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Kirchner: quem ainda nega importância do Estado para o povo é ignorante ou cínico

Ex-presidenta convida a repensar engenharia institucional argentina e endurecer contra aqueles que se utilizam do Estado quando este lhes serve
Helena Iono
Diálogos do Sul Global
Buenos Aires

Tradução:

O protagonismo de Cristina Kirchner, vice-presidenta da Argentina, destacou-se em três momentos nos últimos 15 dias. Não transparecem intenções de substituir a figura presidencial de Alberto Fernandez, ou de exacerbar divisões internas na Frente de Todos (FdT), como gostaria a direita desestabilizadora, mas sim, a decisão de pôr ordem e profundidade prática-teórica ao debate político, com força e autoridade reconhecida, como estadista e dirigente política nacional, latino-americana e internacional, marcando uma posição de ideias para acelerar medidas que permitam avançar de governo a poder popular.


Abertura da Assembleia da EUROLAT

O seu discurso de abertura da 14ª Assembleia Parlamentar da EUROLAT no Centro Cultural Kirchner (CCK), em Buenos Aires, ovacionado fortemente por representantes do Parlasul e do Parlamento Europeu, foi mais uma aula magistral de análises históricas, estruturais, com chamados a balances necessários dentro do atual contexto mundial, de questionamentos ao neoliberalismo capitalista, aos poderes fáticos, os do mercado, que predominam hoje mimetizados na democracia dos 3 poderes herdada da Revolução Francesa; à democracia eleitoral que não resulta no real poder econômico dos povos para eliminar a miséria; diferenciando o que é estar no governo, de ter o poder.

Disse: “O fato de que te coloquem uma faixa e te deem um bastão, não significa que te deem o poder: um pouquinho, mas não todo. Acreditem-me. Digo-lhes, por experiência. E nem lhes digo se, além disso, não se fazem as coisas como tem que ser feitas”. 

“Gestapo de Macri” espionou Cristina Kirchner e líderes sindicais para desestruturar oposição

Seu discurso não ficou no diletantismo intelectual, mas convergiu no apelo a ações como governantes, “olhando o passado, para construir presente e futuro”, definindo políticas e medidas que são dever de parlamentares, executivos, juristas, para vencer o “poder real” (dito poder fático) dos monopólios, das finanças, que são as que promovem as guerras de ocupação dos EUA e da Otan (como exemplo, nas Malvinas), derrubam governos progressistas, exacerbando a desigualdade social.

Enfim, Cristina Kirchner abre um enorme debate político, chamando a uma ação transformadora contra o poder real, “repensar nossa engenharia institucional onde se dê poder às instituições ou às que tenhamos que criar. Ainda estamos em tempo; antes que seja demasiado tarde”. 

Por isso, destacou o papel do Estado nas transformações sociais justas e necessárias. “Quem continua afirmando que o Estado não é importante na vida das pessoas é, definitivamente, um ignorante ou cínico”. Refere-se à oposição de JxC (Juntos por el Cambio) de Macri, aos chamados “Libertários” que contrapõem as leis do mercado às leis do Estado.

As palavras de Cristina não são só uma queixa, mas um chamado, como governo e sociedade, para endurecer contra aqueles que se utilizam do Estado quando este lhes serve, e o renegam quando toca nos seus interesses de lucro. São os que agora dão as costas ao Estado quando se trata da lei (proposta pela FdT) que favorece aos mais débeis. Lei, cujo projeto está por ser encaminhado ao Congresso, criando um Fundo que possibilite que a dívida ao FMI seja paga pelos milionários que a contraíram e a levaram aos paraísos fiscais.

“Do mesmo modo que se financiavam golpes militares agora se financiam golpes judiciais”, diz Cristina Kirchner

“No mundo e no nosso país, durante a pandemia o setor privado recebeu todo tipo de ajuda, financeira, fiscal, creditícia, etc. Porém, diante dessa outra tragédia que estamos vivendo hoje, de uma guerra que eu vou falar agora… o mercado nos responde com “ah, não, não importa, são meus lucros, é minha lucratividade, e os outros que se danem”. Bem, olha, não é assim. Como dizem as crianças: “assim, eu não jogo mais; não jogo mais assim”. Se quando você precisava de nós, nós lhe pagamos salários, nós lhe perdoamos créditos, você não pagava impostos; agora que precisamos de você, não para nós, mas para o povo, para a sociedade, o que se diz? Eu acho que essas coisas devem ser discutidas aqui e em todos os lugares, no mundo todo.” (C.F.K.)

