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O que diria Fidel Castro observando as revoltas na América Latina nos dias de hoje?

A sede de justiça de nossos povos chegou aos seus limites de sobrevivência e o vulcão explodiu no Peru como havia detonado no Haiti, na Guatemala
Stella Calloni
Diálogos do Sul
Buenos Aires

Tradução:

É muito difícil para mim falar do Comandante Fidel Castro Ruz; são tantas as palavras, as lembranças, o olhar, mas nestes dias de novembro sinto, no sentir dos sentires mágicos, sua presença mais fortemente que nunca nas ruas de Santiago do Chile. 

No sul, no norte, em Iquique, tão caro na memória, andando junto a esse povo que ressuscitou das cinzas do passado, do horror da ditadura, cujos mandatos ainda perduram. 

Antes foram os jovens estudantes que agitaram as águas dormidas e comoveram o mundo. Eles foram aqueles que mobilizaram os pais, os vizinhos. Trinta anos depois um dos vulcões de nossa América se ativou, entrou em erupção, como o havia previsto Fidel. E esse vulcão no Chile segue com suas línguas de fogo, com sua lava ardente.
Há pouco mais de um ano o povo chileno está nas ruas, desafiando a brutal repressão, com seus mortos, seus feridos, seus presos, sem baixar as bandeiras, sem calar. São milhões.

A direita que acreditava no reinado pinochetista para sempre e agora é a tropa de choque dos Estados Unidos na guerra recolonizadora que trava contra Nossa América, já sabe que só pode agir protegida, atrás de escudos, armas, tanques e as infantarias das forças de segurança, restos do terror da ditadura e da impunidade. Mas o povo não se detém.

Muito perto do Chile, cruzando uma dura fronteira, como não ver Fidel e o Che ao seu lado, junto ao povo boliviano que saiu às ruas no mesmo dia do golpe de Estado de 10 de novembro de 2019, quando o governo de Evo Morales havia ganho as eleições e foi derrocado pelas hordas paramilitares, com a OEA à cabeça e seu secretário geral, Luis Almagro, à frente das direitas mais fascistizadas e brutais da América Latina.

Esse povo, essa vanguarda de povos originários que como nas primeiras lutas anticoloniais resistiu durante cinco séculos apesar dos milhões exterminados pelo criminoso poder colonial, derrotou Washington e regressou só um ano depois. Nunca havia sucedido. E esse vulcão também continua ardendo. A sede de justiça de nossos povos chegou aos seus limites de sobrevivência e o vulcão explodiu no Peru como havia detonado no Haiti, na Guatemala. 

Também no traído povo equatoriano, que elegeu um governante de um partido popular que rapidamente se desdisse de sua posição política e de seu programa de governo. Traiu abertamente a vontade popular e impôs um virtual golpe de Estado pós eleitoral, uma nova fórmula imperial. 

E ali está esse povo que foi às ruas, que arderam e agora se prepara para voltar. Vulcões centro-americanos em Honduras e na Guatemala este novembro também, como todos os dias o faz o povo colombiano, embora os meios de informação façam silêncio como o fazem sobre os massacres cotidianos, os mortos de cada dia. 

Em um só dia ganhava o povo boliviano, marchavam milhões no Chile para enterrar a constituição pinochetista, pelo qual vão continuar lutando e na Colômbia os povos indígenas chegavam pela primeira vez em forma massiva, em cores, em música, até as ruas sempre fechadas para eles de Bogotá. Assim está a América. Assim o viu Fidel. 

E também estão os povos que defendem seus governos revolucionários e populares, e são muralhas contra as tentativas imperiais de colocar-nos de joelhos por outro século mais. 

Quando Fidel falava dos tempos vulcânicos que viriam e dos tempos de decadência e desintegração do império, alguns assentiam céticos. 

