Muitas vezes falamos da decomposição social a partir da posição de superioridade e privilégio; nossa opinião está feita de estereótipos porque acreditamos que os causadores de tal degradação são aqueles que crescem no esgoto, na condição social de párias.
Então vemos esse adolescente marginalizado por nós mesmos, ao que temos negado uma vida diferente e ao que obrigamos a roubar um celular, uma carteira ou um rádio de automóvel, como o culpado. Porque logo de cara dizemos que vêm de famílias disfuncionais como se as nossas também não o fossem, dizemos que não querem trabalhar quando sabemos que os últimos das classes sociais são os que sustentam o mundo com seu lombo. E a ele o sentenciamos e nele depositamos todo o nosso classismo, todo o racismo geracional e o condenamos desde nossas poltronas daqueles que tiveram o privilégio da oportunidade.
Mas achamos lindo quando alguém se aproxima para tirar uma foto com uma menina indígena que vende artesanato na rua na hora em que deveria estar estudando na escola, porque “que bonito o seu vestido”, e que linda a pessoa que não teve nojo dela, que tampouco lhe comprou nada, mas deu um privilégio a essa menina de aparecer numa foto com ela. Pois, isso é um exemplo claro de decomposição social. E há milhares mais.
Há pessoas que andam tirando fotos e expõem as pessoas vulneráveis em seus direitos: crianças, adolescentes, adultos idosos vendendo na via pública, nos mercados, sentados na beira dos bancos comendo uma tortilha com sal com a roupa empapada de suor, engraxando sapatos, carregando sacos, ou, porque se aproximaram para dar a eles um pão com feijão e tiraram uma foto abraçados com eles e acreditam que com isso já tocaram o céu com as mãos sujas.
YouTube / SAIH Norway
Não sentir a dor do outro é um signo claro de decomposição social.
O eu fulaninho, eu fulaninha formada na universidade, estudante na universidade, empresária, tiro uma foto com este menino vendedor de chiclete e a público nas redes sociais. Para que vejam que sou boa gente e abraço os párias sem medo de que me peguem os piolhos. E pior ainda, a onda de comentários aplaudindo e alabando. Isso é decomposição social. É a exposição do necessitado para o prazer da egolatria daquele que se crê superior.
E se essa criança não comeu nada hoje, quantas vezes comerá na semana, onde dorme, tem família, onde mora, tem sonhos? Isso não importa, só a foto para o aplauso das redes sociais. Mas como somos nós de cima, da posição do privilégio que tiramos as fotos, então não nos apontamos nem nos sentenciamos como ao adolescente que rouba um telefone celular. Somos iguaizinhos aos brancos que vão a turismo à África e tiram fotos distribuindo doces ao punhado de meninos negros em estado de desnutrição.
É decomposição social a insensibilidade humana. Ver lixões cheios de famílias vivendo e comendo ali e simplesmente olhar para outro lado. Saber que nos bares e nos prostíbulos violam meninas, meninos, adolescentes e mulheres e não fazer nada como sociedade para que não existam.
Chamar de trabalho sexual à exploração sexual. Pechinchar com os camponeses que saem a vender suas colheitas. Ter empregada doméstica porque é privilégio de classe. E pior ainda, não lhe pagar o salário justo. É decomposição social urinar na via pública, jogar lixo na rua, contaminar a água dos rios e lagos. Ser altaneiros com os garçons, com os mensageiros, com as recepcionistas, com o ascensorista, com as pessoas de manutenção do edifício onde trabalhamos. Não sentir a dor do outro é um signo claro de decomposição social. Negar o direito ao aborto e ao matrimônio igualitário também é. Também é a vaidade, além de ser ignorância pura.
Ver meninas trabalhando de sol a sol fazendo tortilhas e não fazer nada como sociedade para que sua realidade mude. Saber que os trabalhadores agrícolas não contam com direitos trabalhistas, e ver como apodrecem os cortadores de cana, enquanto os donos dos engenhos enchem as bolsas junto aos banqueiros com o lucro da exploração. É decomposição social, eleger uma e outra vez presidentes racistas, classistas, corruptos, machistas, xenófobos, homofóbicos que alimentam a exploração do ser humano necessitado, a partir do Estado.
Então, quem somos nós para apontar o menino que cheira cola durante todo o dia e de noite sai para assaltar? E a menina que seu pai explora sexualmente todos os dias para ir comprar droga, esse pai que cresceu sendo explorado de igual maneira e que só conhece esse meio de sobrevivência? A mãe que trabalha o dia todo nas maquilas e que não pode ver seus filhos salvo à noite quando chega e os encontra dormindo? Claro, falemos de decomposição social, mas não de cima para baixo, e fazendo-nos responsáveis pela parte que nos toca.
*Ilka Oliva Corado é Colaboradora de Diálogos do Sul desde território estadunidense
**Tradução: Beatriz Cannabrava
Veja também