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ToggleNo último domingo (5), Fernanda Torres venceu o Globo de Ouro de melhor atriz por sua atuação em “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles.
A produção revisita os traumas da ditadura militar no Brasil, um período marcado por torturas, desaparecimentos e censura. A narrativa centra-se na história de Eunice Paiva, interpretada por Torres, uma mulher que enfrentou o desaparecimento de seu marido, Rubens Paiva, e empreendeu uma luta incansável por respostas.
Para além do idolatrado reconhecimento internacional concedido pela premiação, a vitória de Torres extrapola as fronteiras do cinema ao simbolizar a luta por memória, verdade e justiça em um país cujas feridas do passado autoritário seguem abertas.
A história da família Paiva
Rubens Paiva foi um deputado federal e defensor da democracia que se tornou uma das vítimas mais emblemáticas da ditadura militar no Brasil. Em 1971, ele foi preso e levado para instalações militares, onde sofreu tortura e desapareceu. Seu corpo nunca foi encontrado, e sua morte tornou-se um símbolo das atrocidades cometidas pelo regime.
Eunice Paiva, sua esposa, enfrentou a perda devastadora do marido enquanto cuidava dos filhos e lutava para expor os crimes da ditadura. Advogada e ativista, Eunice tornou-se uma figura central na busca por justiça, dedicando sua vida à memória de Rubens e à luta pelos direitos humanos no Brasil.
A resiliência e a coragem de Eunice inspiraram seu filho, Marcelo Rubens Paiva, a escrever o livro autobiográfico “Ainda Estou Aqui”, que narra a trajetória da família, enquanto transcende a esfera familiar para denunciar os horrores vividos por milhares de brasileiros durante o período militar.
Incômodo na extrema-direita
A adaptação do livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva e a consagração de Fernanda Torres geraram uma onda de ataques a partir da extrema-direita. Figuras como o ator e deputado federal Mario Frias (PL-SP) utilizaram as redes sociais para hostilizar a artista e a premiação, acusando o Globo de Ouro de ser uma ferramenta para mascarar um suposto “regime autoritário” do governo Lula e reiterando o discurso de que a classe artística está comprometida com uma “ideologia esquerdista”.
A ligação de Lula para parabenizar Fernanda é mais do que uma simples comemoração. Ela simboliza a união entre uma classe artística comprometida com a ideologia esquerdista e um governo que não hesita em utilizar a cultura como ferramenta de desinformação. Em vez de celebrar… pic.twitter.com/ND8V6Jj1hd
— MarioFrias (@mfriasoficial) January 7, 2025
Um perfil no X (antigo Twitter) chegou a associar “Ainda Estou Aqui” ao ex-presidente Jair Bolsonaro, escrevendo: “Fernanda Torres humilhou e desprezou a direita e os eleitores do presidente Jair Messias Bolsonaro, e agora quer pagar de boazinha, para irem ver seu filme de 5° categoria? Não. Obrigado.”
A reação violenta e difamatória – exemplo de como a arte, quando comprometida com a verdade histórica, desperta medo na extrema-direita – incluiu até mesmo o incentivo a um boicote à obra.
Também no X, em contrapartida, usuários divulgaram um trecho de uma entrevista de Fernanda Torres para a BBC, na qual a artista afirma: “Independentemente de ser de esquerda, direita ou centro, acredito que o filme vai te impactar de uma forma única. Percebi isso em todos os países que exibiram o longa.”
De Fernandona a Fernandinha
Os êxitos de “Ainda Estou Aqui” remetem diretamente à repercussão do filme Central do Brasil, de 1998, também dirigido por Walter Salles. Na época, Fernanda Montenegro, mãe de Fernanda Torres, emocionou o mundo com sua interpretação de Dora, mas perdeu o Oscar em um dos episódios mais polêmicos da história da Academia. Considerada por parte da crítica e do público como injusta, a decisão ressoou como um reflexo da marginalização do cinema do Sul Global em uma indústria dominada pelas produções estadunidenses e europeias.
Se por um lado o Oscar de 1999 deixou um gosto amargo, no Globo de Ouro do mesmo ano Central do Brasil ganhou o prêmio de Melhor Filme em Língua Estrangeira e teve Montenegro nomeada a Melhor Atriz em Filme de Drama.
Durante seu discurso no últmo domingo, Fernanda Torres emocionou o público ao reconhecer o legado de sua mãe e ressaltar essa herança de luta e representação. Vale lembrar que Montenegro também está presente em “Ainda Estou Aqui”.
“Meu Deus, eu não preparei nada, porque eu não sabia se estava pronta. Eu já estava feliz. Esse foi um ano fantástico para as performances femininas. Quero agradecer Walter Salles, meu parceiro, meu amigo. Que jornada, Walter! Quero dedicar isso à minha mãe. Ela esteve aqui 25 anos atrás. Isso é a prova de que a arte atravessa gerações. Esse filme nos ensina a resistir e sobreviver em tempos como esses”, disse Fernanda, com lágrimas nos olhos, enquanto o público aplaudia de pé.
Torres superou nomes de peso na categoria, como Pamela Anderson (The Last Showgirl), Angelina Jolie (Maria), Nicole Kidman (Babygirl) e Tilda Swinton (O Quarto ao Lado).
Veja o discurso na íntegra:
O longa também recebeu o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Veneza e teve exibições nos festivais de Toronto e San Sebastián, além de ser selecionado para o Festival de Nova York.
Oscar 2025
“Ainda Estou Aqui”, que conta ainda com Selton Mello no elenco, foi escolhido pela Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais (ABCAA) para representar o Brasil na corrida por uma vaga na categoria de Melhor Filme Internacional do Oscar 2025.
A decisão da entidade, tomada de forma unânime, coloca a produção em língua portuguesa e centrada na ditadura brasileira para competir com produções do cinema europeu. O desafio é grande, mas a vitória de Torres no Globo de Ouro mostra que é possível superar a narrativa hegemônica que frequentemente silencia as dores e as conquistas da América Latina.
A lista preliminar dos concorrentes ao Oscar foi revelada em 17 de dezembro, enquanto os indicados oficiais serão conhecidos em 17 de janeiro. A cerimônia do Oscar 2025 está agendada para 2 de março.
Com ou sem Oscar, Eunice Paiva, Rubens Paiva, Fernanda Torres e todos aqueles que lutam para dar voz àqueles que foram silenciados nos lembram: ainda estamos aqui.
Edição: Guilherme Ribeiro
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