Quando nos advertia com toda a sua paixão, sobre as funestas consequências da destruição do meio ambiente, da natureza, dos rios e dos mares, dos grandes bosques e selvas incendiadas pela mão do homem, pela ambição sem limites, pelo desprezo à vida e à humanidade, parecia que isto estava muito longe. Até que o fogo começou a devorar milhares e milhares de terras verdes, a secar o pulmão do mundo.

A sede de justiça de nossos povos chegou aos seus limites de sobrevivência e o vulcão explodiu no Peru como havia detonado no Haiti, na Guatemala

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Quando Fidel falava dos tempos vulcânicos que viriam e dos tempos de decadência e desintegração do império, alguns assentiam céticos.

E, o que diria Fidel observando o que acontece nos Estados Unidos, em tempos de um governo como o de Donald Trump e sua equipe de assessores? E aí sim que há que deter-se. 

Esses assessores de Trump como entre outros fundamentalistas, Elliott Abrams, que devia estar pagando em um cárcere seus crimes e massacres na América Central nos anos 80, os do chamado lobby cubano-americano, que durante anos foram educados por seus antecessores sobre as milhares de formas de terrorismo para tratar de exterminar o povo cubano. 

Mas “não esquecer” -diria Fidel- que não foi só contra Cuba. Esses mesmos personagens, ou seus antecessores, foram terroristas no Vietnã, na África, na Europa, na América Latina.

Velhos lobos, alguns dos quais já não estão, mas têm substituição como os Luis Posada Carriles, Orlando Bosch ou Félix Rodríguez e outra longa lista e seus sucessores. 

Entre eles o estadunidense Mauricio Claver Carone, nada menos que colocado, mediante una aberta e descarnada guerra suja no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) ocupando ilegalmente o lugar que devia desempenhar um latino-americano, um funcionário de nossos países eleito por nós. 

Eu imagino as reflexões do Comandante Fidel Castro Ruz neste tempos de canalhas, de semeadores de ódio, de mercenários das palavras, de meios que se convertem nos formatadores de guerras criminosas. O lobby cubano-americano dedicado a armar golpes, combinando as ações terroristas destes tempos com os mais temíveis paramilitares como na Colômbia, contra o povo desse país e da Venezuela; e na Bolívia, na Nicarágua, em Cuba e em outros lugares.

Acreditaram os Marco Rubio, Ted Cruz, Bob Menéndez, Ileana Ros-Lehtinen e outros que nada havia sucedido na América Latina, que ia ser muito fácil, amparados pelo poder e pela impunidade. 

Mas os derrotamos e isso ninguém diz. Fidel já teria posto um nome a este momento histórico. Acreditaram que o comandante Hugo Chávez Frías era só um homem de passagem pela Venezuela. Não entenderam nada da nossa idiossincrasia. 

Também acreditaram que as rebeliões populares eram fogos fátuos. Não entendiam que atrás estavam José Martí, Simón Bolívar e tantos outros e esse extraordinário sincretismo da plurinacionalidade, que nos tem ajudado a resistir imaginativa e criativamente durante dois séculos e depois dos cinco séculos de nossos antepassados originários. 

Será que não estamos em tempos de um novo projeto de recolonização, para apoderar-se e controlar ferreamente e em forma direta, nossos recursos? Nossa América é sua última esperança. Donald Trump confirmou há pouco tempo, o que muitos de nós denunciávamos: 

“Estamos aplicando na América (do Sul) a doutrina Monroe”. Uma doutrina colonial por excelência – de 1823 – que propunha que o imenso território da América Latina – ao qual roubaram, entre outros, a metade do território mexicano, ou Porto Rico que até hoje resiste – “para os americanos do norte”. 

A esses anos tentam regressar-nos como se nada tivesse acontecido. Mas aconteceu e aconteceram Fidel, o Che, Hugo Chávez e outros heróis do passado e contemporâneos de nossa América. E não se vão, nunca se irão. Muita água passou por estes rios, querido Comandante. 

