Sebastián Piñera, com sua obsessão pelo crescimento econômico a qualquer preço e o aprofundamento do imaginário neoliberal, tirou da manga um projeto de reforma tributária poucos anos depois do implementado pelo governo anterior. Em rigor, é o processo de desmantelamento dos pequenos avanços alcançados por Michelle Bachelet para frear o rolo compressor liberal e mercantilista, começando pelo lado da economia.
Se o governo anterior subiu os impostos, Piñera agora propõe baixa-los, embora diga que isso só afetaria as pequenas e médias empresa e as classes médias, eufemismo utilizado para, disfarçadamente, favorecer o capital.
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Entre as 13 medidas anunciadas na noite de terça-feira (21/8), contém poucas novidades. Uma série de ferramentas para beneficiar as empresas, em especial as grandes, se considerarmos os aspectos monopólicos e de alta concentração dos mercados, característicos da economia chilena. Um corte tributário que será pago pela população, e que o ideário liberal assegura que gerará mais investimento e crescimento, com o efeito, sempre hipotético, de criação de empregos. Um fardo de medidas que, como sempre, voltará a beneficiar as grandes corporações com maiores possibilidades de acumulação de riqueza.
O modelo neoliberal extremo, como o aplicado no Chile, só tem futuro na continuação do seu processo de concentração e apropriação pelo despojo, como foi denunciado tantas vezes pele geógrafo David Harvey. Despojo por via da superexploração dos recursos naturais e do trabalho. Um caminho que configura uma das sociedades mais desiguais do mundo, não só medida pelo nível de renda como pela qualidade de vida, educação, cultura.
Hoje, com 28 anos de capitalismo ortodoxo e instituições criadas e instaladas à medida e prazer das grandes corporações, as cifras da distribuição da riqueza chegam a novas marcas, como as difundidas por uma pesquisa também nesta semana, que aponta o Chile como um dos países com os piores níveis de equidade dentro da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), superado somente pelo Estado falido que hoje é o México, que também enfrentou várias décadas de políticas neoliberais e corrupção descontrolada.
Como os seus anteriores, o atual governo também faz alarde de um Chile que multiplica seu Produto Interno Bruto (PIB) desde 1990 até agora. Se naquele então, o produto chegava a humildes 33 bilhões de dólares anuais, em 2017 a cifra alcançou quase os 330 bilhões. Um crescimento acumulado que levou a economia chilena a atrair investidores locais e estrangeiros durante várias décadas, e lançou ao estrelato, interno e regional, a não poucos grupos econômicos chilenos.
Este suculento bolo, como sabemos, está dividido de outro modo. O último informe da OCDE sobre distribuição da renda para os seus países membros posicionou o Chile no pior lugar, segundo o coeficiente de gini. Com um índice de 0,45 (considerando que 1 seria o nível de inequidade total), o Chile compartilha o glorioso pior lugar, junto com o México. Duas economias entregues aos desígnios das grandes corporações, que sofrem os abusos de uma organização cujos membros compartilham outra realidade distributiva. Para comparar, podemos citar a Alemanha (com um índice gini de 0,28), Áustria (0,27), Portugal (0,33), Espanha (0,34) e França (0,29). Entre economias não europeias da OCDE, encontramos os Estados Unidos (que têm um gini de 0,39), o Japão (0,33), Israel (0,36) e Coreia do Sul (0,30).
Piñera e seu governo voltaram a amplificar – como também fizeram não poucos governos da transição – as bondades do livre mercado, não só para a economia como também para a vida social. Nestas semanas e meses, observamos uma estratégia comunicacional que coloca, como bem em si mesmo, o crescimento do PIB, fenômeno que, como bem sabemos, flui pelo coador das corporações e dos monopólios.
A supervalorização do mercado, elevado à categoria de realidade natural, tem suas consequências diretas na política, na apatia cidadã, na criação do sujeito apolítico, súdito dessa realidade mercantil. A entrega de todas as atividades às corporações, núcleo da doutrina neoliberal, significa o retrocesso, a inibição do aparato público e a redução das faculdades dos governos, cuja ação se limita a de simples administrador da normativa do mercado. Nesse cenário, com um público funcional às instituições (aqueles que votaram por Piñera), as mudanças de administração são irrelevantes.
O peso do mercado como realidade natural, como única cena para a política e a vida social, é também uma camisa de força para os governos. A consolidação e concentração do poder, de todo o poder, nas mãos de poucas corporações e seus acionistas controladores, impede, também como uma força natural, qualquer possibilidade de mudança dentro do curto cenário mercantil. O caso das reduzidas reformas do governo anterior é um exemplo dessas limitações. O modelo é uma jaula institucional, uma prisão invisível, que exerce suas insuportáveis forças gravitacionais e impede qualquer vislumbre de transformação. Um poder submetido e operado através de múltiplas caras, desde as dos meios de comunicação privados e cooptados pelo mercado a extremos como a compra direta ou indireta de políticos.
A consciência do sujeito neoliberal e amoral está no mercado. Sob este nível de reflexão, sem dúvidas falso e limitado, podemos observar o acionar do novo indivíduo que reduz sua liberdade ao espaço econômico de um shopping, ainda quando o compreende como espaço natural da vida. Para este novo indivíduo, o neoliberalismo é sua forma de vida, o lugar de suas relações e comportamento. Piñera, seu governo e sua coalizão conhecem bem essa realidade, elaborada por décadas de propaganda, artefatos, créditos e outras guloseimas vagas do mercado.
Como o sujeito apolítico também é cambiante e profundamente cético com relação ao sistema partidário, se ele formou parte do eleitorado que votou pelo atual governo, que prometeu mais consumo e bem-estar, é altamente provável uma oscilação, no curto prazo, como efeito da frustração. Porque o neoliberalismo tem em sua essência a concentração de poder e a riqueza nas mãos das elites donas do capital, e não nas dos trabalhadores e da cidadania. A reforma de Piñera não trará os “tempos melhores” repetido até a exaustão por seu slogan de campanha. Muito pelo contrário, ampliará ainda mais as contradições.
*Paul Walder é jornalista e escritor chileno, diretor do portal Politika.cl, associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)
**Tradução de Victor Farinelli