I / As primeiras instituições que representaram, no Brasil, soberania e democracia liberal[1]foram criadas no período 1815/1825. Entre nós, soberania e democracia são, de fato, instituições gêmeas. Até hoje.
No Velho Mundo não foi assim, esse processo durou do século 17 ao 19 [2](Vestfália-1648/aos 1800, Império austro húngaro e Itália).
II / Soberania é a capacidade de uma nação decidir os próprios caminhos e destinos[3]. É um direito que pertence ao povo, exercido por delegação. Soberania e cidadania são fundamentos do Estado Democrático de Direito (1988).
Quando a ordem social é autoritária, restringe-se a soberania popular, o povo passa de sujeito a vítima do Estado. Perece o Estado nacional, separam-se Estado e Nação. Delegados renunciam à representação recebida através do voto popular e se transformam em vassalos das potências hegemônicas. 1964 é exemplo disso.
No Brasil, só a ordem democrática permite restaurar os poderes da Nação, devolver legitimidade aos eleitos pelo povo, exercer livremente os direitos de cidadania e reconstruir o Estado Nacional e os poderes da República[4]. Por isso, nossa luta permanente é por democracia.
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A luta dos movimentos sociais pela reconstrução do Estado Democrático de Direito, após 1964, resultou no Pacto de 1988
III / A luta dos movimentos sociais pela reconstrução do Estado Democrático de Direito, após 1964, resultou no Pacto de 1988, único projeto nacional elaborado democraticamente nos 200 anos de nação independente. A Constituição de 1988 foi o pacto democrático e desenvolvimentista que favoreceu e viabilizou:
- a universalidade dos direitos de cidadania e avanços em matéria de justiça social;
- a configuração das Finanças Públicas, base financeira do Estado de Direito, de acordo com as necessidades da industrialização brasileira e com o pleno exercício dos direitos trabalhistas e sociais[5].
- O saldo dos anos 1980: resgate da soberania e da democracia, eleição direta, por voto popular, do presidente da República[6].
Foram anos de reconstrução e complementação do Estado nacional da Era Vargas.
Ou soberania ou dependência colonial
IV / Com base histórica, pode-se construir a hipótese: a contradição principal que alavancou a expansão da sociedade brasileira nesse período de independência revelou seus antagonismos: o Estado nacional X Hegemon. Império britânico ontem e norte-americano atualmente[7].
Há base empírica permitindo acatar esta hipótese. O reconhecimento da contradição principal se dá através de análise concreta sobre a disputa pelo excedente econômico. No Brasil, há razões históricas para que a adotemos[8]. Exemplos não faltam. São as veias abertas da América Latina.
V / “Na virada do século 17 para o 18 a procura de ouro no Brasil converteu-se em paixão. O saldo do comércio triangular Inglaterra-Brasil-Portugal foi sempre favorável à Inglaterra e pago com o ouro do Brasil. Desenvolveu-se o contrabando. Dados estimados pelo Barão Von Humboldt[9]permitem afirmar que no século setecentista produziu-se no Brasil cerca de 1.400 toneladas de ouro, sendo contrabandeados 30%”. Iniciava-se assim o monopólio da dominação anglo-saxã[10].
A contradição Estado nacional X hegemon afirmou-se na independência, surge enfim o Estado brasileiro. Aprofundou-se na República Velha. Recorrentemente ocorreram fases de modernização/prosperidade seguidas por outras de estagnação/declínio.
Assim, embora sejamos possuidores dos elementos que viabilizam constituir uma nação industrial, nos tornamos incapazes de completar o ciclo industrial. “Quando um país vive sob tutela, é provável que não lhe seja permitido avançar no desenvolvimento industrial. Há os exemplos da Irlanda, na Europa, e do México, na América Latina[11]”, falava, em 1940, o veterano professor Osório da Rocha Diniz.
VI / A guerra híbrida que nos é movida hoje é a mesma de anos atrás, quando foram iniciadas perseguições e acusações, sem base, sem prova concreta, aos opositores da dominação imperialista. Apresentou-se primeiro como manifestação externa do macarthismo, equivalente estadunidense do fascismo. Na ocasião, foi idealizado o projeto Camelot, direcionado à nata da cultura nacional — ciências sociais e artes em geral[12].
Pouco a pouco foi-se tornando inviável o exercício da soberania nacional. Por quê? Ora, o exercício da soberania requer capacidade financeira (economia e moeda próprias) e poder militar (forças armadas bem equipadas).
Desde os anos 1980 o Brasil sofre a desestruturação das instituições estatais. Somos, literalmente, hoje, uma nação ocupada por forças estrangeiras. Um pouco à maneira dos franceses durante a República de Vichy (1840).
Caso se aprofundem a desindustrialização e a desnacionalização, poderemos entrar em processo de africanização, com a economia monopolizada por uma pauta de comércio exterior fornecedora de produtos do agronegócio e minerais. Na frente cultural e ideológica, o processo de africanização vem sendo perpetrado há décadas.
