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Jair Bolsonaro e Abdo Benítez: as cláusulas secretas do neoliberalismo latino-americano

A negociata incluiu a redação de cláusulas secretas, que foram reveladas na denúncia feita pelo chefe da Administração Nacional de Eletricidade
Jorge Elbaum
ALAI / Agência Latino America de Informação
Quito

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A onda de mandatários neoliberais que sucedeu os projetos progressistas e nacional-populares na América Latina se viu impulsada por discursos moralistas e republicanos, sustentados por compromissos com a transparência institucional e o repúdio à corrupção estrutural instalada em seus países.

Contudo, essa sobrecarga de novos protagonistas se viu opacada pelo surgimento de repetidos escândalos envolvendo esse grupo de empresários que se tornaram presidentes, e seus mais íntimos colaboradores. Um desses casos é o da Represa Binacional de Itaipu, o recente descobrimento de uma negociação secreta entre as mais altas autoridades do Brasil e do Paraguai, e a parlamentares de ambos os países, que levou ao início das investigações por parte dos paraguaios sobre uma decisão que seria incompatível com as funções governamentais.

A negociata incluiu a redação de cláusulas secretas, que foram reveladas na denúncia feita pelo chefe da Administração Nacional de Eletricidade (ANDE), Pedro Ferreira, que se negou a aceitar a comercialização de energia hidroelétrica excedente (produzida em Itaipu) a uma entidade privada ligada à família do presidente brasileiro.

Esses tais megawatts (MW) sobrantes seriam adquiridos pelos brasileiros por um valor de seis dólares cada, quando a cotização de mercado ronda os 40 dólares por MW. Uma vez incorporados à rede pela empresa brasileira LEROS (ligada aos Bolsonaro), seria vendida a um preço de 80 dólares por MW, registrando um potencial e módico lucro de 1200%

A corrução ficou exposta quando o chefe da ANDE se negou a assinar o contrato, renunciando ao seu posto no dia 24 de julho passado. Uma investigação do diário ABC Color deixou em evidencia que o embaixador paraguaio Federico González, intermediário entre a estatal ANDE e a empresa LEROS, pressionou Ferreira para que aceitasse ser cúmplice desse acordo, e fizesse vistas grossas às cláusulas secretas do acordo alcançado em maio passado entre os presidentes Bolsonaro e Abdo Benítez.

As negociações para alcançar a aprovação do contrato ilícito foram orientadas por José Rodríguez González, filho de María Epifania González, secretaria da unidade de Prevenção de Lavagem de Dinheiro e Bens (SEPRELAD), que devia renunciar uma vez difundidas essas cláusulas secretas gestadas por seu filho. As tratativas confidenciais foram também tiveram a supervisão de Abdo Benítez e do vice-presidente Hugo Velázquez, que buscaram beneficiar a família Bolsonaro. A articulação entre Rodríguez e os mandatários ficou evidente após a difusão pública dos intercâmbios de mensagens por WhatsApp, expostos por meios paraguaios e brasileiros.

A negociata incluiu a redação de cláusulas secretas, que foram reveladas na denúncia feita pelo chefe da Administração Nacional de Eletricidade

ALAI
Jair Bolsonaro e Mario Abdo

Água suja

Em tais veículos, ficou evidente a pressão exercida por Abdo Benítez sobre o chefe da ANDE, que alertou que a assinatura do tal convênio configura um ato ilícito, além de uma perda de mais de 200 milhões de dólares para os seus concidadãos, que teriam que pagar a energia com um preço altíssimo. Rodríguez pressionou com uma série de mensagens a Ferreira, forçando-o a apoiar as cláusulas secretas.

Em uma dessas comunicações, ele exigia a aceitação da proposta brasileira, afirmando que o representante comercial da empresa LEROS havia viajado ao Paraguai “para dar seguimento ao acordo de compra e venda de energia excedente ao mercado brasileiro”. A reiterada negativa de Ferreira fez Rodríguez advertir que “a autorização de ambos os presidentes (Abdo e Bolsonaro) já está dada”. Em sua declaração testemunhal à promotoria, o intermediário que atuou a favor da LEROS aceitou a responsabilidade sobre as mensagens enviadas na pressão a Ferreira, e se desculpou por ter mencionado (como era de esperar) os presidentes.

