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Panamá: da Revolução à Invasão pelas forças yanquis e o retrocesso ao estado colonial

Para entender o que foi e o porquê da invasão do Panamá por tropas dos Estados Unidos, em dezembro de 1989, é preciso ignorar as versões da potência imperial, que encheram as páginas dos jornais nesses dias
Paulo Cannabrava Filho
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Para entender o que foi e o porquê da invasão do Panamá por tropas dos Estados Unidos, em dezembro de 1989, é preciso fazer um recorrido pela história e pela realidade factual dos fatos da época, ignorando as versões da potência imperial, que encheram as páginas dos jornais nesses dias. 

Para facilitar, ou melhor, para não fazer muito longo este texto, considerarei quatro fases dessa história a partir da década de 1960, e fatos de que este repórter foi testemunha. 

O que era o Panamá antes de 1968? 

Era o único país com cinco fronteiras: ao norte o Pacífico, ao sul, o Atlântico, a oeste a Colômbia, a Leste a Costa Rica e ao centro os Estados Unidos, a Zona do Canal do Panamá, o entorno do canal interoceânico de 80 km de comprimento, ligando o Atlântico ao Pacífico. 

Na realidade se tratava de um enclave colonial, com população branca, no qual vigoravam as leis do Estado do Alabama, um dos mais racistas do sul dos Estados Unidos, protegido por uma centena de bases militares, navais, aéreas e terrestres nas quais eram treinadas as tropas especiais – rangers- que invadiam países em toda parte para perpetrar assassinatos. Nesse mesmo enclave funcionava a Escola das Américas, centro de adestramento de policiais, soldados e oficiais de Nossa América, tornando-os pretores dos interesses imperiais.

A pretendida República, nascida em 1900, por obra e graça dos interesses dos Estados Unidos, era dominada por uma oligarquia agrária e comercial, e se mantinha com um intenso comércio em uma zona livre de aduanas no entorno do Canal. Era um paraíso fiscal com profusão de bancos e cassinos que facilitavam a lavagem de dinheiro, tráfico de todo tipo e prostituição.

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É preciso recuperar o Panamá da invasão imperialista dos EUA que destruiu o país

Para alguns setores da sociedade ser corrupto era estratégia de sobrevivência. Para o setor político e administrativo do Estado, ser corrupto era condição. Era muito parecido com o que era Cuba antes da Revolução de 1959. 

Terra de ninguém em que imperava a pobreza e a miséria por toda parte, e pequenos guetos de gente mais abastada. Na cidade do Panamá, na costa do Pacífico, capital política e administrativa do Estado, a pobreza vivia confinada em favelas sobre palafitas em áreas de absoluta insalubridade. Sim. Assim era favela de El Chorrillo, e isso se repetia em torno de Cólon, a principal cidade da costa atlântica, entrada e saída do trânsito pelo Canal. 

Contra esse estado de coisas rebelaram-se setores da juventude e intelectuais e iniciaram uma guerrilha de libertação nacional. O que os motivava era absolutamente justo: o direito a ser livres e viver em um Estado soberano.

No Panamá, como na Cuba do sargento Fulgêncio Baptista, que de comandante de uma Guarda Nacional passou a ditador, a Guarda Nacional Panamenha não passava de guarda pretoriana dos interesses do Império tão presentes nas tropas ianques que ocupavam o território. 

Essa guarda pretoriana foi enviada para combater os guerrilheiros. Mas o comando da guarda deu-se conta de que estavam matando o que de melhor havia na nação: a juventude, o futuro. Diante disso, em lugar de combater a guerrilha decidiram derrubar o podre poder da oligarquia, nesse momento com Arnulfo Arias, um alcoólatra, na presidência. 