O que fazer frente a uma guerra tão desigual?
Como resistir à devastação anunciada de nosso patrimônio? Solo, água, minérios, metais preciosos?
É o desafio atual. Um patrimônio avaliado em dezenas de trilhões!
VII / “A propaganda oficial proclama que a intervenção militar (1964) ocorreu em razão de erros do governo de João Goulart[13].” Da mesma forma, imputam o golpe de 2016 e a eleição do atual grupo governante aos erros de Dilma Rousseff. Na verdade, diz Miguel Arraes, os objetivos do golpe de 1964 surgiram em 1945. Queria-se impedir a industrialização, determinar o papel do capital estrangeiro e a inserção dependente, do Brasil, na ordem internacional (depois Nova Organização Internacional).
Democracia?
Talvez, mas no estilo dos Estados Unidos e atrelando o Brasil àquele país.[14]
Há uma nova utopia em construção: o projeto euroasiático. Ele poderá determinar a emergência de novo tempo histórico onde predomine na geopolítica a multipolaridade, deslocando-se para a Ásia os centros comerciais sob liderança de quatro potências: China, Índia, Japão e Coreia.
Com a herança portuguesa que nos é peculiar e suas raízes árabes e orientais, não será sacrifício enterrar este falso deus, o mercado, e o materialismo egoísta e perverso dos indivíduos que o lideram.
Uma nova era!
Entraremos, enfim, no Novo Mundo sugerido durante o renascimento florentino, aqui presente na belíssima obra de nosso Aleijadinho!
Certamente, “unidos venceremos!”
*Ceci Juruá é colaboradora de Diálogos do Sul – resumo da intervenção na CNTU – 13ª. Jornada Brasil 2022. Democracia, abre as asas sobre nós
Referências:
[1]No Brasil a democracia liberal exprimiu-se como rotatividade dos partidos políticos no poder, com o voto censitário para escolha dos representantes de parcelas do povo.
[2]Tratado ou Paz de Vestfália, 11 tratados assinados ao longo de 1648, finalizando Guerra dos 30 anos do século XVII (outra Guerra dos 30 anos ocorreu no século XX, 1914-1945)
[3]Teotonio Vilela.Rev.PMDB/II,5,maio/junho 1983
[4]Períodos de exceção da relação simbiótica soberania/democracia: certos períodos dos governos Getúlio e Geisel onde se manifestou alternância entre face pró-autoritarismo e pró-democratização.
[5]O preço político, passou despercebido, foi a extinção dos impostos únicos
[6]Existe uma certa correspondência histórica entre as décadas de 1850 (leis de instituição dos marcos jurídicos iniciais do capitalismo e 1980)
[7]1850/60 a 1929, 1930-55 a 1963, 1964/68 a 1989, 1994/95 a 2002, 2003/15. Há dois tipos de contradições sociais: as contradições no seio do povo (luta de classes) e as contradições entre nós e os nossos inimigos (o imperialismo).
[8]Ver artigo do economista Alexandre Barbosa, na FSP. Esquerda não foi derrotada, foi expurgada. No polo vencedor, da extrema direita, juntaram-se todos os opositores a uma política democrática e progressista. Verificar também o Balanço de Pagamentos e entradas e saídas de moedas-divisa.
[9]Francisco Javier Rios. OURO DO BRASIL, História dos caminhos esquecidos. Autor é pesquisador da Comissão Nacional de Energia Nuclear. Brasília:CNEN, 2018
[10]Em 33 anos (1694-1727) a Inglaterra cunhou cerca de 15 milhões de libras esterlinas em ouro, montante próximo à cunhagem de anteriores 136 anos (1558-1694). Pierre VILAR. Ouro e moeda na história 1450-1920 (RJ: Paz e Terra, 1980)
[11]Osório da ROCHA DINIZ. O Brasil em face dos imperialismos modernos. Coleção Brasilianas vol. 183
[12]“Depois do macarthismo e da mediocridade de dois mandatos entregues a um general…a capital norte-americana encheu-se de intelectuais … que assessoraram um professor de Yale e do MT. Membro da Fundação Ford. Ligado à Fortune, à United Steel… na formatação de operações de baixa intensidade. …contratar mais agentes nativos que norte-americanos… minar internamente as nações …usar o poder de corrupção ali onde alguns dólares compram qualquer coisa…” Newton Carlos. CAMELOT. Uma guerra americana.
[13]Miguel Arraes. O jogo do poder no Brasil. SP: Alpha Omega, 1981
[14]Em fins dos anos 60 o ministro da defesa dos usa, McNamara, referia-se às FFAA latino-americanas como complementares, devendo estar voltadas para o inimigo interno, qualquer inimigo externo deveria ficar por conta da potência hegemônica, no estilo quase bicentenário da Doutrina Monroe.