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EUA, Grupo de Lima e a tentativa de apagar a história da diplomacia latino-americana

Apesar da eterna oposição dos EUA, as teses defendidas pela diplomacia regional sempre foram vitoriosas no cenário internacional
Sergio Rodríguez Gelfenstein
Barômetro Latino Americano
Caracas

Tradução:

Num cenário, onde subjugados e subservientes ao “poder imperial” imposto pelo atual governo estadunidense, comandado por Donald Trump, grande parte dos governantes de países latino-americanos se unem na tentativa de derrubar o governo da Venezuela, a publicação deste artigo do consultor e analista internacional Sergio Rodríguez Gelfenstein é de fundamental importância para esclarecer quão ignorantes são os atuais mandatários latino-americanos. Para além de todo entreguismo, colaboram com a eterna tentativa dos governos estadunidenses de apagar a imensa contribuição histórica da diplomacia latino-americana na construção dos mecanismos legais que regem nosso direito internacional. [Nota da redação]

Grupo de Lima: Quando a ignorância pretende se converter em direito

Em julho de 1867, em seu primeiro manifesto ao povo mexicano, depois de entrar triunfalmente na capital após a derrota do Império Austríaco, o presidente Benito Juarez enunciou uma frase que mudou para sempre a história do México e deixaria uma marca na América Latina: “Entre os indivíduos, como entre as nações, o respeito pelos direitos dos outros é a paz”. Talvez essa frase possa ser considerada como um dos pilares fundadores do direito internacional latino-americano e uma contribuição para a busca de relações harmoniosas entre os povos e os governos do mundo. 

Alguns anos antes, Andrés Bello, em seu livro “Princípios do Direito Internacional”, publicado em Caracas em 1837, transformado em uma consulta obrigatória para as chancelarias da região e adotada como livro didático em várias universidades na América Latina, o educador, diplomata e jurista venezuelano fez menção às particularidades e à diversidade da região, buscando — em relação às ciências jurídicas — conciliar o atual pensamento universalista com o pensamento latino-americano emergente.

A verdade é que perto da derrota final do império espanhol na América e o surgimento de novas repúblicas começou-se a construir uma doutrina jurídica própria na região que faria contribuições importantes ao direito internacional, muitas vezes inéditas e que fazem parte das bases que dão as sólidas estruturas em que se assenta o atual sistema internacional, uma vez que destacam-se na Carta da ONU, bem como em outras áreas da ordem jurídica internacional.

Recordando essas cartas do Direito Internacional na Universidade, registro a contribuição extraordinária de nossa região para a construção de um corpus legal para o mundo.

Apesar da eterna oposição dos EUA, as teses defendidas pela diplomacia regional sempre foram vitoriosas no cenário internacional

A 2º Cúpula dos países da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos aprovou acordo que declara a América Latina como Zona de Paz

Já em 1820, plenipotenciários da Colômbia, chefiados por quem mais tarde se tornou o Grande Marechal de Ayacucho, Antonio José de Sucre, sob orientação do Libertador Simón Bolívar, assinou com representantes da monarquia espanhola, o Tratado de Regularização das Guerras, que é considerado o principal antecedente do atual Direito Internacional Humanitário.

O diplomata e jurista argentino Carlos Calvo, autor de “O direito internacional teórico e prático na Europa e América”, estabeleceu antes que qualquer outro jurista o princípio de que as disputas em contratos internacionais não poderiam ser reivindicadas por meios diplomáticos ou através de agressão armada, evitando, dessa forma, que os países mais poderosos pudessem usar estas controvérsias como mecanismos de intervenção.

Calvo apontava à resolução pacífica de conflitos como o único instrumento válido de diplomacia para reger as relações internacionais a partir da consagração da igualdade jurídica entre os Estados, e como base doutrinária para evitar o uso da força. De pronto, esse preceito que foi durante muito tempo vetado pelos Estados Unidos nas conferências panamericanas, moveu-se para a esfera extrarregional, tornando-se de fato o princípio orientador da política internacional de âmbito planetário.

Os preceitos legais delineados por Calvo — após sofrerem aprimoramentos — deram origem à Doutrina Drago, assim denominada em homenagem ao ministro das relações exteriores da Argentina, Luis Maria Drago, que estabeleceu que nenhum Estado estrangeiro poderia usar a força contra uma nação americana com o objetivo de cobrar uma dívida.

Em outro âmbito, e já no século XX, enfrentando a realidade da Europa que testemunhou duas guerras imperialistas em pouco mais de 30 anos, os países latino-americanos conquistaram — após o fim da Segunda Guerra Mundial—, a aceitação universal destes princípios consagrados no direito americano (nenhum dos quais foi elaborado ou promovido pelos Estados Unidos ou Canadá) e conseguiram incorporá-lo à Carta das Nações Unidas, ocupando um lugar de destaque no Artigo 2 daquele documento.

Outras importantes contribuições dos países e da diplomacia latino americana ao posterior desenvolvimento do direito internacional, permitiu que a América Latina fosse a primeira no mundo a declarar-se livre de armas nucleares após a assinatura em 1967 do “Tratado de Tlatelolco para a Proibição de Armas Nucleares na América Latina”, estabelecendo novamente um princípio que logo foi imitado por outras regiões do planeta. Um passo adiante foi a adoção pela 2º Cúpula dos países da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) realizada em Havana, em 2014, do acordo que declara a América Latina e o Caribe como Zona de Paz.

