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Quatro meses após protestos que abalaram projeto neoliberal, Chile prepara nova batalha

Direita tenta contraofensiva: leis severas, prisões em massa, soda cáustica sobre manifestantes. Mas maioria, que já perdeu o medo, aposta na Constituinte e segue nas ruas
Paul Walder
Outras Palavras
São Paulo (SP)

Tradução:

É possível que estejamos assistindo à queda de um regime, ao fim da democracia representativa. É possível que tenhamos dado um passo para além da pós-democracia e já nos encontremos em uma espaço político murado. A democracia liberal, que nunca foi muito democrática, e hoje todo o Chile já sabe disso, se transforma em novas estruturas para proteger aquilo que sempre cuidou: o regime oligárquico instalado há mais de 40 anos.

O sistema político dos últimos 30 anos, aquela democracia de baixa intensidade útil para os anos de transição da ditadura à ordem de mercado binominal, não foi capaz de dar uma resposta política às demandas atuais da população. Aquele regime incorporou e internalizou a crise social como uma crise política. Não uma crise de governo, mas de toda a estrutura política, desde suas bases enraizadas nos poderes financeiros, extrativistas e comerciais – com a Penta [holding que lucra, entre outros, com a Previdência Social no Chile] e a SQM [maior produtora de lítio do mundo] na ponta do iceberg neoliberal – ao governo da vez e toda a casta de parlamentares, inclusive seus satélites e parasitas. Uma classe que se fechou em si mesma.

A história no Chile avança apavorada. E a política, que não é o político, convenhamos, solta suas âncoras para frear seus privilégios. Sem vergonha alguma, como se fechasse os olhos em um cinismo sem limites, se pode negar e mentir diante daquilo que é mais evidente. É isso o aconteceu nos últimos dez dias. O Senado rechaçou uma legislação sobre a água como bem público e manteve a propriedade do recurso como ativo comercial e, na semana seguinte, aprovou mais cadeia para os manifestantes em suas diversas expressões, como a lei antissaques e antibarricadas.

Direita tenta contraofensiva: leis severas, prisões em massa, soda cáustica sobre manifestantes. Mas maioria, que já perdeu o medo, aposta na Constituinte e segue nas ruas

Reprodução
Uma população que perdeu o medo é também um povo preparado para a luta.

Sebastián Piñera anunciou uma guerra após o estrondoso outubro. E está cumprindo sua advertência. Sem responder nenhuma das reivindicações sociais, sua única ação é na área policial. As violações aos direitos humanos, denunciadas por várias organizações como a Anistia Internacional, a Human Rights Watch e a ONU, aumentam sob proteção do governo e de todo o aparato institucional, como o Poder Judiciário, o Parlamento e os meios de comunicação, imbricados com os interesses políticos e econômicos.

Nesses dias houve situações gravíssimas como carabineros [polícia chilena] que usaram líquidos irritantes [como soda cáusticas] contra os manifestantes e sequestros de ativistas por civis, incidentes só denunciados através das redes sociais e que não foram condenados ou explicados por nenhuma autoridade.

O Chile avança com rapidez, ou talvez já esteja em anomia política. Uma classe política obcecada pela defesa de seus privilégios e de seus financiadores, e um povo cada dia mais vulnerável e violentado. A cada dia, somam-se mais feridos, mutilados e encarcerados — que já são milhares — sem que nenhuma autoridade se importe. Anomia e também polarização. Uma classe dominante fundida com as bases e redes do poder e uma população nas ruas e nos territórios cada dia mais sozinha e abandonada.

No dia 14 de novembro, essa classe política buscou uma saída para a crise social com um chamado ao processo Constituinte. Tudo isso está em marcha para o plebiscito inicial em 26 de abril. Um plano básico, que ninguém sabe muito bem como terminará, e já mostra suas debilidade. Não apenas é pouco, ou nulo, o interesse despertado pelo processo na população mobilizada, como também em quem o convocou.

O acordo Constituinte foi um pacto entre a classe política com o apoio e a bênção de outros poderes na sombra. Um consenso entregue à cidadania, mas basicamente um acordo entre aliados. Hoje, a pouco meses do processo, a direita negou sua assinatura. Aqueles partidos que nasceram à sombra da ditadura voltaram a suas origens e já anunciaram que votarão contra a ideia de uma nova Constituição. A direita chilena, oligárquica, conservadora e pinochetista defende o que é seu, aquela Constituição e normas que consagraram a mercantilização do país, a concentração da riqueza e o empobrecimento de todas as classes subalternas. Se há crise social e reivindicações, se resolve com ordem.

Anomia, autoritarismo e perda gradual e persistente dos direitos civis. A repressão desatada e permanente se soma a perseguição de ativistas e dirigentes sociais, projeto de lei para limitar o direito a se reunir, acusações com bases falsas, falhas tendenciosas, notícias insidiosas, críticas infundadas e ofensas a líderes sociais feitas por grandes meios de comunicação. Uma clima de polarização que não oferece saída. Uma classe entrincheirada na defesa do modelo de mercado e seus privilégios, e um povo com sua paciência nos limites.

Esse ambiente político, de negação e incompetência, é uma convocação a todos os demônios. Por certo, os do autoritarismo e do fascismo, mas também os que podem convocar uma população por tantos anos e gerações humilhada, difamada e desesperada.

Não há muro em vila e cidade chilena que não esteja alinhada com reivindicações sociais, não há ruas ou estradas em que não se tenha levantado uma barricada. Uma população que perdeu o medo é também um povo preparado para a luta. Para todas as formas de luta.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Paul Walder

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