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Análise | Futuro do Canal do Panamá exige reestruturação política, social e ambiental

A situação da hidrovia constitui hoje o maior perigo para a própria atividade do trânsito no país; saída é pelo desenvolvimento sustentável
Guillermo Castro H.
Diálogos do Sul
Cidade do Panamá

Tradução:

“De todas partes solicitam à mente ideias diversas – e as ideias são como os pólipos, e como a luz das estrelas, e como as ondas do mar. Se aspira incessantemente a saber algo que confirme, ou se teme saber algo que mude as crenças atuais.”

José Martí, 1882[1]

Introdução

A redação deste texto tem raízes em 2006, no debate sobre a ampliação do Canal do Panamá. Tentou-se então contribuir com este debate proporcionando um quadro de referência construído desde a história ambiental, com a intenção de ressaltar as relações de interdependência entre o Canal e o país que o mantem.

Este quadro de referência pode ser hoje de alguma utilidade para o debate em torno à metástase da economia de enclave gerada pelo transitivismo, que desde o fim do século 20 vem se expandindo para a mineração metálica a céu aberto, em uma relação que chamam de interdependência e que só cabe comparar com a estabelecida entre a fome de Saul e o prato de lentilhas pelo qual trocou sua descendência.

A situação da hidrovia constitui hoje o maior perigo para a própria atividade do trânsito no país; saída é pelo desenvolvimento sustentável

Revista CentroAmérica
Todo processo produtivo implica sempre, como sabemos, uma reorganização simultânea da natureza e da sociedade

Panamá, 2006-2014

Para referir-nos ao problema do impacto ambiental do projeto de ampliação do Canal do Panamá, convém começar por distinguir o ambiente do meio natural, e estes da ecologia. O ambiente é, no mais essencial, o resultado da ação dos seres humanos sobre o meio natural, enquanto a ecologia é uma disciplina científica que se ocupa das relações dos seres vivos entre si, e com o meio abiótico. A espécie humana veio refazendo o meio natural desde pelo menos cem mil anos – no caso do Panamá, pelo menos catorze mil. Assim, o impacto ambiental de uma ação humana designa o efeito desta ação sobre o ambiente previamente existente, e as transformações que resultam deste efeito.

Desta perspectiva, destaca-se o fato de que os seres humanos se relacionam com o mundo natural por meio das relações que estabelecem entre si para produzir seus meios de existência, e reproduzir suas estruturas de ação social. Por isso, a análise dos problemas ambientais em sua relação com as estruturas sociais é especialmente útil na avaliação de problemas como o que nos interessa. Assim, o trânsito interoceânico já era um importante fator de organização da atividade humana no Istmo que hoje chamamos de Panamá muito antes da conquista europeia do século XVI, como o prova sua presença em todas as grandes zonas culturais em que se organizava a presença humana no Istmo: o Grande Darién, o Grande Coclé e o Grande Chiriquí.

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É a partir da incorporação do Istmo ao mercado mundial como resultado desta conquista que se forma a estrutura de ação social que hoje cabe designar com o nome de transitismo. Este termo, de fato, define a forma específica de inserção do Istmo no moderno sistema mundial a partir do século XVI, da qual resultam, por sua vez, as paisagens que hoje consideramos características da atividade de trânsito tal como se veio realizando até hoje.[2]

Importante, aqui, é que o ambiente e as paisagens do Panamá não são o resultado do trânsito como forma de atividade econômica, e sim do transitismo como formação econômico-social e como marco da relação entre a sociedade e a natureza no Istmo entre os séculos XVI e XXI.

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Ao longo deste período, este marco da relação teve alguns traços constantes e outros mutantes, que nos permitem identificar momentos fundamentais em seu desenvolvimento. Tais traços constantes incluíram, por exemplo, os seguintes :

  • O monopólio do trânsito por uma rota em particular – neste caso, o vale do Chagres – sujeita a estrito controle por parte de uma potência estrangeira até 1999, e do Estado panamenho desde então.
  • O uso deste controle com o objetivo de garantir constantes subsídios ambientais e sociais à atividade de trânsito por esta rota particular, e como meio para concentrar e centralizar a vida econômica do país – e o acúmulo dos excedentes gerados para a economia – em torno a esta atividade.
  • a subordinação da periferia interior da rota a funções compatíveis com o subsídio ao trânsito.
  • a constante fragmentação do mundo dos trabalhadores entre os setores direta e indiretamente vinculados ao trânsito.
  • o controle das relações exteriores – neste caso, das relações de dependência em relação ao centro do sistema mundial – por meio do controle da rota de trânsito e dos subsídios a esta atividade e como resultado de tudo isso.
  • uma estrutura econômica que, em contraste com o usual na América Latina, concentra no setor terciário magnitudes de atividade e produção que no resto da região correspondem em geral aos setores primário e secundário.