Ex-presidenta convida a repensar engenharia institucional argentina e endurecer contra aqueles que se utilizam do Estado quando este lhes serve

Reprodução / Twitter
“O fato de que te coloquem uma faixa e te deem um bastão, não significa que te deem o poder: um pouquinho, mas não todo"




Ato de homenagem aos ex-combatentes na guerra das Malvinas

No ato dos 40 anos da guerra das Malvinas realizado no Congresso, Cristina fez um emotivo discurso em homenagem aos mortos (649) e vivos, veteranos e ex-combatentes argentinos. Uma guerra que infringiu a soberania territorial da Argentina, terminou com a ocupação da Otan, por intermédio da Inglaterra, sobre uma ilha a 14 mil km desta potência capitalista colonizadora. A mesma Otan que hoje insiste em armar e desencadear uma guerra mundial ao combater a intervenção da Rússia que busca defender suas fronteiras, “desnazificar e desmilitarizar” a região independente de Donbas para impedir um genocídio na Ucrânia. Genocídio este que poderá ser provocado por armas bacteriológicas da Otan instaladas nos subterrâneos de Mariupol, segundo revelam os russos. A história ainda está por julgar quem são os que verdadeiramente desrespeitam os direitos humanos.

A homenagem de Cristina no Congresso aos heróis das Malvinas passa desapercebida na mídia (sobretudo na hegemônica) como se tratasse de uma simples comemoração de uma data patriótica.  Como líder carismática, comunicadora e formadora de quadros, explica o contexto histórico nacional em que surgiu a guerra das Malvinas em 1981, quando o governo militar e ditatorial de Galtieri decidiu entreter o povo com uma guerra patriótica contra a Inglaterra, os EUA e a Otan, para encobrir sua crise econômica quando a inflação chegava a 131%; crise profunda que, a um certo momento, levava-o contraditoriamente a até buscar apoio político de Fidel. Cristina, em seu discurso, abraça a comoção dos ex-combatentes e familiares argentinos, dando-lhes um sentido de defesa da soberania nacional; toca na memória de alguns setores nacionalistas das Forças Armadas, sensibilizados sobretudo com a derrota da Argentina frente à ocupação da Otan. 

6 pontos para entender Ilhas Malvinas e por quê Argentina e Inglaterra ainda lutam por elas

“Foi justamente a guerra das Malvinas que encerrou e pôs fim à história do partido militar na Argentina. Uma história complexa. Aquele partido militar, cujo batismo de fogo, por assim dizer, foi em 6 de setembro de 1930, quando derrubaram Hipólito Yrigoyen. Foi aí que começou a festa militar que culminou na primeira derrota militar do Exército e das nossas Forças Armadas, que fica nas Malvinas. Antes de terem sido derrotados politicamente. Eles inventaram isso, mas… e isso não é um sentimento anti militarista. Por favor, nada mais… Nós peronistas não podemos por origem, por história, ser anti militares, de jeito nenhum. Simplesmente a descrição de um processo histórico que trouxe muita dor, muita, muita dor. E há também uma dimensão política e geopolítica nas Malvinas. Porque, vejamos… aquela decisão, aquela adoção daquela decisão, tinha a ver com uma derrota que já vinha do governo na economia.” (C.F.K.)

