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Argentina: entenda história do peronismo e por que Bolsonaro polemiza com Fernández

Movimento nunca foi de “esquerda” e é, tão só, um amálgama de populismo e sindicalismo. Mas, e se fosse?
Flávio Tavares
Diálogos do Sul
São Paulo (SP)

Tradução:

A Argentina é o vizinho que amamos e odiamos, admiramos e invejamos não só no futebol mas, também, na vida cotidiana e na política. Os dois governos sempre dissimularam a rivalidade que leva ao conflito e, assim, as boas maneiras da diplomacia abriram caminhos entre espinhos. O turismo recíproco completou o entendimento.

Nós invejamos e amamos Buenos Aires. Eles invejam e amam Búzios e nossas praias.

Pela primeira vez, porém, agora um dos governos – exatamente o nosso, do Brasil – toma agressiva posição contra o vizinho e parceiro no comércio, no turismo e na amizade. A eleição presidencial argentina (em que o peronista Alberto Fernández, que se define como “liberal de esquerda”, derrotou o conservador Maurício Macri, que tentava a reeleição) acendeu a ira de Bolsonaro. Já antes, nosso presidente pronunciou-se a favor de Macri, num gesto que, lá, foi visto como “intromissão alheia em assunto interno”, favorecendo o adversário peronista.

Mas Bolsonaro foi adiante. Agora, afirma que não felicitará o novo presidente e pensa, até, em pedir a retirada da Argentina do Mercosul. A medida pode se estender ao Uruguai, se a esquerda continuar no governo daquele país, disse também. Assim, o Mercosul se reduziria à esquálida união de Brasil e Paraguai, numa mancebia de contrabando e marcas falsificadas dominando o comércio.

Movimento nunca foi de “esquerda” e é, tão só, um amálgama de populismo e sindicalismo. Mas, e se fosse?

Brasil 247
Presidente argentino Alberto Fernández e presidente brasileiro Jair Bolsonaro

Morei na capital da Argentina ao longo de 22 anos como correspondente do Estadão e de outras publicações e conheci os labirintos da política e da economia. A partir de 1974, vivi os dois confusos anos do governo de Isabelita, viúva de Juan Perón e vice-presidente do marido. Depois, os 17 meses iniciais da ditadura militar, quando a morte governava tudo. Retornei em 1983, com a redemocratização que elegeu o liberal de esquerda Raul Alfonsín.

Acompanhei os dois governos de direita do peronista Carlos Menem e o caos implantado, desde então, por diferentes presidentes, com inflação e corrupção destruindo o país que, além de “celeiro do mundo”, fora o primeiro a tentar se industrializar na América do Sul.

Nesses anos, vi a mistificação apoderar-se da política e do cotidiano. A pujança construída até os anos 1950 foi destruída a cada dia. Mas tudo, antes, fora tão sólido que a Argentina vivia pendurada no passado. A decadência já mostrava o rosto, mas Buenos Aires ainda era “a Paris latino-americana”.

As férteis terras do pampa garantiam a riqueza agrícola-pastoril. O nível de vida urbano e rural ainda era o melhor da América Latina. A escola obrigatória, instituída em 1870 pelo presidente Sarmiento, e ampliada em 1918 pela Reforma Universitária (nascida em Córdoba, no interior) faziam da Argentina um país diferente, ou superior, na subdesenvolvida América Latina.

O primeiro governo de Perón (iniciado em 1946) amordaçou os opositores e controlou os sindicatos, mas instituiu modelares planos de educação e de saúde pública. Em parte, continuam, tal qual as livrarias, num país de livros e bifes suculentos. Em Buenos Aires, em ônibus, trem ou metrô, mesmo de pé, liam-se jornais. Cada um dos três principais rodavam mais de 1 milhão de exemplares na cidade de 9 milhões de habitantes e num país de 30 milhões, na época.

Parte disso perdura, mas quase só como reminiscência de um passado que virou nostalgia. Isto explica o queixume perene dos “porteños” (habitantes de Buenos Aires), afáveis com os estrangeiros e rudes entre si.

E também explica que até os anti-peronistas tenham saudades dos tempos de “Perón presidente”, a derradeira época em que a velha pujança do início do Século XX ainda permanecia, mesmo se apagando gradualmente.

Agora, na eleição presidencial ressurgiu o velho tango que a cegueira ideologizada de Bolsonaro não percebeu. Nosso presidente quer se ver livre do país com o qual partilhamos rios e 1300 quilômetros de fronteiras comuns, e é nosso maior parceiro comercial nas Américas? Porque o tom duro, quase belicoso, como se Brasil e Argentina fossem inimigos quase em guerra? Ou (por se dizer “de esquerda”) o futuro governo peronista nos ameaça?

O peronismo nunca foi de “esquerda” e é, tão só, um amálgama de populismo e sindicalismo. Mas, e se fosse?

Quando presidente, o peronista Carlos Menem namorou “a direita” e desfez, até, algumas reformas sociais do próprio Perón. Os governos de Néstor e Cristina Kirchner priorizaram o “assistencialismo”, no estilo demagógico do nosso Bolsa Família, e sobre ambos pesam, hoje, denúncias de corrupção. A ex-presidente (agora eleita vice) responde a uma dezena de processos judiciais.

Também o não reeleito Maurício Macri é suspeito de corrupção por favorecer, no governo, a própria família em multimilionárias negociatas. O candidato que Bolsonaro recomendou aos argentinos é um empresário ricaço que entrou à política através do futebol, ao presidir (e financiar) o popular Boca Juniors. No poder, não se esqueceu da família.

O que é isso, porém, comparado ao dia a dia brasileiro? Nas “redes”, nosso presidente se transforma em “leão” para espantar da selva as “hienas”, que seriam a ONU, o Supremo Tribunal, a OAB, a imprensa e os opositores… Haverá ridículo mais infantil e, também, mais perigoso?

A Argentina teve três Prêmios Nobel em ciências e um Prêmio Nobel da Paz. A figura universal, porém, foi Evita Perón, que morreu jovem, bela e politicamente poderosa em 1952 e reapareceu na figura de Madonna num filme musical de Hollywood, anos atrás, cantando o inesquecível “não chores por mim, Argentina”. 

Agora, a tragédia é aqui. Cada brasileiro pode repetir a canção e chorar por conta própria pelos disparates que nos governam.

*Flávio Tavares, jornalista e escritor, Prêmio Jaboti de Literatura 2000, Prêmio APCA em 2004, professor aposentado da UnB e colaborador de Diálogos do Sul.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Flávio Tavares Jornalista e escritor, professor da Universidade de Brasília, Prêmio Jabuti de Literatura em 2000 e 2005, Prêmio APCA em 2004

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