Depois de mais de três meses cobrindo o julgamento do século do “narco mais poderoso do mundo”, culminando com a palavra culpado, seguida de grandes proclamações das autoridades e governantes estadunidenses sobre este grande triunfo de sua guerra contra as drogas (alguém até afirmou que o caso demonstrava que os que duvidam dessa guerra estão equivocados), todos sabemos que isto não muda nada.
Se houve alguma coisa, o julgamento do El Chapo só comprovou uma vez mais o fracasso da guerra antinarcóticos impulsionada há quase meio século. Desde que o capo foi preso e encarcerado pela última vez no México, em 2016, e depois extraditado para cá, há mais drogas ilícitas disponíveis nos Estados Unidos e no mundo.
Há mais cocaína que nunca nas ruas deste país e sua produção mundial chegou a um recorde histórico, da mesma forma que a de ópio, segundo cifras oficiais dos Estados Unidos e da ONU.
Nos Estados Unidos há uma epidemia oficial que matou de overdose mais de 72 mil estadunidenses em 2017 (as cifras oficiais mais recentes), mais que o total de mortes de estadunidenses nas guerras do Vietnã, Iraque e Afeganistão combinadas. Essa epidemia é impulsionada sobretudo por opioides, responsáveis por umas 50 mil mortes, incluída a heroína, mas também por medicamentos legais obtidos com receita médica. Ou seja, alguns dos Chapos deste negócio estão vestidos de doutores e de executivos de empresas farmacêuticas estadunidenses.
O julgamento do El Chapo só comprovou uma vez mais o fracasso da guerra antinarcóticos impulsionada há quase meio século.
Ao festejar o julgamento exitoso contra El Chapo, tanto os promotores como seus chefes em Washington repetiram que tanto os narcos estrangeiros como os mexicanos e os colombianos, envenenam e destroem os cidadãos estadunidenses com suas drogas (aparentemente, os estadunidenses jamais consumiriam tais coisas sem que os homens maus os obrigassem).
O próprio bufão perigoso na Casa Branca usa esse mesmo pretexto quase todos os dias como argumento para o seu muro e suas políticas anti-migrantes. E o julgamento a El Chapo serviu para nutrir essa narrativa e para justificar sua guerra fracassada na qual são investidos uns 50 milhões de dólares por ano.
O presidente Richard Nixon foi o primeiro a declarar essa guerra contra as drogas, em 1971, com propósitos políticos, para criminalizar a crescente onda dissidente contra a guerra e a militância dos afro-estadunidenses, tal como confessou um dos assessores principais do presidente.
Os custos humanos comprovam que esta é uma guerra contra os pobres: do lado mexicano não necessitamos repetir as estatísticas insuportáveis que toda pessoa semiconsciente conhece, muitos não só pelo que leem, mas pelo que têm sofrido. Deste lado, nos Estados Unidos, as estatísticas demonstram algo similar em termos de quem são os que pagam os custos: os pobres, os mais vulneráveis.
Desde que se lançou a guerra contra as drogas, as prisões dos Estados Unidos se encheram de jovens pobres afro-estadunidenses, latinos e mesmo brancos a tal nível que a agora a população estadunidense é a mais encarcerada do mundo (em 2016, 2,2 milhões estavam na prisão), e deles, quase meio milhão por delitos não violentos ligados a drogas. Houve 1,6 milhões de prisões por drogas, a grande maioria só por posse; 46.9 por cento destes eram afro-estadunidenses ou latinos, apesar de só representarem 31,5% da população e de ter índices de consumo parecidos aos dos brancos.
Essa guerra é um negócio, como todas. Os que não estavam no banco dos acusados neste julgamento são os verdadeiros responsáveis, muito mais do que o padrinho de capos sentado aí, pela catástrofe humana que provoca a guerra contra e pelas drogas. Eles incluem os políticos e seus comandantes que desataram e desenharam a guerra contra as drogas tanto aqui como nos países que se meteram nesse esquema made in USA, gerando negócios para os comerciantes de armas, para os profissionais de inteligência, para os de segurança, de prisões e os construtores de muros, entre outros empreiteiros de tudo o que se necessita para fazer uma guerra.
O caso de El Chapo se torna justificativa para tudo isto, tanto para a retórica como para o negócio político e empresarial da guerra por e contra as drogas. A DEA o usou para recrutar: imediatamente depois do julgamento, circulou um anúncio: “Queres perseguir os narcotraficantes maiores do mundo, capos como El Chapo? Queres fazer diferença como um agente especial da DEA?” e constava um endereço para ver os requisitos.
Mas como afirmou o próprio Chapo, da mesma forma que havia dito anteriormente seu sócio El Mayo Zambada, “o dia em que eu não exista, não se reduzirá de nenhuma maneira … este negócio continuará”.
A guerra contra as drogas – e os políticos e especialistas que a impulsionaram – são os que deveriam prestar contas, inclusivo talvez ante um tribunal, aos povos dos Estados Unidos e da América Latina (entre outros). Esse sim seria o julgamento do século.