E veio a pandemia de um vírus, cujas consequências não só em mortes, mas em desastre humanitário, econômico, social e político ainda devemos avaliar. 

E não tenho dúvida de que Fidel nos diria, como tantas vezes, “não podemos deixar-nos surpreender” diante destes fatos. E nos diria que nada será o mesmo, que há planos temíveis do poder para paralisar-nos, encurralar-nos, mas as enormes contradições geradas por um vírus, que só pode ser visto em laboratórios com aparelhos de última tecnologia, pode parar o mundo durante dias e meses. E embora organismos mundiais exijam deter as guerras de todo tipo, o império continua imutável. 

Agora começa a implodir em seu próprio território e seus sócios veem ressurgir fantasmas do passado e já nada será o mesmo, com as grandes marchas pelas avenidas do primeiro mundo, que sente que tremem suas estruturas. 

E desta situação, Comandante, seguro que nos diria que não saímos como se sai sempre, se não nos anteciparmos, se não deixarmos para trás tudo o que pesa para aliviar nosso caminho e inventarmos cada dia, como inventaram vocês desde aquele dia em que cruzaram um mar embravecido, um grupo de homens, em um barco pequeno que poderia soçobrar várias vezes no caminho da água. 

Como um fato bíblico não aconteceu e os que chegaram ao objetivo e sobreviveram a uma armadilha, com escassos apetrechos e roupas aos pedaços foram para a Sierra Maestra, sonhando com a libertação. 

Uma dúzia de homens vai enfrentar um ditador poderoso em uma ilha pequena, colocado no poder, financiado e sustentado nada menos que pelos Estados Unidos? Era impossível desde todos os pontos de vista.
Porém o fizeram, derrotaram ao que já aparecia como o grande poder mundial. O que tinham? A dignidade, o amor à justiça e a um povo, um vulcãozinho em erupção. E o fizeram. E depois? Diziam os incrédulos de sempre.

Faz mais de 60 anos, mais de meio século e aí estão os Fidel, os Che, os Raúl, as Celia, os Almeidas, as Vilmas, os Camilos, as Aleidas e tantos outros nomes! E hoje neste novembro de 2020 continuam resistindo e semeando solidariedades. 

Tudo o que ele antecipou sucedeu e não o fez porque fosse um profeta, embora também o fosse, mas porque a cada dia de sua vida esteve atento a tudo o que se passava no mundo, desde seu mirador na pequena ilha do Caribe, junto aos seus. Nos deram a lição mais importante de nossa vida. 

Nos advertiu que na queda, o capitalismo ia superar a selvageria de sua história, quando o “esplendor” do terror se apagasse lentamente. 

Fomos aprendendo ao longo da metade do século passado, até hoje.
Os vulcões continuam, Comandante, e não duvido que ande por essas ladeiras vulcânicas com Hugo Chávez Frías, com o Che Guevara, e com os milhares que ficaram no caminho da resistência e andam renascendo em nós, nos despojados, nos esquecidos, nos povos que ressuscitam uma e outra vez , até o dia do triunfo.

Nesse dia começa o mais duro, mas será o caminho que tracemos nós, o edifício que construiremos, o socialismo do século XXI, o nosso. Não é o mesmo o tempo do socialismo em povos que emergem do colonialismo. 

O Comandante sabia disso desde o princípio. E por isso estamos seguros de que no dia da libertação definitiva ele estará conosco, quando bailaremos com nossos mortos por todas as alamedas de Nossa América.

*Prestigiosa escritora, jornalista e analista internacional argentina. Prêmio Latino-americano de Jornalismo ‘José Martí’ (1986).

**  Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Stella Calloni Atuou como correspondente de guerra em países da América Central e África do Norte. Já entrevistou diferentes chefes de Estado, como Fidel Castro, Hugo Chávez, Evo Morales, Luiz Inácio Lula da Silva, Rafael Correa, Daniel Ortega, Salvador Allende, etc.

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