Nestes dias chega ao fim a primeira fase do amplo espetáculo que foi montado em torno aos direitos dos povos originários. Mas não está claro para quem foi organizado.
O Presidente e o país inteiro serão informados que foi realizada uma ampla consulta prévia, livre e informada, apegada a normas nacionais e internacionais, e que será possível, por fim, legislar para reconhecer plenamente os direitos dos povos indígenas e assim cumprir com os acordos de San Andrés e com dívidas que o país têm com eles desde que nasceu.
Têm se multiplicado as críticas sobre o exercício. Por exemplo, tem razão o reconhecido advogado Francisco López Bárcenas quando sustenta que o direito à consulta foi trivializado. Para ele, o que esteve sendo feito não foi uma consulta, mas só uma forma de recolher opiniões para legitimar o que se decidiu de antemão.
Mais que analisar a qualidade do espetáculo, questionado com muito bons argumentos, importa perguntar pelo que se havia decidido, o que se queria encobrir com isso. Foi denunciado que, longe de proteger os povos, as reformas propostas preparam novas vias ao despojo. Como assinala Francisco, uma questão central é a dos “recursos”, a forma como é abordada, em particular quando são considerados “estratégicos”.
Foto de Duilio Rodríguez // @Duiliorodriguez
A palavra “recurso” significava originalmente “vida”. Sua raiz evocava a imagem de uma fonte que continuamente surgia do solo. Aludia ao poder de auto regeneração da natureza e sua prodigiosa criatividade. Como explicou Vandana Shiva, aludia também a uma antiga relação entre os seres humanos e a natureza, que sugeria reciprocidade. Com o industrialismo e o colonialismo produziu-se uma quebra conceitual. No final do século XIX já se havia despojado a natureza de seu poder gerador, para vê-la somente como um depósito de matérias primas que hão de ser transformadas em insumos para a produção de mercadorias. Na década de 1960, Nações Unidas já chamava de “recurso” qualquer material ou condição existente na natureza que poderia estar sujeito à exploração econômica. Os seres humanos ficaram na mesma condição que a natureza. Já se falava, normalmente, de recursos naturais e de recursos humanos. A exploração nos definia.
Vandana descreveu também o processo patriarcal de dessacralização da natureza, desde Bacon, e como, de forma paralela, desmantelou-se a ideia da realidade natural como um âmbito de comunidade, um bem comum ao que todos e todas hão de ter acesso e pelo qual são responsáveis.
Entre nossos povos persiste a forma antiga de perceber a Mãe Terra e de se relacionar com ela com respeito e reciprocidade. Reduzir ao aspecto econômico suas terras e as relações que com eles se têm, tratando-os como meros recursos, nega aos povos o direito a ser o que são e senta bases para o despojo.
Multidão de povos expressam hoje, no país inteiro, sua resistência às concessões mineiras que foram outorgadas sem o seu consentimento e que ameaçam suas terras ou já as ocuparam. O novo governo não pensa dar mais concessões… mas afirma que terá que respeitar as existentes, que são precisamente as que são motivo de conflito e abarcam uma enorme porção do país.
Os limites e o sentido do que faz o governo se mostram ainda mais claramente em outra questão. Toda a propaganda sobre o assunto se refere continuamente aos direitos dos “povos” e se proclama com exaltação que as reformas cumprirão finalmente os acordos de San Andrés, ao reconhecê-los como sujeitos de direito público.
Não é assim. Sob o guarda-chuva celebrativo dos direitos à livre determinação e à autonomia se reduz de novo o exercício às comunidades indígenas, aos municípios indígenas e às associações entre eles. Uma vez mais, junto com a linguagem econômica dominante nas reformas, está o viés individualizante, a redução de todos os direitos ao seu exercício individual. Entrega-se a primogenitura por um prato de lentilhas que pode ser envenenado: o do acesso direto a recursos públicos pelas comunidades.
É certo que reconhecer realmente aqueles que mantêm até agora sua condição comunal, que se admite desde a Constituição de 1917, mas não se quer aceitar, exigiria uma transformação profunda do Estado mexicano, concebido desde que nasceu como um pacto social entre indivíduos. Foi essa a transformação que foi acordada em San Andrés.
Pelo que se tem à vista, em consequência, não é exagero sustentar que o interlocutor real de todo o espetáculo é o capital, as corporações privadas. Trata-se de que saibam que o novo governo continua disposto a pôr à sua disposição terras e territórios que os povos estão decididos a defender. Esses povos terão agora novos obstáculos legais em sua luta.
*La Jornada, especial para Diálogos do Sul — Direitos reservados.
Veja também