A grande maioria que chorou a morte de Marielle não a conhecia. Então por que choramos? Infelizmente, nem de longe posso dizer que conheci Marielle. Estive com ela uma vez e conheci mais de perto pessoas que trabalhavam com ela em outras ocasiões. Quando falo no que algumas pessoas deixaram de conhecer, faço referência ao tipo de conhecimento que ela representava e à política que ela colocava em prática.
Em 2017, organizei um seminário na PUC-Rio, onde Marielle estudou. O tema era “O desenvolvimento que queremos: Bolsa Família e os amores e ódios do Brasil”. O objetivo não era ter um grande evento sobre o Bolsa Família em si, mas pensar sobre como a negociação social em torno dos estigmas que se atribuem às parcelas mais sofridas da população dizem muito sobre nossa forma de pensar o que queremos para o país e como vivemos a política.
Marielle logo aceitou o convite para compor a mesa “Solidariedade e proximidade: o outro e a proteção social no Brasil”. Chegou com um sorriso, muitos dados, preparada. A sua fala despretensiosa marcou em grande parte o desfecho do evento. Marielle elogiou o papel do programa Bolsa Família ao colocar em prática o que o conservadorismo tenta atacar. Ela falou na importância do entendimento de família como uma relação de cuidado mais ampla e da relevância dessa noção em momentos cada vez mais dicotômicos da política brasileira. A vereadora citou o momento em que a maioria da câmara do estado do Rio de Janeiro, em sessão conturbada, empurrou por uma visão mais tradicional de família, uma visão baseada, por exemplo, numa divisão sexual do trabalho e num papel fixo e restrito da mulher. Nas palavras de Marielle, entre os amores e ódios desse tipo de política, falta dar centralidade a uma vontade política que foque na cidadã e no cidadão e que, portanto, reflita realidades mais amplas, mais verdadeiras, do que é cuidado, família e amor.
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Na mesma fala, Marielle disse, com calma e ao mesmo tempo força, algo como “A vizinha pode reclamar, pode se incomodar, pode não entender por que a outra ganha o benefício. Mas a gente [políticos, academia, todos que participam do debate político informado] não pode aqui tentar questionar quem gasta mais, perguntar simplesmente se é o bolsa empresário — as isenções — ou o bolsa família, o que tem custo maior. A gente não pode entrar nesse processo de amor e ódio, de avaliação rasteira, que vai estigmatizar quem está recebendo. A vizinha pode. Mas no caso dela, cabe à gente informar esse debate, qualificar a discussão”. Soou um chamado à razão — e à educação. Uma intervenção extremamente razoável, equilibrada, muito diferente daquilo que o embate raso pós-tragédia vem levantando. Marielle falou da favela, do empoderamento feminino, da necessidade de combater preconceitos, sempre citando dados, chamando à razão, recusando polarizações fáceis e se negando a entrar no debate do ódio.
O segundo momento foi minha chance de conhecer o que Marielle representava para quem trabalhou diretamente com ela. Em algumas reuniões da sociedade civil, ouvi uma assistente do gabinete — não “de Marielle”, mas do “mandato de Marielle”, como tão corretamente colocavam — falar apaixonadamente do que significava aquele emprego: “Num país em que apenas 3% das mulheres transgêneros conseguem emprego formal, eu estou empregada”. E mais, em outros momentos e outras reuniões, foi essa a mesma voz que se destacou por conclamar que víssemos a realidade daquelas que sofrem violência diariamente e que estão invisíveis às estatísticas e à política pública e foi ela uma das que nos instou a pensar nas categorias dessas opressões sem esquecer que as categorias não devem ser usadas para estigmatizar, mas para conhecer. Uma pessoa incrivelmente preparada, de articulação poderosa, apaixonada pela política, sofrida e ainda interessada nas mediações, essa pessoa poderia nunca ter encontrado um lugar qualificado de voz e representação se não fosse Marielle.
Quem não sentiu a dor da perda de Marielle pode ter perdido a chance de acreditar em algo, de acreditar numa luta por uma sociedade mais justa, uma política mais honesta e engajada com as causas sociais. Em meio à nojeira em que se encontram nossas casas de poder, é de chorar também por quem não pode conhecer outra possibilidade. Há ainda, claro, quem não quis conhecer. Nesse caso, é de chorar por quem não sabe mais que odiar ou quem ama a ignorância. A política que pregam pode um dia consumir suas vidas. Nenhuma sociedade pode viver de alimentar ódios exclusivos contra essa ou aquela categoria sem difundir ódio por toda parte. E esse ódio um dia volta.
Quem não entendeu a dor com a morte de Marielle, porque comparou com outras perdas que não tiveram a mesma resposta, não percebeu que Marielle representava todas essas perdas. Denunciou abuso policial e a morte de policiais; lutou por pobres favelados e ganhou os votos de milhares da classe média que certamente também perderam pessoas queridas nessa cidade. Marielle foi tão enlutada porque morreram muitos com ela. E sangrou uma forma de ver o mundo e a política que justamente desprezava polarizações, análises rasteiras, estigmas e ódio. Foram muitas dores. É de chorar por quem não tinha nada a perder dentre elas.
*Isabel Rocha de Siqueira é professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio.