O processo judicial do massacre de mil civis ocorrido em 1981 na aldeia de El Mozote, em El Salvador, corre o rico de sofrer um revés inesperado agora que o juiz foi afastado do processo e o retoma uma nova juíza que pode acabar com o avanço conseguido até agora.
Essa é a preocupação de organizações de direitos humanos, de testemunhas do caso e de familiares das mais de mil pessoas assassinadas pelo exército salvadorenho em dezembro de 1981 na referida aldeia, após o juiz Jorge Guzmán, que havia impulsionado com afinco o processo, viu-se obrigado a deixar o caso após uma manobra do governo de Nayib Bukele.
A suspeita das famílias em El Mozote é que a juíza que substitui Guzmán chegue com uma agenda obscura de atrasar ou bloquear o caso, em benefício de 16 oficiais (de uma lista original de 33) acusados de participar da matança, executada não só nesse casario, mas em outras aldeias próximas.
“Não sabemos que intenções ela traz, se vai cumprir recomendações do presidente (Bukele); nos preocupa que o processo poderia estancar”, disse ao La Jornada o camponês José Cruz, ao pé do monumento onde estão gravados uns 800 nomes das vítimas, na praça central de El Mozote.
El Mozote é uma aldeia do município de Meanguera, no departamento de Morazán. Agora, quase 40 anos depois, parece tranquila, mas em dezembro de 1981 os gritos de horror foram ouvidos por toda parte no casario.
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O caso permaneceu arquivado desde 1993 devido à Lei de Anistia aprovada nesse ano. Mas foi reaberto em setembro de 2016.
Embora não tenha sido oficializado pela Corte Suprema de Justiça, La Jornada confirmou que quem retoma o caso é Mirtala Teresa Portillo.
Ela estava à frente do Juizado de Paz de Sesori, um pequeno povoado no departamento de San Miguel, no oriente de El Salvador.
Cruz Vigil, oriundo do casario Jocote Amarillo, agregou: “Não nos estranharia que estejam querendo meter a mão, mas oxalá que não seja assim”.
Ele contou que perdeu 54 parentes no operativo militar, em Los Toriles e Jocote Amarillo, dois dos casarios também arrasados. Salvou-se porque não se encontrava em casa, havia ido trabalhar em um povoado vizinho.
Entre seus familiares assassinados estão seu irmão Abilio Vigil, de 40 anos, a esposa dele, Saturnina Argueta, de 35, e seis filhos deles. A mais velha tinha 16 anos e estava grávida, e o mais novo era um menino de 2 anos.
“A Abilio chegaram para assassiná-lo em sua casa em Los Toriles. Não podia mobilizar-se porque não via, era cego”, recordou. Agregou; “Queremos verdade, reparação e justiça”.
Entre 9 e 13 de dezembro de 1981, tropas do exército chegaram a El Mozote e casarios próximos e, segundo testemunhos e investigações independentes, procederam a assassinar os camponeses, aos quais viam como colaboradores da guerrilha da então Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN), que controlava a zona.
Reprodução
Monumento onde estão gravados 800 nomes das vítimas, na praça central de El Mozote.
À frente do operativo estiveram as unidades do Batalhão Atlacatl, treinado em guerra contra insurgente pelos Estados Unidos, e comandado pelo coronel Domingo Monterrosa, falecido em outubro de 1984. Mas também participaram tropas de outras guarnições.
Após cinco anos à frente do processo judicial, que se encontra na fase de instrução, o anterior juiz, Guzmán, de 61 años, se viu obrigado a sair do caso e de fato deixar seu posto de juiz a partir de um decreto da Assembleia Legislativa controlada pelo partido de presidente, Nuevas Ideas.
Esse decreto, aprovado em 31 de agosto, cessou mais de 200 juízes que tinham 60 anos de idade e 30 exercendo o cargo, no que foi interpretado como um mecanismo de purga para que Bukele continue cooptando o Judicial.
Bukele é visto como um presidente com atitudes autoritárias, e chegou ao poder em junho de 2019.
