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Aliança estratégica entre China e Rússia define surgimento de uma nova era multipolar

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

Este artigo da professora Beatriz Bissio resume magistralmente o desarranjo mundial provocado pelas bravatas de Donald Trump e os arranjos em torno de um novo eixo, sem Estados Unidos, tendo como motor a aliança entre China e Rússia. É, entre os fatos mundiais da atualidade, o que deve ser observado passo a passo, pois é daí que virá a construção de uma nova ordem econômica mundial, livre da hegemonia do capital financeiro improdutivo e dos interesses estadunidenses. Eis o artigo:

Beatriz-Bissi.-Perfil-DiálogosA guerra comercial do presidente dos EUA, Donald Trump contra Europa, Canadá e Japão comprometeu a reunião do G& em Quebec, levando o presidente francês, Emmanuel Macron, a declarar que os países industrializados junto com Japão deveriam reformular o G& para transformá-lo em G6, sem Estados Unidos. Se há pouco mais de dois anos alguém tivesse previsto tal fratura entre os aliados ocidentais, ninguém teria dado importância. E o Brexit? E a divisão que ocorre na própria União Europeia?

Beatriz Bissio*

São tantas e tão rápidas as mudanças que já se tornou habitual a afirmação de que estamos no começo de uma nova era.

De fato, neste século 21 percebe-se uma certa decadência do Ocidente e, principalmente, a formação de um mundo multipolar, com a emergência da Ásia. O chamado “triângulo estratégico” da Guerra Fria, formado por Estados Unidos, China e União Soviética, cujo peso tinha se deslocado nos anos 1980 à potencia estadunidense, agora se vê o fortalecimento chino-russo.

O ressurgimento russo

 

Desde o início do século 21, Moscou tem fortalecido sua influência política e econômica (particularmente na questão chave da energia) e está reagindo à política da OTAN de aumentar a presença militar ocidental em suas fronteiras.

Ao avanço da OTAN, a Rússia tem respondido com uma estratégia exitosa de fortalecer um projeto euroasiático, através de um duplo movimento. De um lado, a Rússia está construindo alianças com as ex-Repúblicas Soviéticas asiáticas, priorizando acordos econômicos e projetos de infraestrutura, com desdobramentos geopolíticos. De outro lado, Moscou amplia acordos com países que desde o final da Segunda Guerra Mundial estiveram na esfera de influência de Estados Unidos. Um exemplo do primeiro tipo de iniciativa é a União Econômica Euroasiática (UEE ou UEEA), formada em 2015 com a Armênia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e a Federação Russa. A rápida consolidação da UEEA está animando a outros países a se interessarem pelo acordo, inclusive os não asiáticos.

O Foro Econômico do Leste (Eastern Economic Forum – EEF), criado por Vladimir Putin em 2015, é um exemplo do segundo tipo de iniciativa. Este foro se reúne todos os anos em setembro na cidade russa de Vladivostok, com a participação de Japão, Coreia do Sul, China e outros países da região. Entre seus objetivos está a promoção do potencial econômico do Oriente Longínquo russo, melhorando a competitividade e o atrativo da região para investimentos locais e internacionais. Um ano depois de criado, em 2016, o EEF demonstrava seu potencial ao receber como convidado especial o primeiro ministro japonês, Shinzo Abe, e firmar mais de 200 acordos comerciais por um valor que supera os US$ 20 bilhões, com a presença de três mil delegados de 60 países. A reunião de 2018 desse fórum promete ser ainda mais significativa: o convidado do honra será o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae, e também devem comparecer o presidente chinês Xi Jinping e o chefe de Estado da Coreia do Norte,

Kim Jong-un[1].

Nada disso seria possível se a Rússia não tivesse uma razoável unidade interna e a economia mostrando sinais de recuperação. Isso se observa no resultado das últimas eleições, que deram ao presidente Putin um quarto mandato e, com relação à economia, o próprio Fundo Monetário Internacional (FMI) reconheceu os avanços. Uma missão do FMI, encabeçada por Ernesto Ramírez Rigo, visitou a Rússia em novembro de 2016. Em seu informe, Rigo afirmava que o país tinha superado o impacto da queda do preço do petróleo e das sanções aplicadas pela União Europeia e pelos Estados Unidos e previa uma tendência à expansão econômica a partir de 2017.

 

O século da China?