Consumado o golpe de Estado, como soe acontecer, teve início a disputa pelo poder dentro do poder. Essa disputa foi ganha pelo melhor, precisamente aquele que não quis enfrentar a juventude sublevada. 0 general Omar Torrijos Herrera. E Omar chama essa juventude sublevada, os intelectuais, os líderes dos movimentos sindical, estudantil e profissionais, dirigentes dos partidos de esquerda para com ele levar a cabo o processo de libertação nacional.  O foco, a bandeira principal para unir a Nação: recuperar a soberania sobre todo o território nacional, o que significava um confronto direto com a maior potência bélica do planeta fincada em seu próprio território. 

Era um desafio que não podia ser vencido pelas armas. Omar sabia disso e conseguiu tranquilizar os ânimos da juventude rebelde. O inimigo estava dentro de casa. O processo de libertação iniciado por Omar Torrijos tinha muitos significados:

Livrar-se e uma oligarquia corrupta e servil aos EUA;

Transformar a Guarda Nacional de força pretoriana, servil aos EUA, em um exército protetor da soberania nacional e do povo;

Liquidar com o enclave colonial e fincar a bandeira panamenha no território da Zona do Canal, mandando de volta para casa os soldados e oficiais ianques invasores;

E talvez o maior dos desafios, o de se libertar do colonialismo, fincado na estrutura mental de uma oligarquia comercial e agrária sem sentido de pátria, e de uma classe média contaminada; dar início a um processo de desenvolvimento autônomo, sustentável ambientalmente e de inclusão social. 

Essa luta foi travada pelo povo panamenho sob o comando do general Omar Torrijos Herrera, um General de Homens Livres, como se disse de Augusto César Sandino, que na Nicarágua dos anos 1930 expulsou as tropas ianques invasoras.

O povo o chamava de Omar, exigia e mandava, e ele obedecia. Nada artificial… era um homem do povo, filho de pais professores de escola pública de província, que entrou para a escola militar por falta de opção de emprego melhor. O povo o amava e o respeitava. Durante os dez anos ou pouco mais em que comandou essa luta pela libertação do país, ao mesmo tempo, em que realizava uma Revolução político-social e econômica, nunca mentiu nem omitiu nada do que acontecia nessa guerra. 

O auge dessa guerra ocorreu em 1979 quando o Senado dos Estados Unidos ratificou o tratado que Omar Torrijos havia firmado com James Carter, traçando um programa de dez anos de retirada e entrega, até a total soberania do Panamá sobre seu território. Ao conhecer a notícia o povo inteiro derrubou a cercas e entrou exultante na zona antes proibida, baixou a bandeira ianque e hasteou a bandeira panamenha. 

Foi, seguramente, a maior derrota dos Estados Unidos depois da vergonhosa expulsão do Vietnã pelas guerrilhas de Giap e Ho Chi Min. Vietnã estava a 12 mil milhas de distância e o confronto foi bélico. As esquadras navais, o poderoso exército, os bombardeios com napalm e desfolhantes contra a astúcia. Venceu a astúcia. Mas o saldo foi de milhões de mortos e muito sofrimento, e ter que reconstruir a partir de terras arrasadas. 

No Panamá não houve um só tiro, uma só vítima desse confronto. Foi pura astúcia. Pura inteligência, convicção e comunicação, diplomacia e solidariedade. Inclusive o Conselho de Segurança da ONU reuniu-se para avaliar o confronto e por onze votos considerou justo o pleito do Panamá, por ser um pleito de libertação nacional. Onze votos e um veto. Mas o mundo conheceu a realidade e foi solidário. 

Missão cumprida, o general Omar Torrijos entregou o poder que acumulava como chefe de Estado e comandante da Guarda Nacional e pretendeu se aposentar. A condução política e administrativa do país foi assumida pelo Partido Revolucionário Democrático (PRD), através de eleições, partido que havia sido criado para dar continuidade ao processo de libertação, agora na construção da pátria independente e soberana. 

Recuperada a soberania sobre o Canal, o general Omar Torrijos dedicou-se a ajudar a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) a derrotar a ditadura do clã Somoza, que há 40 anos explorava e reprimia o povo, servindo aos Estados Unidos.

