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Haiti está à beira do precipício com governo ilegítimo pró-EUA e surto de coronavírus

A triste realidade é que a maioria caminha para a imunidade coletiva, onde muitos tem que escolher entre se infectar na rua, ou morrer de fome em casa
Jeb Sprague
Brasil de Fato
Porto Príncipe

Tradução:

O presidente haitiano Jovenel Moïse anunciou dia 19 de março, que dois cidadãos haviam testado positivo para Covid-19, doença desenvolvida pelo coronavírus. O governo fechou as fronteiras, portos e aeroportos do país ao movimento de pessoas, enquanto o abastecimento comercial continua aberto.

Poucos testes foram administrados até agora, gerando a preocupação de que uma catástrofe sanitária virá nas próximas semanas e meses. 

Notícias e fofocas se espalham rapidamente pela mídia local e por WhatsApp no país inteiro. Com a tensão aumentando, muitos sabem que estão completamente despreparados para a pandemia que já atinge outros países caribenhos, incluindo a vizinha República Dominicana, onde já foram registrados mais de 5.300 casos e 260 mortes. 

O Haiti se depara com uma pandemia iminente, sem nenhum sistema de saúde público e com um sistema político disfuncional, baseado em intervenções coloniais. É essa a receita que deixa a pequena nação caribenha, completamente despreparada para enfrentar a pandemia do coronavírus.

A triste realidade é que a maioria caminha para a imunidade coletiva, onde muitos tem que escolher entre se infectar na rua, ou morrer de fome em casa

Screen capture/Brasil de Fato
Autoridades haitianas monitorando a distribuição de comida durante a pandemia

A triste realidade do Haiti

O desemprego no Haiti é extremamente alto. Seis dos onze milhões de haitianos moram abaixo da linha da pobreza com $2.41 por dia. Segundo dados do Banco Mundial, muitos vão ter um dilema entre como alimentar suas famílias e correr o risco de infecção, ou ficar em casa e passar fome. 

“Não existe tratamento disponível para as massas aqui. Existe a quarentena para evitar a transmissão. Porém, como isolamos as pessoas na favela, onde a densidade populacional é tão grande que as pessoas precisam ter contato humano para sobreviver?”, questiona o médico John A. Carrol, que trabalha em clínicas, hospitais e orfanatos do Haiti desde 1995.

Embora o governo haitiano esteja oficialmente promovendo o isolamento e o distanciamento social, a triste realidade é que a maioria da população está provavelmente caminhando para a “imunidade coletiva”, onde muitos tem que escolher entre se infectar na rua, ou morrer de fome em casa. Alguns como Carroll, acreditam que essa curva de transmissão aguda invés de achatada, resultará em menos mortes.

Desenvolver “imunidade coletiva” é uma medida que o governo britânico sugeriu para seu próprio povo algumas semanas atrás, mas desistiu depois da reação negativa da população e de muitos peritos. 

No Haiti, autoridades médicas sugerem que até 800 mil haitianos possam morrer por conta do vírus. Investimentos estrangeiros e esforços locais monumentais seriam necessários para impedir tal calamidade. 

A Grayzone conversou com o Dr. Ernst Noël, da Faculdade de Medicina e Farmácia de Port-au-Prince, que acredita que o número de 800 mil não é um exagero. Em sua opinião, provavelmente muitos morrerão por coronavírus, em números maiores do que o terremoto de 2010.

Na beira do colapso

Seria minimalismo dizer que o sistema de saúde público haitiano está mal preparado para a enfrentar a catástrofe pendente. 

O Instituto Haitiano de Estatísticas afirma que o país só possui 911 médicos, e meros 4,4% do orçamento governamental são destinados à saúde. Isso faz com que os hospitais não tenham nem o equipamento, nem a mão de obra para operarem com eficácia. Além disso, constantes greves e a recusa de trabalhadores de irem ao serviço –  devido à falta de máscaras, luvas e jalecos – apenas servem para agravar a situação. 

O jornal mais lido do país, Le Nouvelliste, calcula que o Haiti possua apenas 130 leitos de UTI, a maioria modelos antigos. Existem apenas 64 respiradores na nação inteira. 