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Impacto ambiental

Uma história do impacto ambiental do transitismo no Panamá vem a ser, neste sentido, uma história ambiental do Panamá. Nela destacam-se três grandes momentos fundamentais:

  • O do trânsito pré-industrial, entre 1550 e 1850, caracterizado pelo uso de uma tecnologia de baixo impacto, adaptada às restrições que o meio impunha à atividade, operada mediante trabalho escravo ou de peões, e financiada fundamentalmente pelo capital local.
  • o do trânsito industrial ferroviário, dominante entre 1850 e 1914, que utilizou uma tecnologia de médio impacto ambiental, capaz já de subordinar o meio natural às necessidades do trânsito, operada mediante o trabalho de operários e técnicos assalariados e financiada por capital privado proveniente do exterior.
  • o do trânsito industrial hidráulico, dominante de 1914 a nossos dias, que utiliza uma tecnologia de enorme impacto ambiental, operada por operários e técnicos especializados de alta qualificação, e financiada por capital monopólico de Estado, em cujo contexto veio a situar-se o projeto de ampliação do Canal.

Essencial, em todo caso, é que o desenvolvimento das forças produtivas na atividade de trânsito no quadro da formação social transitista dependeu do subsídio em recursos humanos e naturais – terra, água e energia principalmente – provenientes do entorno natural, social e econômico da rota. Esta relação de subsídio ao trânsito traduziu-se por necessidade em um fator que contribuiu de maneira decisiva para o atraso constante no desenvolvimento das forças produtivas no resto da economia nacional, e na transformação das relações sociais de produção e na cultura no resto da sociedade.

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Ao abordar nesta perspectiva a dimensão ambiental do transitismo, começamos a entender que o contraste entre as paisagens sociais e naturais do corredor interoceânico e as do interior do país não se deve a que haja no Istmo vários países em um. O que há é uma sociedade integrada por grupos sociais que organizam suas relações com a natureza no contexto de uma estrutura de poder tão contraditória, conflituosa e violenta a ponto de gerar e manter o processo de crescimento econômico com deterioração social e degradação ambiental constantes, em cujo marco se inscreve o projeto de ampliação do Canal. Por isso, a discussão do impacto deste projeto sobre o ambiente criado pelo transitismo deve ser situado em vários planos simultaneamente.

O primeiro destes planos refere-se, sem dúvida, ao impacto do projeto sobre seu entorno imediato. A isto corresponde no fundamental o estudo de impacto ambiental sintetizado no folheto de divulgação do projeto de ampliação, e que com toda probabilidade será tecnicamente impecável quando chegar a ser conhecido em detalhes e for finalmente avaliado pela autoridade estatal correspondente. No entanto, além disso – que corresponde ao âmbito de responsabilidade da empresa estatal que apresenta o projeto -, é necessário que a sociedade e o Estado abordem o problema a partir de pelo menos dois planos mais.

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O primeiro deles refere-se ao impacto do projeto sobre a marca ecológica já deixada pelo enclave transitista sobre o conjunto do território nacional, em particular da década de 1950 a nossos dias. O segundo, à avaliação ambiental estratégica que um projeto como este requer, tanto por sua magnitude e demandas intrínsecas, como por sua importância para o futuro do trânsito no Panamá. Com reservas sobre o que nos revelarão estes estudos, que ainda não foram nem sequer propostos, até onde sabemos, me atreveria a adiantar algumas ideias para a discussão do impacto ambiental do transitismo no Panamá.

Em primeiro lugar, já está evidente que existe uma contradição insolúvel entre o transitismo e o trânsito, na medida em que o território e a sociedade nacionais chegaram ao limite de sua capacidade para continuar proporcionando os subsídios ambientais e sociais que o trânsito demanda, como vinha ocorrendo até a década de 1980. Hoje, pelo contrário, a crescente escassez relativa de terra e água no Panamá gera tensões sociais que tendem a encarecer os custos econômicos, sociais, políticos e ambientais da atividade de trânsito, impedindo assim um aproveitamento verdadeiramente racional e sustentável dos recursos humanos e naturais do país.

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Esta situação, claro, não afeta só o Canal. Pelo contrário, estende-se à própria possibilidade de que o país possa encarar com êxito a crise energética que o afeta, e criar verdadeiras vantagens competitivas para o conjunto de nossa economia; e esta contradição torna-se evidente para qualquer um que não esteja apenas comprometido com a preservação a qualquer custo das estruturas mais tradicionais de poder do transitismo.

Por outro lado, tampouco estamos sozinhos nesta crise. A ampliação do Canal, e suas implicações ambientais, fazem parte do processo maior de transformação massiva da natureza em capital natural que vem ocorrendo em toda a região latino-americana, por meio de outros megaprojetos como o anel energético sul americano, a interconexão viária andina, a hidrovia da Bacia do Prata, ou a integração energética centro-americana.

