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Crise política no Panamá é caminho para controle social da gestão pública

Quadro é ainda mais complexo quando se constata a obsolescência do que resta da liderança que o país herdou
Guillermo Castro H.
Diálogos do Sul Global
Alto Boquete

Tradução:

 “Vê-se chegar as ideias como as desventuras.
Quando um problema impõe uma solução,
Esta vem de todos os lados mais ou menos confusa,
e ocorre vagamente a todos.
Os lúcidos não devem desdenhar o instinto público.
Assim as feras quando cheiram o perigo, mudam de asilo,
e buscam o mais seguro e afastado. Assim se vê no ar,
que quando quer aquietar-se a tormenta,
os átomos se agrupam lentamente,
recolhem-se em redemoinhos densos e estreitos,
e baixam e pousam.”
José Martí, 1887[1]

“Mene, mene, tekel, uparsin.”
Daniel, 5. 17-30[2]

À primeira vista, a deterioração do regime político estabelecido no Panamá depois da intervenção militar norte-americana de 1989 chegou a um ponto de deterioração que nos leva de volta às formas mais básicas de enfrentamento entre o povo – trabalhadores manuais e intelectuais do campo e da cidade – e uma oligarquia aferrada a um modelo de desenvolvimento esgotado. Apenas começam a manifestar-se as diferenças de setores e frações dentro de cada um destes grandes blocos, por si heterogêneos e ainda em processo de adequação às realidades dos tempos que correm para esta sociedade, como para todas as do planeta.

Contudo, cabe prever que no fundamental aqui se iniciou a transição para um regime político que ofereça as garantias necessárias para o controle social da gestão pública, ou para alguma modalidade de bukelismo que garanta que este controle não se faça presente na vida política.

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Isto torna-se ainda mais complexo se considerarmos que, tanto ou mais que a mobilização juvenil de camadas médias, torna-se evidente a obsolescência do que resta da liderança que o país herdou do período que vai da morte de Omar Torrijos a nossos dias, no que tange a seus seguidores como a seus opositores, que ainda não conseguem exercer além da década de 1970.

Daí que na conjuntura se expressem as mais diferentes utopias, desde as de uma reação conservadora moldada desde e para uma inextinguível Guerra Fria, até ambientalismos cuja riqueza de consignas ainda não encontra tradução em propostas bem fundamentadas de política.

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Em meio a tudo isso, o governo do Estado, vítima da crise de legitimidade gerada por sua conduta em relação a um leonino contrato com uma mineradora canadense que conseguiu fazer aprovar pela Assembleia Legislativa, para ser declarado depois inconstitucional pela Corte Suprema de Justiça, não consegue ainda fazer crível seu manejo das consequências de seu fracasso político.

Assim, enquanto se incrementa a campanha dos grandes meios de comunicação e de alguns dirigentes políticos e empresariais em favor de negociar um novo contrato com a empresa, a gestão do processo de cancelamento do inconstitucional continua, no essencial, a cargo de ministros que em determinado momento o aprovaram, alimentando dia após dia novas denúncias daqueles que promoveram seu repúdio.

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Quadro é ainda mais complexo quando se constata a obsolescência do que resta da liderança que o país herdou

Foto: AnyGang/Wikimedia Commons
Modelo panamenho demonstra dia após dia sua incapacidade de garantir uma prosperidade equitativa e sustentável




Situação complexa

De fato, o país ingressou em cheio nesta situação – tão de nossa América nestes tempos – em que as coisas já não são o que eram, mas ainda não cabe dizer com precisão o que chegarão a ser. No momento, persiste-se em um exercício de desqualificação entre vontades que se chocam, no qual a honestidade pragmática da própria contrasta com a malignidade interessada das outras. Mas se se trata de estar no que é real, e não no aparente, vai convir ao país atender à advertência de Martí ao indicar que quando existem “para um evento causas históricas, constantes, crescentes e maiores, não é preciso buscar em uma passageira causa ínfima a explicação do evento.”[3]

De fato, o que resultar desta transição dependerá em uma importante medida da capacidade de cada setor de passar da causa ínfima que hoje invoca – a ignorância do povo, a desonestidade dos políticos, a ingenuidade ou a maledicência de seus adversários – à causa maior da crise que encaramos: o esgotamento de toda uma modalidade de desenvolvimento da economia, da sociedade e da política nacionais. Ir até esta causa não será fácil, pois demandará desmontar a tarefa cumprida pelos setores dominantes no país para fazer ver esta modalidade de desenvolvimento como um fato natural e não como o resultado de um processo histórico.

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Este modelo já demonstra dia após dia sua incapacidade não só de garantir uma prosperidade equitativa e sustentável, como e sobretudo a da convivência democrática de todos os setores que integram nossa sociedade. Em seu seio não há saída para nossos males. Isso demanda transcendê-lo, se se aspira a resolvê-los, ou impô-lo pela força ou pela corrupção, se se aspira a seguir retardando sua desintegração.

Para esta disjuntiva nos encaminhamos – como todas as sociedades do planeta -, por meio da neblina gerada por aqueles átomos que “se agrupam lentamente, recolhem-se em redemoinhos densos e estreitos, e baixam e pousam”, de que nos fala Martí.

É disso que se trata, para não mergulhar o país em acertos de antecâmara e de esquina que prolonguem a crise, e tornem cada vez mais difícil facilitar o fluxo dos fatores que nos leve à solução que o bem do país demanda.

Alto Boquete, Panamá, 6 de dezembro de 2023


Referências

[1] “Cartas de Martí”. La Nación, Buenos Aires, 4 de maio de 1887. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975. XI, 175.

[2] “Então Daniel respondeu e disse diante do rei: […] Esta é a interpretação do assunto: MENE: Contou Deus teu reino, e lhe deu fim. TEKEL: Pesado foste na balança, e foste encontrado falho. PERES: Teu reino foi destruído, e dado aos med os e aos persas. Então mandou Belsasar vestir Daniel de púrpura, e pôr em seu pescoço um colar de ouro, e proclamar que ele era o terceiro senhor do reino. Na mesma noite foi morto Belsasar, rei dos caldeus.”

[3] Ibid., “El tratado comercial entre los Estados Unidos y México”. La América, Nova York, março de 1883. VII, 22.

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Guillermo Castro H. | Colunista na Diálogos do Sul desde Alto Boquete, Panamá.
Tradução: Ana Corbisier


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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