Outras contribuições da América Latina para o direito internacional estão relacionadas com a instituição do asilo diplomático, adotado na América Latina, antes que em qualquer outro lugar no mundo e incluído na lei americana na Convenção de Havana de 1928 e reiterada em Montevidéu (1933) e Caracas (1954) e também os relacionados ao direito de refúgio para as pessoas vitimas de perseguição política ou situação de vulnerabilidade, 

Também ás vésperas do século XX o jurista brasileiro Clóvis Beviláqua delineou as primeiras abordagens em defesa da soberania como eixo da existência dos Estados Nacionais.

Este histórico não seria completo sem mencionar a doutrina latino-americana sobre o reconhecimento dos governos, elaborada pelo ministro das Relações Exteriores do Equador Carlos Tobar e que anos mais tarde, em 1930, deu base à proposta feita pelo ministro das Relações Exteriores do México Genaro Estrada que, adotando os princípios da não-intervenção e da igualdade entre os Estados, formulou um corpo doutrinário para impedir a concessão de reconhecimento aos “governos de fato”, que surgiram da violação da ordem constitucional.

Assim, torna-se claro que os países latino-americanos têm encontrado, ao longo da história, os instrumentos jurídicos necessários para responder a conflitos, crises e disputas através do diálogo e da negociação. Toda vez que estes falharam e se recorreu à guerra fratricida, os únicos vitoriosos foram os Estados Unidos e as oligarquias locais que apropriam dos dividendos da guerra, dos processos de reconstrução e dos resultados dos botins.

Neste contexto, os povos da América Latina e do Caribe, fiéis a uma tradição e uma cultura que tem muitos elementos em comum, têm contribuído para a construção de um marco legal para a região, que em muitos casos tem servido também para todo o mundo.

No entanto, merece registro, que as oligarquias locais fazem uso do quadro legal para seu próprio benefício, mas que a nível internacional algumas regras, apesar das diferenças, ainda permanecem sendo respeitadas.

Essas doutrinas, princípios e preceitos são estudados e conhecidos nas chancelarias de quase todos os países da América Latina e do Caribe. Sei disso porque troco informações e dialogo com colegas de vários países e que, apesar das diferenças políticas ou ideológicas que guiam os governos, boa parte desses estados têm corpo diplomático de alto nível profissional.

Não tenho dúvidas de que esses profissionais não foram previamente informados sobre o teor da declaração do Grupo de Lima datada de 4 de janeiro, em especial sobre o teor do artigo 9 deste documento, em que se afirma sua legalidade sob a ótica do direito internacional.

Estou certo de que se tivessem tido a oportunidade de revisar o documento, o teriam rejeitado, já que o espírito de Calvo, Drago, Bevilaqua, Tobar e muitos outros está presente em muitos funcionários dos corpos diplomáticos dos países da América Latina (excluo Canadá, cujo Ministério das Relações Exteriores é apenas mais uma agência do Departamento de Estado dos Estados Unidos).

O Artigo 9 da Declaração de Lima de 04 de janeiro leva à terrível realidade de que o direito internacional latino-americano encontra-se nas mãos de uma tropa de pessoas ignorantes que não têm medo de ostentar sua mediocridade de emitir opiniões políticas, vestidos em seu caráter de presidentes tentando dar um manto legal a práticas intervencionistas e belicistas.

O que podem entender de direito internacional personagens como Bolsonaro, Piñera, Macri, Duke, Varela, Abdo Benitez, Jimmy Morales, Juan Orlando Hernandez ou Vizcarra quando passaram parte importante de suas vidas, iludindo a justiça em seus países. Os mesmos que acreditam que os seus países (ordem jurídica incluída) são propriedade privada deles e das classes sociais que representam. O que eles querem é apenas que o direito internacional seja subordinado aos seus caprichos e às suas aberrações.

A laia desses personagens e sua intenção de violar a ordem internacional nos expõe a uma situação grave, especialmente porque patrocinam e espalham informações falsas para o mundo, visando apenas criar as condições para uma intervenção militar dos EUA como as realizadas no Iraque, na Líbia e na Síria. Guerras desencadeadas pelos governos imperiais em conluio com a grande mídia transnacional .

Neste cenário, o perigo permanece latente, fundamentado na crença de que o direito internacional deve estar subordinado a seus objetivos políticos e isso coloca nossa região em uma situação de extrema fragilidade legal. Eles serão responsáveis por qualquer agressão contra a Venezuela ou outro país da região e, mais cedo ou mais tarde, pagarão por isso.

sergioro07@hotmail.com

Tradução: João Baptista Pimentel Neto


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Sergio Rodríguez Gelfenstein Consultor e analista internacional venezuelano, formado em Relações Internacionais pela Universidade Central da Venezuela, Magna Cum Laude, e mestre em Relações Internacionais pela mesma universidade. Candidato a Doutor em Estudos Políticos pela Universidad de los Andes (Venezuela)

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