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O papel da universidade na América Latina e a degradação de suas verdadeiras funções

Durante o século 20, a brecha entre o nível das universidades europeias, norte-americanas e japonesas e as universidades dos países menos desenvolvidos se tornou abismal
Jorge Rendón Vásquez
Diálogos do Sul
Lima

Tradução:

A universidade se converteu em uma instituição essencial da sociedade, a tal ponto que esta seria impensável sem ela. A causa: a universidade é a memória da sociedade e de seus conhecimentos e o centro de formação dos quadros que dirigem e controlam o funcionamento da estrutura econômica e das superestruturas política, jurídica e cultural.

São três as funções fundamentais da universidade: 1) a formação desses quadros ou profissionais; 2) a geração da nova classe profissional; e 3) a promoção social. A primeira delas, reconhecida pela lei, é a mais importante, como se acaba de ver. As outras derivam daquela e são mais sociológicas. Enquanto a segunda, embora a quase totalidade dos profissionais universitários prestam seus serviços em relação de dependência, como sucede com os operários e empregados, suas elevadas funções nos aparelhos produtivo e estatal os separam destes com as características de uma nova classe social, diferente também da pequena burguesia cuja característica é a de ter um capital investido em pequenas empresas e a exploração da força de trabalho assalariada. 

A promoção social é a elevação na escala das classes sociais. Como somente com os membros de suas famílias a classe capitalista não poderia prover o número de estudantes universitários requeridos para cobrir sua necessidade de profissionais tem devido permitir que tenham acesso à universidade estudantes originários de outras classes sociais, em um primeiro momento da pequena burguesia e depois das classes trabalhadoras. Este ascenso foi mudando a composição da burocracia estatal, devinda tecnoburocracia, e lhe transferiu grande parte do poder de mandar na sociedade. 

Durante o século 20, a brecha entre o nível das universidades europeias, norte-americanas e japonesas e as universidades dos países menos desenvolvidos se tornou abismal

Pxhere
A universidade se converteu em uma instituição essencial da sociedade

As funções indicadas da universidade têm se definido e universalizado desde meados do século XIX como consequência do desenvolvimento da civilização industrial e do capitalismo. As empresas não só requeriam operários para o manejo imediato dos meios de produção e certo número de empregados para o apoio nas tarefas de escritório. 

Necessitaram também quadros técnicos para planejar, dirigir e controlar a produção e a circulação das mercadorias, quadros que não podiam ser formados no trabalho, como havia acontecido com operários e mestres das oficinas artesanais nas idades média e moderna. A esta necessidade foi associada a exigência do aparelho estatal de contar com um pessoal hierárquico com conhecimentos especializados para fornecer serviços públicos cada vez mais diversos e generalizados. Em um e outro âmbito, esses quadros tinham que ser formados em centros de alta especialização que o capitalismo concentrou nas universidades. 

Foi normal que assim sucedesse. Na contradição entre as relações de produção — a estrutura capitalista — e os meios de produção, o elemento mais dinâmico são estes meios, e mais concretamente os instrumentos de produção. Este dinamismo, que é sua maneira de evoluir, aperfeiçoar-se e dar lugar a novos instrumentos e procedimentos, obedece quase totalmente à formação e pesquisa pelas universidades e ao trabalho dos formados nelas como um processo imanente à evolução da estrutura econômica e das superestruturas. 

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A origem da universidade, no entanto, vai além da Revolução Industrial da segunda metade do século XVIII. Remonta-se à Academia criada em Atenas por Platão (427 a 327 a.C.) para o ensino de sua filosofia. Depois da sua morte, seu discípulo Aristóteles (384 a 322 a.C.) fundou, também em Atenas, o Liceu ao que atribuiu a função de difundir os conhecimentos científicos e culturais de seu tempo que ele compilava e sistematizava. 

O Liceu chegou a ter uns 2.000 alunos. A Roma da Antiguidade não aportou algo que se igualasse ao Liceu. E depois veio a longa noite medieval, dominada pela dogmática não científica da Igreja Cristã que para o ano 1000 só pode oferecer as escolas catedralícias para o ensino do Trivium e do Cuadrivium. Afastando-se do imperialismo cultural religioso, o jurista e monge Irnerio fundou na cidade de Bolonha, em 1088, a primeira universidade e a dedicou ao ensino do direito sobre a base da recuperação do Corpus Iuris Civilis que havia sido compilado por disposição do imperador Justianiano (527 a 565). Os trabalhos de Irnerio e dos juristas que o acompanharam como professores se plasmaram em glosas anotadas nas margens dos pergaminhos que continham as regras jurídicas romanas, razão pela qual foram chamados de glosadores. Essa universidade foi denominada muito depois de Universitá degli studi di Bologna e é uma das mais importantes da Europa.