Durante os dois últimos meses, o engenheiro Ferreira avisou que as vendas da energia excedente deveriam ser realizadas mediante licitação, e que não era possível fazê-lo de forma arbitrária à LEROS. Tal declaração gerou a pressão do próprio presidente paraguaio, que o obrigou a destravar a situação.

O Tratado de Itaipu estipula que a energia deve ser compartilhada em partes iguais, e autoriza a negociar anualmente os excedentes energéticos. Como o Paraguai só consume 15 % do total, vende o 35 % restante ao seu sócio.

Durante as últimas três décadas, o Paraguai aceitou valores paupérrimos por tal excedente, mas em 2008, com um acordo de integração regional entre Lula e o então presidente Fernando Lugo, se chegou a um patamar mais equitativo, que permitiu financiar minimamente o desenvolvimento do país guarani. Entretanto, a aplicação da cláusula secreta assinada em maio faria o Paraguai retroceder a uma situação de maior vulnerabilidade.

Vizinhos virtuosos

O escândalo já gerou a renúncia do chanceler Luis Castiglione, do próprio Pedro Ferreira e do diretor técnico de Itaipu, José Sánchez Tillería, entre outros funcionários. Ainda falta saber o resultado da investigação sobre as cláusulas secretas que precipitaram a interrupção do acordo, por parte de uma comissão do Congresso.

Também há uma etapa de resolução da conformação de uma unidade legislativa de cinco membros, que avaliará o pedido de juízo político das máximas autoridades governamentais, acusadas de traição à pátria. Em forma paralela, o Ministério Público paraguaio nomeou três procuradores (Liliana Alcaraz, Susy Riquelme e Marcelo Pecci), como encarregados de auditar a administração pública, e encontrar possíveis delitos.

Os dirigentes latino-americanos que asseguram ser cuidadosos com as instituições e que repetidamente se autoproclamam obedientes às normativas legais, não cumpriram com suas promessas: em março de 2018, o então presidente do Peru, Pedro Pablo Kuczynski, renunciou após ser descoberto em vínculos espúrios com a empresa Odebrecht, e acusado simultaneamente por compra de votos no Congresso.

No Brasil, grande parte dos políticos que apoiaram o golpe de Estado contra Dilma Rousseff foram condenados por desvio de verbas, coação, evasão de impostos e enriquecimento ilícito. Entre eles está Michel Temer, que sucedeu a mandatária do PT (Partido dos Trabalhadores). Por sua parte, o magistrado que realizou a detenção de Lula – Sérgio Moro, atual ministro de Justiça do governo de Jair Bolsonaro – é investigado por prevaricação, justamente por suas decisões envolvendo o líder metalúrgico, que poderiam ter sido manipuladas, segundo o que vem sendo revelado em uma recente série de reportagens.

No caso da Argentina, as suspeitas sobre o governo macrista se vinculam às operações realizadas pelo Poder Executivo, junto com jornalistas, serviços de inteligência e delegações diplomáticas estrangeiras, todos cúmplices na configuração de ações judiciais fictícias destinadas a prender opositores políticos. Além disso, também há denúncias por tráfico de influências e constantes conflitos de interesses habilitados por seus investidores familiares em setores energéticos cruciais para a economia local.

Na Colômbia, os cruzados do republicanismo neoliberal são acusados de envolvimento em homicídios e desaparições executadas sob a mais absoluta passividade oficial. Desde que Iván Duque assumiu o poder, já foram contabilizados mais 130 assassinatos de dirigentes sociais, e a virtude institucional anunciada tampouco parece acompanhar seu governo: 71 % dos consultados em uma pesquisa do instituto Gallup afirma que desde a corrupção no país aumentou em seu governo.

A transparência, as pomposas mensagens de louvor à honestidade institucional e o proclamado respeito pelas normativas se mostraram um paradoxal disfarce estilizado. O neoliberalismo se gaba de uma virtude republicana que tem se mostrado cada vez mais como um discurso vazio, sem provas concretas de que isso seja realmente a sua prática, e sim, somente, um slogan a ser difundido em tempos eleitorais.

 

– Jorge Elbaum é sociólogo, doutor em Ciências Econômicas, analista sênior do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE). 

*Publicado originalmente em estrategia.la

Tradução de Victor Farinelli

https://www.alainet.org/pt/articulo/201537

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Jorge Elbaum

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