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A escritora e poetisa guatemalteca Ilka Oliva Corado* é imigrante indocumentada e vive nos EUA há mais de dez anos, concedeu esta entrevista a Eduardo Vasco do Diário Liberdade.
Confira:
Você está acompanhando a crise política no Brasil?
Sim. Isso é um abuso contra a democracia e contra Dilma, que, junto com Lula, foram os melhores presidentes do Brasil.
Processos semelhantes ocorreram recentemente no Paraguai e em Honduras. Será coincidência?
Os golpes de Estado agora são diferentes. São “golpes brandos”, construídos aos poucos, e o eixo central é a manipulação mediática. Não se oprime mais com ditaduras sangrentas, mas idiotiza-se as massas (quando digo massas, quero dizer a classe média) que, por sua natureza, são indiferentes, e as conduzem para onde a oligarquia quer. Tudo isso é disfarçado sob o nome de democracia.
Primeiro tentaram aplicar isso mais de uma vez contra Hugo Chávez, Cristina Kirchner, Evo Morales, Rafael Correa, e não é novidade que ocorra com Lula e Dilma. Estão em perigo as reformas sociais da última década.
Por que a classe média é tão facilmente manipulada?
Por sua indiferença. Ela tem o pensamento colonialista mais enraizado do que o povo. A classe média sempre busca ser burguesa, isso a coloca anos luz de distância em relação ao povo, embora, economicamente, viva de aparências. Porque ela é classista e racista e tem uma educação burguesa e capitalista.
Você acredita que os EUA estão por trás desses golpes na América Latina?
Sempre estiveram. Isso não é novidade. A oligarquia latino-americana sempre respondeu aos interesses corporativos e políticos dos EUA.
Mas talvez isso também tenha relação com a cultura política latino-americana, com a corrupção oriunda da colonização, escravização e submissão dos nativos e dos pobres pelas oligarquias de todo o continente…
Sim, claro. Colocar a culpa só nos EUA é não reconhecer que o mal começa em nosso próprio continente exatamente por isso, pelas mentes colonizadas, pelo racismo e a segregação. Se os daqui não vendessem, os de fora não comprariam.
A oligarquia não valoriza nossos costumes e tradições, só a cultura importada dos EUA?
Exato. Crescemos sob colonização, não temos identidade e tudo o que vem de fora vemos como excelente, e acabamos rejeitando o que é nosso. A oligarquia latino-americana não passa de um grupo empresarial sem pátria e sem identidade: estas são o dinheiro e sua comodidade. Ela importa tudo o que tenha a ver com os gringos.
Você acha que a América Latina ainda procura resgatar sua identidade própria e original?
Os povos milenares sim. Os povos originários ainda têm identidade e lutam para resgatá-la das garras da imposição. A América Latina ainda segue resistindo porque há muitas coisas para salvar, entre elas sua identidade cultural.
Dos povos nativos, os mais conhecidos que lutam por sua identidade são os indígenas da Amazônia, os aymara na Bolívia e os mapuche no Chile. Mas como está a situação na América Central, que teve tantos povos massacrados pelos espanhóis, como os maias e os astecas? Existe memória e resgate das tradições?
Os que mais se manifestam são os povos originários. Na Guatemala, fazem manifestações constantes, que a sociedade urbana não presta atenção. Inclusive ela os rejeitou durante as manifestações contra a corrupção no ano passado. Depois, os cidadãos das áreas urbanas deixaram de se manifestar, enquanto os povos originários e camponeses continuam, porque o abandono pelo Estado e, paradoxalmente, seu ataque, não permite que eles vivam sequer com o básico. Rouba-lhes seu modo de sobrevivência, desviando os rios até secá-los, com extrações minerais e ecocídios. O mesmo ocorre em El Salvador, Honduras e México. São os povos originários os que têm mantido a cultura e as tradições, enquanto os que vivem nas cidades cada vez mais perdem sua identidade.
E como eles as têm mantido?
Como podem, com o pouco que o Estado lhes permite. Vemos governos neoliberais que os atacam. Também pesa muito a influência estrangeira. Temos que valorizar o que é nosso. Os povos originários são atacados e os mais explorados porque são os únicos que mantêm vivas as tradições e a cultura própria da região.
Os diferentes costumes de nossos povos ajudam ou dificultam a aproximação entre nós?
Não creio que seja questão de diferença de costumes ou cultura, porque eles são parte de nossa diversidade. Nos enriquecem como continente. O que nos divide é a indiferença em seu grau mais vil. Com essa mente colonizada não nos abrimos a outras formas de pensamento, costumes e culturas.
Então você acredita que os povos da América Latina não se conhecem?
Quero dizer que o que nos separa como humanidade é a indiferença e não as culturas e tradições. Estas, pelo contrário, nos enriquecem. Falando especificamente dos povos nativos, obviamente eles se conhecem. Nós viemos da mesma raiz, há diferenças mas o vital é o que nos une.
Dizem que os latino-americanos são amistosos, acolhedores, humildes. Mas ainda vivemos em sociedades conservadoras. Talvez isso seja herança do passado colonial…
Claro, com nossa hipocrisia, conservadores, desleais e xenófobos. Somos racistas por excelência e discriminamos e desvalorizamos todos que não são como nós. Acreditamos que somos superiores por causa da classe social, cor de pele, grau de escolaridade. Somos um continente lindo, sublime e, infelizmente, colonizado. Não transformamos as estruturas e não arrancamos pela raiz essa forma patriarcal que ainda segue nos dominando.
Você tem esperança de que isso mude?
Seria o ideal, mas sabemos que isso não acontecerá da noite para o dia. Levamos 500 anos com esse jugo colonizado que nos converteu em classistas e racistas ao ponto de negarmos nossa própria identidade. Para mudar é preciso trabalhar em todas as camadas da sociedade, principalmente cultura e educação. E isso não será fácil. Claro que não é impossível, mas é necessário querer fazer as coisas e, como vemos, estruturalmente nossas sociedades são hipócritas.
*Ilka Corado é colaboradora de Diálogos do Sul em território de EUA – Entrevista concedida a Eduardo Vasco (do Diário Liberdade/Brasil) por e-mail.