Os dirigentes de Pequim têm defendido a tese de que a estabilidade e a prosperidade da China dependem da estabilidade e prosperidade de seu entorno geográfico. Esta tese está por trás do lançamento, em 2013, pelo presidente Xi Jinping, do ambicioso projeto “Um Cinturão, uma Rota” (UCUR ou OBOR, na sigla em inglês). Conhecido como “a Nova Rota da Seda”, o projeto se estende da China à Europa através da Ásia Central e busca ampliar a integração econômica e política do continente, por via terrestre e marítima, mediante impressionantes obras de infraestrutura. Prevista para estar plenamente implementada em 2025, a Nova Rota da Seda tem o potencial de criar um mercado dez vezes maior do que o estadunidense e conta com abundantes recursos do Fundo Rota da Seda. Do Banco Asiático de Investimento e Infraestrutura (BSII) e do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD, Banco dos BRICS)[2].

Ferrovia transiberiana, em vermelho e Baikal-Amur, em verde

Estão em operação várias dessas iniciativas voltadas à integração euroasiática. É o caso da ferrovia mais longa do mundo, de 13.052 quilômetros, que cruza oito países, unindo a Espanha à China[3]. Outro exemplo é a expansão da ferrovia transiberiana, com trens de alta velocidade e a ferrovia transeurasiana, que já conecta a China (em Chongqing) com a Alemanha, com ponto final em Duisburg, Renânia do Norte-Vestefália.

 

A cooperação China-Rússia

Nesse contexto é que devem ser analisadas as implicações geopolíticas da crescente cooperação entre a Rússia e a China, fortalecida no século 21, quando conseguiram chegar a um acordo sobre a delimitação da fronteira comum de 4.300 quilômetros. A construção de uma relação saudável é benéfica para Pequim e Moscou, que se complementam em muitas áreas e, juntos, enfrentam melhor os desafios de sua relação com o Ocidente e os problemas em suas áreas de influência.

Para a China, é o caso da região autônoma de Xinjiang, na fronteira com o Paquistão e o Afeganistão. Habitada por uigures, minoria étnica muçulmana, essa região está cultural e etnicamente mais vinculada à Ásia Central que o resto do país. Para a Rússia, é o problema do norte do Cáucaso, já que, apesar do fim das operação militares na Chechênia, em 2009, a região ainda sofre com episódios de violência política, étnica e religiosa.

Os primeiros exemplos da aproximação entre chineses e russos e da aliança entre ambos para o novo século, foram as manobras militares realizadas no marco da Missão de Paz 2005 e a Declaração Conjunta China-Rússia para o século 21, subscrita em Moscou em julho do mesmo ano.

A declaração advertia que Moscou e Pequim rechaçariam qualquer intromissão de “forças estrangeiras” e se oporiam à imposição de “modelos de desenvolvimento políticos e sociais” vindos do exterior. A declaração definia um novo nível das relações bilaterais, mas também era uma resposta à chamada Doutrina Bush, adotada pelos Estados Unidos e seus aliados depois dos atentados de 11 de setembro de 2001.

Um novo marco nas relações bilaterais foi estabelecido a partir de 2013, quando China e Rússia participaram em conjunto nas organizações regionais de projeção estratégica, como a Organização de Cooperação de Shanghai (Shanghai Cooperation Organization SCO), fundada em 2001, integrada também por Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão e Uzbequistão, e à qual recentemente se integraram, Índia e Paquistão e ainda, como observadores, Afeganistão, Bielorrússia, Irã e Mongólia. A SCO  desde então vem se ampliando com acordos no terreno da energia (petróleo e gás) e na promoção do comércio regional. Porém, a ampliação mais importante foi na esfera militar. Conquistaram espaço nos aspectos de segurança, com intercâmbio de informação entre os serviços de inteligência e iniciativas com vistas a enfrentar o terrorismo, o separatismo e o extremismo. Apesar de ser chamada “OTAN do Oriente”, nos meios ocidentais, a organização não se compara como poder militar da aliança liderada por Estados Unidos, nem coincide com seus objetivos ou seu modus operandi.