Médicos que trabalham na Universidade Estatal do Haiti (HUEH), o maior complexo médico do país, escaparam por pouco de um surto de covid-19. Eles ainda não receberam equipamentos de proteção pessoal, tão pouco kits de teste. Falta até mesmo água em alguns centros médicos. 

O clínico geral Ulysse Samuel atende pacientes na HUEH. Ele explica que antes da pandemia de covid-19 nunca tinha “visto um respirador no complexo da HUEH” e agora, quando uma maré de casos ameaça o hospital, “não tenho ideia se teremos o suficiente”.

Após anos de intervenções estrangeiras e um ajuste estrutural neoliberal, o Haiti foi arrastado para uma situação desesperadora, onde não tem escolha a não ser depender de ajuda internacional durante períodos de crise. 

Desde 2013, 64% do orçamento do sistema de saúde vem de entidades estrangeiras, relata Georges Dubuche, porta-voz do Ministério da Saúde Pública e da População haitiano. 

“O Haiti não possui um sistema de saúde pública funcional no melhor dos dias, muito menos um que consiga efetivamente enfrentar esse vírus”, alerta Carrol. 

O Banco Interamericano de Desenvolvimento já doou $50 milhões ao combate do coronavírus no Haiti. O FMI está considerando liberar reservas consideráveis para ajudar países em desenvolvimento durante a crise. 

A nação caribenha é uma de 50 que terão que dividir entre eles um pacote de $2 bilhões de assistência recentemente divulgado pela ONU. Entretanto, essa ajuda deve demorar para se materializar. 

Reagindo à calamidade que virá 

Será que a quarentena imposta pelo governo do presidente Jovenel Moïse acabará sendo nada mais que uma manobra política? Em grande parte, a medida não está sendo respeitada, e não está claro se ela pode realmente ser, dada a luta por sobrevivência diária de tantos. 

O governo haitiano propôs uma plano emergencial que contém cerca de $37.2 milhões em seu orçamento, mas é difícil ver como isso seria eficaz. ONGs locais e internacionais estão se reunindo para coordenar uma resposta coletiva. 

Muitos estão questionando se o governo haitiano será capaz de garantir a alimentação da maioria da população, visto que ela sobrevive com dois dólares ou menos por dia e agora está sendo pressionada a ficar em casa sem trabalhar. 

As autoridades anunciaram a abertura de centros de distribuição de comida em alguns distritos. A notícia vem nas costas dos recentes aumentos nos preços de itens básicos, impulsionados pela queda acelerada da moeda local.

A maior parte do povo haitiano está ciente dos perigos gerados pelo coronavírus. Porém, ao mesmo tempo, não tem escolha a não ser ganhar o pão de cada dia, já que dependem de atividades de sustento informais e improvisadas na economia de pequena escala. A vasta maioria desses trabalhadores tem que utilizar transporte público lotado para chegar ao trabalho. 

Conforme o vírus impacta países mundialmente, fica cada vez menos provável que a comunidade internacional será capaz de produzir a ajuda herculana que o Haiti necessita. A ilha gasta apenas $13 por pessoa em saúde, enquanto suas vizinhas, República Dominicana e Cuba, gastam $180 e $781 respectivamente. 

Pausa na onda de protestos

A situação se torna pior com a interminável crise política. Moïse atualmente governa sem um parlamento, após não conseguir organizar eleições e um movimento de protestos ameaçar o remover do poder. O forte apoio diplomático norte-americano tem sido a fundação de sua sobrevivência política. 

O surto de coronavírus causou uma pausa nos gigantescos protestos anti governamentais que ocorrerem no final de 2019 e início de 2020. Porém, eles seguramente retornarão, agora que a essência desumana do capitalismo neoliberal no Haiti e outros lugares foi escancarada pela crise.  

Ao longo do século 21, os haitianos vêm experienciando um desastre após o outro. Estima-se que 46 mil a 160 mil pessoas morreram no terremoto ocorrido dia 12 de janeiro de 2010. Milhares ficaram feridas, e quase um milhão ficou desabrigada. O país ainda se recupera da tragédia e muitos haitianos permanecem em tendas emergenciais. 