Inteligência, comunicação, diplomacia foram colocadas a serviço da libertação do povo nicaraguense. Como o confronto ali era também militar, deixou que 600 homens da Guarda Nacional se retirassem e fossem reforçar a frente sul da FSLN. Com isso garantiu uma derrota a mais dos Estados Unidos no solo de Nossa América. 

Os Estados Unidos, inconformados com essa dupla perda de territórios coloniais iniciaram imediatamente e contraofensiva

Para entender o que foi e o porquê da invasão do Panamá por tropas dos Estados Unidos, em dezembro de 1989, é preciso ignorar as versões da potência imperial, que encheram as páginas dos jornais nesses dias

Biblioteca do Congresso do Panamá
Foram admitidos 600 mortos, mas nunca se soube realmente o número de feridos e desaparecidos

Panamá em Revolução além de Libertação

Durante esse decênio de luta contra a presença física do imperialismo no território e já desalojada a oligarquia do poder, o povo panamenho realizava sua revolução social. O que era o Congresso Nacional, oligarca e corrupto, além de entreguista, foi substituído por uma Assembleia Nacional Popular, a Assembleia de Corregimentos, e os cargos da administração do estado pela primeira vez ocupados por especialistas nas diferentes áreas e sabendo que se tratava de uma grande transformação.

Os corregimentos correspondiam ao que em grande número de Estados se conhece como municípios, a menor célula administrativa. Governados por uma assembleia eleita localmente que por sua vez elegia seus representantes à Assembleia Nacional de Corregimentos, o poder legislativo e supremo do Estado. O presidente e o vice-presidente eram eleitos por voto universal e direto a cada quatro anos. 

Os Estados Unidos jamais se conformaram com haver perdido essa guerra. Já no dia seguinte começaram a conspirar e agir para desestabilizar a frágil democracia popular panamenha. 

Omar sonhava com uma democracia direta, exercida pelo próprio povo. Construir a identidade nacional era outro desafio a ser encarado pelas instituições da sociedade civil e pelos povos indígenas. Às administrações do Estado competia agora realizar o projeto nacional de desenvolvimento. 

O Ministério da Saúde, por exemplo, assumiu o saneamento básico, garantindo água limpa para todos, o que em curto prazo reduziu a mortalidade infantil a níveis de primeiro mundo. 

Os ingressos pela administração do Canal logo se constituíram no principal recurso, mas era necessário diversificar, gerar outras fontes de produção e emprego. Para desenvolver outras atividades não havia energia elétrica suficiente; para atender à demanda foi construída a hidrelétrica do Bayano.

Nenhuma criança fora da escola, foi a meta imposta ao setor da Educação. 

As palafitas de Chorrillo foram derrubadas, o lodaçal aterrado e sobre ele foram construídas moradias dignas. As pessoas desse bairro logo se transformaram em um dos principais suportes do processo revolucionário. 

Início da contraofensiva ianque

No que se refere ao Panamá a contraofensiva teve início com o assassinato do general Omar Torrijos, em 31 de julho de 1981, fazendo explodir o avião que o conduzia de sua casa na cidade do Panamá para um assentamento camponês, projeto de desenvolvimento agrícola que ele dirigia na província de Coclé. 

Torrijos e os campesinos panamenhos / Foto: Biblioteca do Congresso do Panamá

Contra a Nicarágua começa neste mesmo ano com a CIA organizando, financiando e armando mercenários na fronteira nicaraguense para iniciar uma guerra que tornaria ainda mais difícil a árdua tarefa de construção de uma pátria livre e soberana. O esforço exigido para as tarefas de desenvolvimento sendo desviado para o esforço de guerra exigido pela defesa da soberania. 

A contraofensiva contra o processo panamenho culmina com a invasão do país em 20 de dezembro de 1989, liquidando com a democracia popular, reabrindo o parlamento antigo e colocando no poder um governo títere, fiel aos interesses do Império. 

Para a mídia, que comemora 30 anos dessa invasão, os Estados Unidos livraram o Panamá de uma ditadura a serviço do narcotráfico. A mídia omite o que há de verdade nessa história. 

