz: tudo que eu tentei não deu certo. Eu também, tudo que eu fiz deu errado. Ainda bem. E eu estou muito feliz de estar do lado de quem perde. Eu nunca queria estar do lado dos que ganham”, completa.
Paulistano nascido em 27 de dezembro de 1948 no bairro do Belém e batizado Júlio Renato Lancellotti, o pároco contou que teve seu primeiro contato com o mundo católico aos 11 anos, quando passou a frequentar um seminário. Dali por diante, se tornou coroinha, passando por outros cargos do sistema religioso até chegar à Paróquia São Miguel Arcanjo, no Belenzinho, zona leste da capital paulista, onde está há cerca de 30 anos.
Padre Júlio hoje é um ícone na defesa dos direitos humanos, colocando a mente e o corpo a serviço dos mais frágeis, seja denunciando torturas na antiga Febem (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor), atualmente chamada Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), seja no atendimento da população em situação de rua no Centro da capital paulista. Em outubro, a Ponte passou uma manhã com o líder religioso para conhecer mais da sua história, seus anseios, medos e alegrias.
Rotina incansável
O dia do padre Júlio Lancellotti tem início logo pelas primeiras horas da manhã. Por volta das 7h ele celebra uma missa na Paróquia São Miguel Arcanjo, na rua Taquari. No dia da entrevista, cerca de 15 pessoas estavam no local. Durante o sermão, o padre falou sobre amor e respeito. Foram cerca de 40 minutos entre pregação e louvores.
Quando o relógio batia exatos dez minutos para as 8 horas, o padre, junto a alguns fiéis que assistiram à missa e também seus ajudantes diários, muitos deles moradores de albergues da região, saíram do local munidos de achocolatados, pacotes de bolacha e roupas, para doação no Centro de Convivência São Martinho. Durante o percurso de cerca de 500 metros, o padre distribui pães e cumprimentos aos moradores de rua que o aguardavam como numa procissão.
Assim que chegou a São Martinho, localizada na esquina das ruas Rua Doutor Guilherme Ellis e Siqueira Cardoso, onde aproximadamente 500 homens, mulheres e crianças o aguardavam ansiosamente. Pouco após acessar o local, o padre e seus auxiliares organizam a entrada das pessoas. Ali, têm acesso a um bom café da manhã com leite, achocolatado e suco de caixinha, pães e bolachas. Além da mesa com a refeição, há ainda mesas de distribuição de cuecas, calcinhas, absorventes, pentes, kits de higiene, com escova e pasta de dente. Tudo servido ali veio de doações de pessoas que buscam a paróquia.
Esse trabalho fez o Padre Júlio se tornar alvo preferencial do derrotado candidato à prefeitura da cidade pelo Patriotas, Arthur do Val, autodenominado Mamãe Falei, que chamou o padre de “cafetão da miséria” durante a campanha. O padre, que chegou a ser ameaçado após os ataques do pupilo do MBL (Movimento Brasil Livre) disse não se ver como um trampolim eleitoral para o concorrido cargo de prefeito. “Eu sou um alçapão, quem vier para cima de mim, afunda. Eu não tenho poder político nenhum. Trampolim político são as igrejas evangélicas, que têm dinheiro”.
“Antes os ataques era de que eu era defensor de bandido. Agora eu sou cafetão da miséria. Os ataques sempre foram muito fortes. Nesse decorrer da minha vida de mais de 40 anos de ação, de convivência com essas situações, quatro pessoas vieram me avisar, depois de muitos anos, dizer que iriam me matar e porque não conseguiram. E sempre eram assassinatos encomendados”.
Luciney Martins/O SÃO PAULO
"Eu estou muito feliz de estar do lado de quem perde. Eu nunca queria estar do lado dos que ganham"
Segundo padre Júlio, as ameaças têm muito da “questão política”, já que o “Estado nunca quis que se denunciasse tortura, violência. Eu acompanhei situações de tortura das mais terríveis. Eu vi muitas mulheres presas torturadas. Muitas mulheres presas tendo que andar em cima de caco de vidro. Ter que sentar em colchões ainda fumegantes de brasa. Vi jovens tendo que subir a escada num pé só, jovem tendo que urinar um no outro”.
O Centro São Martinho é ponto que sempre ofereceu alimentos aos moradores de rua da região, mas que passou a concentrar pela manhã o grosso de pessoas que procuravam o padre na paróquia todos os dias.
A reportagem da Ponte acompanhou a distribuição de alimentos. Enquanto crianças tomavam seu café com sorriso no rosto, os adultos demonstravam a preocupação evidente com mais um dia sem trabalho, todos se referindo com carinho ao padre Júlio Lancellotti, a quem chamam de “protetor”.
“É um padre excelente, cuida de mim, cuida dos meus filhos. Nos dá todo apoio. Para mim ele é nota mil”, disse a auxiliar de empacotadora desempregada Ivana Ferreira da Cruz, 43 anos, há cerca de 20 vivendo em situação de rua. A mulher, que conta que o padre também auxilia na criação de seus filhos de 19 e 16 anos, se mostrou incomodada com as ameaças e ofensas recebidas por ele. “É muito injusto, é uma pessoa que está lutando pelo próximo”.
