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“Um dos momentos mais emocionantes da minha vida”: Jornalista uruguaio relata como foi o tratado Torrijos-Carter

Quando se tratava de ser solidário com seus irmãos uruguaios e latino americanos, o líder panamenho Omar Torrijos não tinha limites
Juan Raúl Ferreira
Diálogos do Sul
Montevidéu

Tradução:

Em Washington, em 1977, nasciam os novos tratados do Canal do Panamá. Eram firmados por Jimmy Carter e o General Omar Torrijos. Lugar: a OEA, para que não fosse nem nos EUA nem no Panamá. Estavam presentes, e firmavam como testemunhas, todos os Presidentes da América. 

Joaquín Balaguer se confundiu e firmou um papel em branco (que ninguém sabia como lhe devolver). Um funcionário tentou durante toda a tarde chegar a ele para devolver.

Tudo muito Macondo. E na delegação de Torrijos, estava o próprio García Márquez, que embora fosse colombiano, sua amizade com Torrijos o fazia mais um panamenho.

Entre os dignitários que viajavam: Aparicio Méndez, o títere da ditadura militar uruguaia. Não ia perder a oportunidade. Alugou em Miami um avião da Eastern Airlines ao que havia feito pintar um escudo nacional para disfarçá-lo de Avião Presidencial. Não o pode mostrar, porque aterrissou na Base Andrews em Washington, onde o esperava o encarregado da mesa do Uruguai no Departamento de Estado, para depois juntar-se com os demais presidentes.

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Eu não podia perder a oportunidade de protestar pela sua presença na Casa Branca, onde Carter ofereceria um almoço a todos os Presidentes. Tampouco podia envolver o escritório onde trabalhava: a WOLA. Esta, por certo, havia feito lobby pelos tratados, aos que se opunha à direita estadunidense. Resolvi fazer a título pessoal.

Quando se tratava de ser solidário com seus irmãos uruguaios e latino americanos, o líder panamenho Omar Torrijos não tinha limites

Wikimedia Commons
Os tratados do Canal do Panamá foram firmados por Jimmy Carter e o General Omar Torrijos

Protestos contra o “fascismo no Uruguai”

Fui o primeiro em me surpreender com a quantidade de gente que se congregou com cartazes contra “o fascismo no Uruguai” e pela “Liberdade de todos os Presos Políticos”.

A Praça Lafayette, em frente à Casa Branca, desbordava de gente. No momento em que os Presidente se sentavam à mesa, no salão de Festas da Casa Branca, Torrijos, que sabia bem do que se tratava, pergunta a Carter: “Quem são os manifestantes, opositores ao tratado?”

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Este, diante de Aparício Méndez, se apressa para corrigir: “Não, não, se trata de exilados uruguaios manifestando-se contra a ditadura”. Torrijos, então um grande amigo, diz a García Márquez: “Ahhh, sim os uruguaios… Algo me haviam dito. Gabo (García Márquez) vai com eles e eu fico aqui”.

Oxalá tivesse podido ver o rosto do comandante uruguaio. Dos que Wilson chamou em seu momento brancos baratos. E ali foi nos acompanhar o autor de Cem anos de Solidão.

Eu fazia uso da palavra, tão emocionado, como jovem. Agradecido, com a verdadeira multidão que havia se congregado e não sei descrever a surpresa que me causou a chegada de Gabo.

Havíamos sentado no estrado em um lugar de honra a Isabel Margarita, a viúva de Orlando Letelier. Mas tratando de não perder o fio do que vinha discursando, eu mesmo arrumei uma cadeira para que se sentassem juntos.

A custosa viagem de Méndez fracassasse, apesar do “Força Aérea Um” fajuto, e outras estripulias. Não suspeitava que teríamos dado um pontapé inicial a uma série de fatos que contribuíram a um maior isolamento da ditadura. 

Bandeira dos EUA baixada, e içada a panamenha!