Antonio Noriega foi o homem forte de Omar Torrijos durante todo o processo da luta de libertação. Era o chefe da Inteligência (G2) da Guarda Nacional e o responsável pela segurança do general Torrijos. Entretanto, Noriega estava longe de poder ser um sucessor de Omar, um gigante da humanidade. 

Noriega deslumbrou-se com o poder. De caráter fraco, aceitou estar na folha de pagamento da CIA.  A CIA o envolveu no tráfico de cocaína. É preciso recordar que para promover a guerra mercenária contra a Revolução Nicaraguense, a CIA, autorizada por Reagan e em sequência por Bush (pai), traficava cocaína colombiana. Os recursos serviam para comprar armas e pagar os mercenários. Esse escândalo ficou conhecido como Irã/Contras. A invasão do Panamá como “operação justa causa”. 

Se a destituição de Noriega fosse por uma questão moral, com ele deveriam ter sido presos e condenados todos os que o comandavam, como Oliver North, Kissinger e os presidentes Reagan e Bush. O objetivo real era acabar de vez com o torrijismo e tudo o que ele representava e poderia ainda mover o povo em sua defesa. 

A invasão se deu com força total. A aviação começou bombardeando os bairros em que poderia haver resistência. Em El Chorrillo não sobrou pedra sobre pedra. Em seguida, um exército de mais de 27 mil homens ocupou a capital matando quem se atrevesse a se opor. Milhares de mortos, milhares de feridos, incontáveis pessoas desesperadas diante da impotência, de nada poder fazer contra a fúria da barbárie. 

A invasão teve resistência e foram mortos mais de 300 militares panamenhos e mais de mil soldados foram aprisionados. Do lado civil, foram admitidos 600 mortos, mas nunca se soube realmente o número de desaparecidos, que pode dobrar o número de mortos. O maior número de vítimas esteve entre a juventude, que novamente tentou voltar às montanhas para resistir. 

Consumada a invasão, capturaram Noriega em 3 de janeiro de 1979, levaram-no aos Estados Unidos onde foi condenado a 40 anos de prisão acusado de narcotráfico. Libertado depois de 17 anos, em 1992, foi extraditado para a França onde ficou preso por mais sete anos, agora acusado de lavagem de dinheiro. Em 2011, a França o devolveu ao Panamá para que fosse encarcerado novamente até sua morte, por câncer no cérebro em 2017.

Conheci Noriega quando era o homem forte de Torrijos e depois, quando assumiu o comando da Guarda Nacional após a renúncia de Rubén Darío Paredes em 1983, e assumiu também o comando do Estado que governaria até a invasão estadunidense em 1989. 

Quando o jornalista Rubén Darío Murgas, diretor do diário Crítica, e com Noriega no poder também diretor da Rádio Nacional, advertiu-o em 19 de dezembro que as tropas dos EUA estavam se movendo para o Panamá, ele reagiu dizendo que se tratava de troca de pessoal por causa das festas de fim de ano. Quando lhe disseram que se tratava de tropas especiais de Fort Bragg, ficou preocupado. Nunca pensou que pudesse ser vítima de traição de seus amigos ianques. 

Está muito claro que ele foi vítima de uma manobra do governo estadunidense. Vaidoso, débil moralmente, deixou-se seduzir pelo canto da sereia; Dinheiro fácil e poder oferecido pela CIA. Isso custou ao povo panamenho o fim do sonho da revolução social de Torrijos. Panamá voltou a ser o que era antes da Revolução de 1968: um paraíso fiscal com bancos de todo o mundo; um cassino em cada um dos milhares de hotéis; lavagem de dinheiro dos colombianos, corrupção e prostituição e, de novo, a presença dos ianques com suas sofisticadas bases de escuta eletrônica. 

*Paulo Cannabrava Filho é jornalista, editor de Diálogos do Sul. Coordenou a comunicação da Comissão de Negociação dos Novos Tratados. 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1957. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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