Quem também atendeu a Ponte enquanto tomava seu café da manhã foi o ex-gerente de navegação André Luiz Maciel de Barros, 57 anos, que fez questão de exaltar o que Júlio Lancellotti representa em sua vida. “O padre é uma referência, por que está há muito tempo acolhendo uma parcela da população mais vulnerável. Quando o morador de rua está sofrendo alguma injustiça ele toma a frente e vai para cima”.
André Luiz conta que fala inglês e já teve tudo em sua vida, trabalhando em plataformas de petróleo, mas que a cocaína o fez sucumbir. “Um dia fui dar uma cafungada e olha onde estou. Sirvo de exemplo para quem está curtindo e acha que é gostoso”. Há quatro anos vivendo em situação de rua, ele afirmou que sua “grande esperança é de não ser um idoso dentro de um albergue esperando auxílio do governo. Quero fazer um curso técnico de enfermagem e ajudar quem precisa. Já fui muito arrogante. Hoje, recebo conforto espiritual do padre”.
“Eles são muito sem nada. Eles são descartáveis. O descarte é a imagem que o Papa Francisco tem usado mais agora, não é mais excluído. Por que o excluído o governo inventa a política da inclusão. O descartado é o copo descartável. O que você faz com um copo descartável, uma fralda descartável, uma meia descartável ou um aparelho de barba descartável? Não tem mais, descartou, acabou, é lixo. Então, essas pessoas estão totalmente descartadas”, diz padre Júlio.
Rebeliões
Um dos pontos que mais marcaram a vida de padre Júlio Lancellotti foram suas visitas à antiga Febem, atual Fundação Casa. Não foram poucas as visitas em que ele conta ter presenciado torturas, além de ouvir relatos sobre as agressões, principalmente no final dos anos 1990. Em alguns dos casos, o pároco chegou a encerrar rebeliões. Segundo ele, em um motim na unidade Imigrantes, uma das mais problemáticas da Febem na capital paulista, ele foi questionado em tom de deboche pelo diretor à época se não iria entrar no pavilhão rebelado.
Segundo o padre, ao entrar em meio ao motim, deu de cara com um jovem negro que ele conhecia da rua. O menino teria dito “obedeçam o padre” e, logo na sequência Júlio, usando todo seu traquejo, pediu “sentem”, sendo atendido prontamente.
“Eu ia muito ao Complexo Imigrantes. Eu ia semanalmente lá e eu tinha uma estratégia. Eu chamava um que eu conhecia e esse um que vinha me falava de outro. Ai eu chamava o outro. Tinha dias que eu tinha mais de 40 na sala comigo, e aí eu ia juntando o fio da meada da tortura e encontrava muitos torturados”.
Ainda nos anos 1990, padre Júlio Lancellotti chegou a responder por um processo por facilitação de fuga de menores internos da Febem Tatuapé que estavam em um ônibus que trafegava pela Avenida Celso Garcia em direção a unidade no Brás. Segundo ele, o processo foi arquivado.
“Perguntei para eles por que não houve segurança ou escolta? ‘Por que você dispensou’. Desde quando um civil dá ordem para um militar? Se eu dispensei por que eles obedeceram? Então eles prevaricaram porque um militar não pode seguir ordens de um civil, ainda mais sendo eu, que não sou nenhuma autoridade”.
Questionado se encontra mudanças na estrutura da Fundação Casa em relação à Febem, ele diz que “mudou o nome e descentralizou, mas a violência continua a mesma. A mesma violência de sempre. Pode não parecer agora porque não tem grandes complexos, mas é a mesma violência”, analisou.
Sempre se mostrando uma fortaleza, como dizem alguns de seus seguidores, padre Júlio Lancellotti afirmou que ainda chora e que é um homem muito sentimental, principalmente quando se lembra de sua família ou presencia agressões contra população de rua.
“Hoje faz dez anos da morte da minha mãe. Eu sinto muito quando batem nos moradores de rua, quando os torturam. Hoje também seria aniversário do meu irmão que já faleceu também. Minha mãe faleceu no dia do aniversário dele. Eu carrego no peito muitas cruzes, muitas mortes. Eu ainda choro, sim. Chorar faz bem. Eu não sou da teoria de que homem não chora. Chorar lava os olhos”.
Padre Júlio é bem claro ao falar do seu maior medo: ser acometido pelo Alzheimer, doença degenerativa que tem, entre suas causas, a perda de memória. “[Ficar] um velho dependente, ter que usar fralda, não conseguir comer sozinho”.
Ligação do Papa
Em 10 de outubro, padre Júlio Lancellotti recebeu uma ligação. Do outro lado da linha alguém conversando em italiano o perguntou se ele falava em espanhol ou italiano. O pároco rapidamente respondeu que tinha preferência pela segunda alternativa. Pouco tempo depois o outro homem se apresentou como Papa Francisco.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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