Efetivamente, quando fruto desses Tratados que se haviam firmado se entregava a mãos panamenhas as primeiras eclusas “Miraflores Lockers”, se fez um grande ato na então Zona do Canal. Torrijos me convidou junto com Diego Achard, (já existia a Convergência). Ao meio-dia, de qualquer ponto da cidade se podia ver o Cume do Cerro Ancón, onde flamejava desde 1903 a bandeira dos EUA. Foi baixada, e içada a panamenha!

Foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida. Mal a bandeira do Panamá chegou ao alto do mastro, a cidade, o país inteiro rompeu em uma explosão de festejo popular incontido. Bailes nas ruas, buzinas de automóveis, fogos de artifício, bandas de música. Nós, em frente ao cartaz da famosa loja de brinquedos: “O Homem cria, o mono imita…Com o Machetazo não há quem compita”.

Na primeira hora da tarde, era a cerimônia oficial nas eclusas. Pelos Estados Unidos estava o vice-presidente Móndale. Pelo Panamá, o Presidente Aristides Royo. E uma cadeira, no meio do estrado, para o General Torrijos, líder indiscutido do país.

Mas, passava o tempo e ele não chegava. E não chegou, tiveram que fazer o ato sem ele. Chegou um telegrama que dizia: “De que se van, se van… Desde algum lugar do Panamá, General Omar Torrijos Herrera”. Estava cruzando a nado o canal, o que a imprensa registrou no dia seguinte. 

“De que se van, se van”

Os únicos uruguaios presentes, éramos Enrique Iglesias, secretário geral da Cepal, Diego Achard e eu. Nenhum convidado oficial do regime uruguaio. Este conjunto de coisas fez com que o içamento da bandeira no Cerro e a frase de Torrijos chegassem a ser motivo de muitos discursos do meu velho contra a ditadura uruguaia. E mais, a Juventude do Partido Nacional chegou a pintar cartazes que diziam: “De que se van, se van”.

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Wilson chegou a citar a frase, em seu anúncio na cidade de Buenos Aires, quando se inicia a “operação regresso” em um ato na Federação de Boxe de Buenos Aires em 1984.

Ele o descreve como dito “em muito mau castelhano, mas perfeito e ‘imelhorável’ panamenho…” Naquele histórico dia, nada nos permitia pensar tudo o que viria depois. 

De volta a 1977

Mas voltemos a setembro de 77, em Washington. Terminado o ato em frente à Casa Branca, afrouxamos os nervos. A ditadura havia embarcado em um custoso operativo de relações públicas e diplomáticas.

Nós não tínhamos gastado nada, mas com garra e com essa força que dava lutar por uma causa justa …uma causa nacional… havíamos ganhado a parada. E faltava, sem que imaginássemos, o melhor. 

Chego à minha casa (922 de da rua 24 no noroeste), não longe dali. Me encontro com um envelope que não cabia na minha caixa de correio na portaria. Era de um papel cor de papiro, sólido como cartão, quase madeira. Eu o abri e era um convite de Torrijos para essa mesma noite na Embaixada do Panamá, em honra do presidente Carter.

Solidariedade sem limites

O General, que quando se tratava de ser solidário conosco não tinha limites, me levou a cumprimentar o presidente dos Estados Unidos: “Este amigo meu é o que não nos deixava almoçar em paz ao meio-dia”.

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Eu me servi de um rum panamenho, que tive em minhas mãos toda a jornada. Só fiz uma coisa essa noite. Mirar fixamente nos olhos, a Aparicio Méndez.

A vida tem dessas coisas. Ele tinha todo o poder no Uruguai. Eu era um rapaz do lado do seu povo, e de sua gente. Mas podia olhá-lo nos olhos, e quem não podia suportar era ele. Eu lhe arruinei o movimento diplomático, a jornada e a ceia. Com isso me bastava para um dia. 

Quando um par de anos depois tive que despedir os restos de Torrijos no Panamá, vítima de atentado nunca esclarecido, não sei se quero lembrar do que disse. Espero ter sabido transmitir a gratidão enorme que lhe guardava, e que continua me acompanhando.

Juan Raúl Ferreira, Jornalista uruguaio.

Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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