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Neste contexto maior, e de maneira mais precisa, o que ressalta em nossa terra é o fato de que a operação sustentável do Canal demanda, hoje, o desenvolvimento sustentável do país. Por isso, o problema maior para a avaliação do projeto que discutimos consiste em que carece do quadro de referência que só poderia proporcionar-lhe um projeto destinado a garantir a sustentabilidade do desenvolvimento no Panamá.

Esta carência, sem dúvida, não pode ser atribuída diretamente à Autoridade do Canal do Panamá, mas sim ao Estado do qual a Autoridade faz parte. A Autoridade cumpriu sua responsabilidade de formular o projeto nos termos correspondentes à missão que o Estado lhe atribuiu. Corresponderia agora ao Estado propor ao país o projeto nacional que faça da ampliação do Canal, além de um bom negócio em seus próprios termos, o fator decisivo na promoção e na sustentabilidade do desenvolvimento da sociedade panamenha em seu conjunto.

O fato de que o Estado não tenha proposto sequer esta tarefa, nem muito menos a tenha proposto à sociedade como um empenho comum, teria que ser objeto de uma séria reflexão política. De fato, se o Estado controla o Canal, o que cabe discutir é quem controla o Estado, como o faz, e até que ponto está ou não está com disposição e capacidade para submeter sua gestão dos bens públicos ao controle social dos cidadãos da República.

Este controle social da gestão pública deverá ter um lugar de primeira grandeza em qualquer projeto de desenvolvimento sustentável da República. Os elementos fundamentais para a construção deste projeto se encontram dispersos, hoje, nas demandas de múltiplos setores da sociedade panamenha, desde os camponeses que resistem à construção de barragens nas terras em que vivem, até os produtores do interior que desejariam ver no Canal um verdadeiro fator de vantagem para competir no mercado mundial com seus produtos.

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Em cada um destes casos, os setores dominantes em nosso país tendem a reagir a partir de suas tradições políticas mais atrasadas, dizendo que se trata de gente que simplesmente se opõe ao progresso. Na realidade, trata-se do contrário. Estes setores resistem é a continuar subsidiando com seu trabalho e os recursos naturais dos que depende sua existência um progresso excludente, que não lhes oferece verdadeiro acesso ao gozo de seus frutos. Ou, dito em uma linguagem mais próxima ao núcleo mais íntimo dos problemas de nosso tempo, estes setores não resistem ao desenvolvimento das forças produtivas, e sim à preservação das relações de produção que constituem o alicerce fundamental do transitismo.

Chegamos, assim, à mais singular das contradições de nossa história: aquela em que o transitismo constitui o perigo maior para a atividade do trânsito no Panamá. Aqui está o nó górdio da crise que nos aflige. E a chave para encarar este problema está na mais simples das perguntas.

Todo processo produtivo implica sempre, como sabemos, uma reorganização simultânea da natureza e da sociedade. Por isso, se para reorganizar a natureza do Istmo da maneira como requeria o trânsito hidráulico foi necessário organizar como República o país e incorporar a esta República os novos grupos sociais que surgiram daquela reorganização do mundo natural, que transformação social e política será necessária para viabilizar a operação sustentável do Canal mediante o desenvolvimento sustentável do país.

Por trás desta pergunta encontramos uma orientação inesperada em nossa história. “Sem Canal não há país”, diziam-nos, e hoje descobrimos que sem país não haverá Canal, e devemos dizer isso. Ninguém pode dizer que tem a resposta pronta para esta questão, que mal começamos a perceber. Esta resposta, no entanto, está subjacente a todas as nossas colocações precisamente porque não está em nenhuma. Por isso, não é preciso buscá-la: é preciso construí-la. Tal é, sem dúvida, o maior desafio de nosso tempo em nossa terra, hoje como ontem, ainda que hoje com maior urgência.

Universidade do Panamá, 15 de junho de 2006/

Alto Boquete, Panamá, setembro de 2023


Notas

* La Pupila Insomne, 5 de janeiro de 2014

Panamá: el transitismo contra el tránsito

Panamá: el transitismo contra el tránsito

[1] “Prólogo a El Poema del Niágara”. Nova York, 1882. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975. VII, 225.

[2] O transitismo foi analisado com grande rigor por colegas como o sociólogo Marco Gandásegui – cujo estudo clássico sobre a concentração do poder econômico no Panamá fará logo cinquenta anos de ter sid o -, economistas como José Gómez e Juan Jované, e em particular pelo historiador Alfredo Castillero Calvo, cujo ensaio “Transitismo y Dependencia” (Revista Lotería, 1973) constitui uma contribuição pioneira ao tratamento do tema. O impacto ambiental do transitismo, no entanto, apenas foi tratado na obra de geógrafos como Omar Jaén Suárez e Ligia Herrera, e nos capítulos dedicados ao tema na História Geral do Panamá publicada em 2003 e transformada desde então em uma curiosidade de colecionadores pelos maus hábitos do sectarismo característico de nossa pobre vida política.

Guillermo Castro H. | Colaborador da Diálogos do Sul em Alto Boquete, Panamá.
Tradução: Ana Corbisier


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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