Quando a nova Assembleia Legislativa, no qual Nuevas Ideas tem 56 das 84 cadeiras, instalou-se em 1º de maio, a primeira coisa que fez foi descabeçar a Sala do Constitucional, conformada por cinco juízes, e impôs uns alinhados com o oficialismo, o mesmo que fez com o promotor geral.
A desconfiança é que a juíza possa também estar alinhada com a visão do presidente, que não teve empatia com as vítimas.
“Pode ser que ela venha com alinhamentos de rechaçar testemunhos, provas, para alargar o caso”, assegurou à La Jornada o presidente da Associação Promotora de Direitos Humanos de El Mozote, Leonel Claros.
Por sua parte, Ovidio González, advogado de Tutela Legal de María Julia Hernández, que é parte no processo como acusadores particulares, disse: “Ela foi juíza em um povoado pequeno, não tem maior experiência e se vai enfrentar a advogados defensores com manhas; podem surpreendê-la e podem fazer com que se dilate o processo”.
Em breves declarações a La Jornada, a juíza Portillo disse por telefone neste 21 de outubro: “Quero afirmar que eu vou a dar continuidade ao trabalho nas dimensões que se estava trabalhando”.
Rechaçou que siga alinhamentos para atrasar o processo.
No entanto, a dúvida persiste: que ela pudesse estar alinhada com o bukelismo.
Os habitantes do lugar têm razões para desconfiar do presidente Bukele.
Em novembro de 2019, o mandatário lhes prometeu que permitiria abrir os arquivos de vários quartéis militares para que o juiz Guzmán buscasse documentos sobre o operativo militar, porém logo deu para trás.
“Este Governo favorece a impunidade, porque se vê a parcialidade que mostrou no caso”, narrou a La Jornada o camponês Virgilio del Cid, de 80 anos, no pátio de sua casa no casario Jocote Amarillo, próximo a El Mozote.
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Del Cid que perdeu cerca de 30 familiares, disse: “Todos pereceram, não houve compaixão de nada”.
Se estima que a guerra civil salvadorenha, que finalizou em 1992, deixou uns 75 mil mortos e 8 mil desaparecidos.
Enquanto isso, os advogados que defendem os 16 oficiais rechaçaram que em El Mozote tenha havido mais de mil mortos, pois os cadáveres registrados, que constam no processo, são menos.
“Para falar de vítimas, temos que falar de provas, e no reconhecimento médico nesse processo, não há mais de 270 cadáveres. Qualquer outra asseveração é falsa porque temos que ver o que consta no processo”, asseverou a La Jornada o advogado Rodolfo Garay Pineda, chefe da equipe de defensores.
Seu colega, Adrián Meléndez, assegurou que a população de El Mozote, em 1981, era de só uns 200 habitantes, e essa cifra não combina com o número de mortos que se alega.
No entanto, há que considerar que os assassinatos se deram não só aí, mas sim em outros casarios, e que muitas famílias dessas aldeias foram refugiar-se em El Mozote pensando que aí estariam a salvo, mas foram assassinados.
Meléndez disse que é impossível pensar em que se transportou em helicóptero todo o Batalhão Atlacatl, composto por uns 1.200 efetivos, pois em dezembro de 1981 só havia em torno de cinco helicópteros com essa capacidade, os UH-1H, que operaram no Vietnã.
Além do mais, o primeiro curso para pilotos dessas aeronaves foi em 1984, asseverou Meléndez, que nessa época era oficial da Força Aérea, justamente como piloto de helicóptero.
“Não havia nem a quantidade de helicópteros nem de pilotos para isso”, concluiu.
Não obstante, a defesa aceitou que houve em El Mozote e lugares próximos uma operação militar que deixou vítimas.
Quem os mataram? Perguntou La Jornada. “Isso não podemos determinar, será parte do processo de investigação, não estamos negando o que é evidente”, respondeu Garay Pineda.
* La Jornada, especial para Diálogos do Sul — Direitos reservados.
** Tradução: Beatriz Cannabrava
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