Na última década, as relações comerciais entre Rússia e China se ampliaram consideravelmente. Hoje, a China é a principal sócia comercial da Rússia, que exporta principalmente petróleo. Em 2016, o volume de negócios da Rússia com a China foi de US$ 66.1 bilhões, um aumento de 4,02% em relação com 2015. A cooperação bilateral no setor da energia tem sido definida como de máxima prioridade. Alguns projetos se destacam, como os que buscam promover o desenvolvimento da região do Ártico, da Sibéria Oriental e do Oriente Longínquo da Rússia, tratando de melhorar o nível de vida da população e deter a crescente migração. Detalhe: os pagamentos recíprocos preveem a utilização de moedas nacionais. Pequim e Moscou procuram diminuir a influência do dólar e, ao mesmo tempo, evitar a exposição de suas economias a riscos cambiais[4].

A experiência histórica pesa na atual estratégia da China e da Rússia. Basta recordar as consequências dramáticas da ruptura entre e a União Soviética e a China Popular, nos anos 1960, não só para o campo socialista, mas também para as lutas independentistas na África e Ásia e para as forças progressistas em geral.

Nesse sentido, é interessante constatar a diferença que existe entre as alianças atuais ocidentais e as da Eurásia. As diferenças puderam ser vistas nas duas recentes reuniões de alto nível: o G&, no Canadá, e a Organização de Cooperação de Shanghai, em Shandong, província natal de Confúcio, na China. As reuniões foram realizadas quase que simultaneamente, no início de junho de 2018. Como já foi citado, no Canadá, Trump conseguiu desagradar a todos os seus aliados, enquanto que em Qingdao, o presidente Xi Jinping reafirmou a aliança com a Rússia.

Durante banquete em homenagem a seus convidados, Xi afirmou: “O presidente Putin e eu pensamos que a associação China-Rússia é integral e estratégica e chegou a seu estado maduro, mostrando-se firme e estável”[5]. Oficialmente, até agora, a associação chino-russa era chamada “integral”. Pela primeira vez, Xi enfatizou a condição de “estratégica”. E mais, Xi afirmou que a aliança entre China e Rússia “é a relação de mais alto nível e estrategicamente mais significativa entre os principais países do mundo”. E acrescentou, referindo-se a Putin: “é meu melhor amigo, meu amigo mais íntimo”[6].

 

Algumas reflexões finais

O que esperar desse cenário tendo a Rússia e a China como atores de primeira grandeza? Responder não é fácil. Prever o futuro depende mais dos valores e da visão de mundo do observador do que de dados objetivos. Não obstante, uma primeira resposta é possível: um cenário multipolar, se comparado com um mundo unipolar, é mais propício para o exercício da diplomacia, para a busca de diálogo e contribui para colocar limites à eventual hegemonia em decadência. De qualquer maneira, é o que vivemos neste século 21. E demonstra que todos se beneficiam num cenário em que prospera a diversidade.

*Beatriz Bissio integra o grupo de fundadores da revista virtual bilíngue Diálogos do Sul. Coordena o Departamento de Ciência Política, Programa de Pos-Graduação em História Comparada, Universidade Federal de Rio de Janeiro.

[1] Ver: https://forumvostok.ru/en/news/vladimir-putin-priglasil-prezidenta-respubliki-koreja-mun-chzhe-ina-v-kachestve-pochetnogo-gostja-na-vef-2018/ Consultado em 1/07/2018

[2] A China teve uma vitória significativa em 2015, quando o yuan entrou na cesta de moedas que o FMI aceita nos Direitos Especiais de Giro (em inglês, Special Drawing Rights o SDR), quer dizer, quando o yuan passou a ser moeda de reserva aceita nos bancos centrais dos membros do Fundo, junto com o dólar, a libra esterlina, o euro y o yen.

[3] O primeiro trem partiu de Yiwu, China, em 18 de novembro de 2014 e chegou a Madrid, Espanha, em 9 de dezembro desse ano.

[4] Desde 2017, Rússia reduziu pela metade o volume dos recursos financeiros em títulos norte-americanos, aumentando, ao mesmo tempo, suas reservas em ouro. Ver: “Por que Rússia e Turquia se livram dos títulos do Tesouro dos EUA e optam pelo ouro?” http://www.iranews.com.br/por-que-russia-e-turquia-se-livram-dos-titulos-do-tesouro-dos-eua-e-optam-pelo-ouro/

[5] Ver artículo “Putin and Xi top the G6+1”, de Pepe Escobar/Asia Times, 10/06/2018. http://www.atimes.com/article/putin-and-xi-top-the-g61/ [vi] Idem

[6] Ver artículo “Putin and Xi top the G6+1”, de Pepe Escobar/Asia Times, 10/06/2018. http://www.atimes.com/article/putin-and-xi-top-the-g61/ [vi] Idem


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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