Semelhantes à de Bolonha, em meados do século XIII, foram criadas as universidades de Paris, Oxford e Salamanca, principalmente para o ensino da Teologia e do Direito. Seguiram outras. Na América, a primeira universidade foi a San Marcos, fundada em 12 de maio de 1551. Em 1810 foi criada a Universidade de Berlim, denominada, desde 1949, como Universidade de Humboldt em honra ao grande naturalista e ideólogo do progressos das ciências e da liberdade, Alexander von Humboldt.

Pelas necessidades do capitalismo e do desenvolvimento das ciências, muitas universidades europeias e dos Estados Unidos tiveram que adaptar seus ensinos com rigor, precisão e disciplina para formar os ensinadores e os profissionais requeridos e, ao mesmo tempo, se empenharam na pesquisa. 

No começo do século XX, os países capitalistas com maior desenvolvimento competiam também na formação profissional universitária baseada em um nível de conhecimento dos professores cada vez mais elevado e na exigência e severidade dos estudos. Este processo repetiu-se em outros âmbitos. No Japão, para impulsionar o desenvolvimento do capitalismo, após a revolução Meiji, na segunda metade do século XIX, o Estado teve que enviar dezenas de milhares de seus estudantes para formar-se profissionalmente nas universidades europeias. 

Algo similar sucedeu na China após as transformações impulsionadas por Deng Xiaoping, em fins da década de setenta do século passado: uma das quatro transformações foi a da educação e, em particular a da universidade, e para levá-la a cabo colocou-se nas universidades norte-americanas e europeias milhares de estudantes. Sem a participação dos profissionais formados tão estritamente não se poderia explicar o enorme crescimento econômico do Japão e da China. 

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À medida que o século XX avançava, a brecha entre o nível das universidades europeias, norte-americanas e japonesas e as universidades dos países menos desenvolvidas foi se fazendo abismal. 

Nos países da América Latina, herdeiros de uma economia feudal, a universidade foi ficando com o espírito discriminatório dos tempos da dominação hispânica e portuguesa: os índios, mestiços e outras pessoas de cor não podiam ingressar nela, e viveu submergida no atraso e lenidade correlativos com um incipiente desenvolvimento capitalista. A Reforma Universitária de Córdoba, de 1918, expressou a reação dos estudantes procedentes da burguesia e da pequena burguesia contra este modelo de universidade. As poucas universidades da América Latina que figuram no ranking mundial em níveis aceitáveis tiveram que formar seus professores em universidades dos países econômica e culturalmente mais desenvolvidos e adotar os métodos delas. Tal são os casos da Universidade Nacional Autônoma do México, da Universidade de Buenos Aires, das Universidades Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Estadual de Campinas (Unicamp) no Brasil, e algumas outras. 

É evidente que no Peru muito poucos repararam nas causas do atraso das universidades aqui, e ainda mais, se poderia dizer que à maioria não lhes importa. Para a maior parte de seus professores, seu trabalho se rege por uma autonomia pessoal transformada em dogma que lhes permite ensinar o que queiram e como queiram, sem textos de estudo próprios ou de outros e com bibliotecas famélicas ou inexistentes. Para os alunos o interesse que domina a conduta de muitos, sacralizadas como reivindicações, é a possibilidade de aprovar as matérias da maneira mais fácil e sem esforço, deslizando-se por um tobogã para o diploma profissional. Para os donos de universidades privadas, o interesse é a obtenção de lucros fáceis, rápidos e livre de impostos. E todos estes componentes convivem harmonicamente. 

Os legisladores de direita, centro e esquerda parecem estar de acordo na sobrevivência deste modo de ser das universidades peruanas, o que é normal, posto que a alma mater da maior parte deles é alguma dessas universidades. Os demais, que não passaram por elas, nem suspeitam que esse modus vivendi e operandi é como uma pesada âncora para o nosso país.

Tradução: Beatriz Cannabrava

*Colaborador de Diálogos do Sul, de Lima, Peru.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Jorge Rendón Vásquez Doutor em Direito pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos e Docteur en Droit pela Université de Paris I (Sorbonne). É conhecido como autor de livros sobre Direito do Trabalho e Previdência Social. Desde 2003, retomou a antiga vocação literária, tendo publicado os livros “La calle nueva” (2004, 2007), “El cuello de la serpiente y otros relatos” (2005) e “La celebración y otros relatos” (2006).

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