O Haiti também superou um surto de coléra que matou mais de 10 mil e adoeceu mais de 800 mil. Tropas invasoras da ONU foram descobertas como a origem da doença no país, que até hoje pede remuneração financeira pela crise das Nações Unidas. 

Além disso, o país enfrentou diversos furacões devastadores nos últimos anos, incluindo o furacão Matthew em 2016 que destruiu a península sul da ilha, decimando plantações e vilarejos. 

Governos de direita instalados pelos EUA

A população haitiana enfrenta a pandemia de coronavírus no contexto de outros problemas, criados pelo homem, que agravam a crise que está por vir. Primeiramente, dois golpes em Estado de 1991 e 2004, ambos apoiados pelos Estados Unidos, procuravam retardar os ganhos populares conquistados pelo movimento de esquerda Lavalas, liderado por Jean Bertrand Aristide. 

Nas eleições de 2011, Washington interveio através da Organização dos Estados Americanos (OEA), para efetivamente mudar os resultados da eleição, e colocar o cantor pop e direitista Michel “Sweet Micky” Martelly na presidência, iniciando uma década de regimes subservientes aos Estados Unidos. 

O sucessor de Martelly, Jovenel Moïse, aparentemente desviou milhões de dólares destinados a reconstruir o país através do programa venezuelano Petrocaribe. Fundos do programa foram utilizados por diversas nações caribenhas para complementar seus orçamentos e construir infraestrutura importante. 

Moïse é citado por nome 69 vezes no recém publicado relatório sobre corrupção da Corte Administrativa Estatal, e é considerado um dos principais beneficiários financeira e politicamente, do esquema de desvios de dinheiro da Petrocaribe. 

Em resposta aos protestos, o governo haitiano e seus aliados utilizaram a intimidação violenta em bairros onde sentimentos contra o governo predominam. Invés de investir na saúde, o governo ativamente busca aumentar sua capacidade repressiva. 

Com o apoio de consultores da Agência Interamericana de Defesa, o governo Moïse começou a reconstruir o exército haitiano, que havia sido desmantelado em 1995. Historicamente, militares haitianos simbolizam a repressão da vontade popular, liderando diversos golpes, massacres e campanhas paramilitares para garantir que a vontade de Washington prevaleça. 

Em 2018, o novo exército haitiano tinha seis oficiais sendo treinados nos EUA na Academia Militar das Américas, que logo depois foi renomeada o Instituto de Cooperação de Segurança do Hemisfério Ocidental (Whinsec).

Esse exército recém-reconstituído entrou em conflito letal com policiais da capital Porto Príncipe, que estavam em disputa trabalhista com o governo. O confronto ilustra perfeitamente o propósito principal da estrutura militar do país, sempre leal à direita política, que é existir para a repressão interna.

Destroçado por anos de desastres naturais e fabricados, o Haiti se depara com mais um acontecimento histórico sem os recursos para enfrentá-lo. Alienada e reprimida pelo aparato político instalado por Washington, a maioria pobre será a mais afetada pelo coronavírus.

O que é coronavírus?

É uma extensa família de vírus que podem causar doenças tanto em animais como em humanos. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), em humanos, os vários tipos de vírus podem causar infecções respiratórias que vão de resfriados comuns, como a síndrome respiratório do Oriente Médio (MERS) a crises mais graves, como a síndrome respiratória aguda severa (SRAS). O coronavírus descoberto mais recentemente causa a doença covid-19. 

Como ajudar a quem precisa?

A campanha “Vamos precisar de todo mundo” é uma ação de solidariedade articulada pela Frente Brasil Popular e pela Frente Povo Sem Medo. A plataforma foi criada para ajudar pessoas impactadas pela pandemia da covid-19. De acordo com os organizadores, o objetivo é dar visibilidade e fortalecer as iniciativas populares de cooperação. 

*Publicado originalmente em The Grayzone.

**Tradução do inglês de Peoples Dispatch.

Edição: Ítalo Piva e Leandro Melito


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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