Antes de Cristina, tivemos a oportunidade de ver Nestor Kirchner dirigir-se como presidente e comandante das Forças Armadas a reconstruir algum ânimo nacionalista, não com a mesma autoridade do coronel Hugo Chávez, na Venezuela, mas com o mesmo sentido, desmaculando a imagem do “todo militar é gorila!” sem deixar de enfocar os civis gorilas. A referência de Cristina aos militares San Martin, Belgrano, Perón, Mosconi (fundador da YPF e do Plano Siderúrgico Argentino) e Sávio (Fábricas militares nacionais) é assaz chamativa. Ela – como Lula – provêm da escola dos líderes da década da integração latino-americana de Hugo Chávez e Fidel que recuperaram Bolívar e citaram Torres (Bolívia), Velasco Alvarado (Peru) e Torrijos (Panamá). Uma discussão a ser feita, “com a certeza na frente e a história na mão”, como cantava Geraldo Vandré. Democracia para quê e para quem. Não se trata somente de métodos suaves ou duros, de eleições ou golpes de estado. Mas, de ver com que forças políticas se impõe a soberania nacional e popular contra o “poder real” que já se arrasta por décadas, causando maiores danos.


O projeto de lei para que paguem a dívida os que a contraíram

O projeto de lei da Frente de Todos, que deverá ser levado ao Congresso, permitirá ao Estado recolher impostos patrimoniais dos sonegadores fiscais de grande vulto; os mesmos que, com Macri respaldaram a dívida ilegal de 44 bilhões de dólares com o FMI (sem aprovação do Congresso) e, depois, os levaram às suas contas off-shores dos paraísos fiscais no exterior. Trata-se de um projeto contundente previsto em vários discursos da vice-presidenta Cristina Kirchner, notadamente em 10 de dezembro de 2021, no Dia da Democracia, na praça de Maio, com a presença do presidente Lula.

Há referências sobre o tema no artigo publicado anteriormente. Esta arrecadação, mediante esta lei, permitiria resolver, por um período, as profundas carências econômicas produzidas pela pandemia e pela dívida macrista; recuperar reservas, investir no processo produtivo, conter a inflação, diminuir o desemprego e impedir efeitos negativos de prováveis revisões do FMI, sem contar os impactos da guerra na economia.

Um grande desafio para o governo da Frente de Todos: acionar medidas frente à dívida interna com o povo, não só perante a dívida externa. Como acionar o Estado para resolver o problema do abastecimento alimentar frente ao aumento da pobreza que atinge 40% da população.

O governo, por meio  da Secretaria de comércio interior, ampliou a lista dos produtos de supermercados com preços tabelados, mas a mão forte do Estado para controlar e conter as oligarquias e os monopólios privados dos marcadores de preços ainda não chegou.

Dada a urgência, surgem várias iniciativas políticas em nível de governo de província, como a de Buenos Aires, onde o Estado provincial incentiva a venda direta de pequenos produtores nos mercados populares de abastecimento local, como parte das medidas próprias de combate aos intermediários, contendo a subida dos preços e a inflação. Disse Axel Kicillof: “Não se pode transferir o preço da guerra europeia aos bolsos da Província de Buenos Aires”. 

Iniciativas semelhantes estão sendo tomadas por uma parte da Frente de Todos, unindo em ações concretas, seja os que votaram a favor ou contra o recente acordo com o FMI. Um exemplo é a formação de um Comitê de Credores da Dívida Interna (CADI) com o intuito de batalhar pelas “dívidas internas com o povo” e acelerar as investigações sobre o empréstimo de Macri com o FMI. Trata-se de um comitê multissetorial iniciado por Juan Grabois, líder do Movimento de Trabalhadores Excluídos (MTE) e da Confederação de Trabalhadores da Economia Popular (CTEP). Participam personalidades de movimentos sociais, culturais, sindicais e religiosos, entre os quais Pérez Esquivel e Taty Almeida (dirigente das Mães da Praça de Maio).

Assim, em sintonia fina com os discursos de Cristina Kirchner, iniciativas como estas contribuem a sustentar e fortalecer a unidade da Frente de Todos e a impulsionar o governo de Alberto Fernández a avançar rumo a um Estado ativo como condição sine qua non para avançar em políticas transformadoras e vencer o poder real. 

Helena Iono é colaboradora da Diálogos do Sul em Buenos Aires.



As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Helena Iono Jornalista e produtora de TV, correspondente em Buenos Aires

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