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ToggleComecemos pelo “longo” século 16 – o qual, como o século 21, assistiu a um processo turbulento de marquetização. Naquele momento, os Jesuítas e a Contrarreforma tentavam expandir-se pela Ásia, mas num contexto no qual a rivalidade entre as superpotências ibéricas do tempo, Espanha e Portugal, ainda vigia
A Reforma ligou-se primeiro à talassocracia (1) comercial holandesa – império nascido no mar, com o correspondente comércio marítimo – a partir da mais estrita propaganda do dogma religioso. O reino marítimo da Grã-Bretanha ainda ganhava tempo e preparava seu jogo. A emergência do Protestantismo avançou paralelamente à emergência do neoconfucionismo no Leste da Ásia.
Avance a narrativa até nossos tempos turbulentos. A marquetização – renomeada para “globalização” – parece em crise. Mas não no Império do Meio, que agora investe na globalização 2.0, enfrentando a crescente rivalidade da outra superpotência, os EUA.
A talassocracia norte-americana está sendo superada pela Vingança da Terra Central (ing. the Heartland, terminologia de Mackinder), na forma da pareceria estratégica Rússia-China – parceria que vê a integração do comércio eurasiano, como manifesta pelas Novas Rotas da Seda, ou Inciativa Cinturão e Estrada (ICE) (2), vistas como crucialmente decisiva, acima do dogma MAGA (ing. Make America Great Again, “Fazer a América Grande Outra Vez”).
Entrementes, o ressurgimento do populismo de direita no ocidente reproduz a ressurgimento do neoconfucionismo pragmático em toda a Ásia.
A ICE – principal veículo para a integração da Eurásia – jamais teria surgido sem as quatro décadas de desenvolvimento chinês, em velocidade vertiginosa.
i21
Guerra comercial entre China e Estados Unidos está no centro da geopolítica mundial
Meus leitores mais bem informados sobre geopolítica, como o magnificamente enigmático Larchmonter, estão em sincronia com o que ouço – já há anos – em minhas conversas com os mais importantes analistas na Rússia, na China, no Irã, na Turquia e no Paquistão: depois do confuso “pivô para a Ásia” do governo Obama, a resposta do governo Trump ao surgimento da China tem sido meter todas as cunhas possíveis em todas as engrenagens à vista.
Daí a histeria em curso sobre tarifas, a ofensiva comercial, a demonização da ICE, de Made in China 2025 e da prevalência da 5G da Huawei, e todas as modalidades de táticas para perturbar, de Guerra Híbrida, das repetidas “questões” sobre “liberdade de navegação” no Mar do Sul da China, ao processo acelerado de armar Taiwan.
E tudo isso devidamente empurrado por avalanche sem fim de “análises” compradas para publicação nos veículos de mídia, sempre apresentando a empresa Huawei como “suspeita” ou permanentemente “não merecedora de confiança”.
Do ponto de vista da hiper potência, só pode haver um final para esse jogo: uma economia chinesa amputada, incapacitada para sempre e de preferência em estado de permanente agonia –, e com demografia desfavorável, para começar.
Onde estão nossos trabalhos?
Pausa no som e fúria, para alguns necessários detalhes precisos. Ainda que o governo Trump aplique 25% de tarifas em toda as exportações chinesas para os EUA, o FMI já projetou que haverá mínimo impacto – menos 0,55% – no PIB da Rússia. E os EUA dificilmente terão qualquer ganho, porque as super tarifas não trarão de volta aos EUA os empregos de manufatura – precisamente o que Steve Jobs disse, a eras, a Barack Obama.
O que acontece é que essas cadeias globais de suprimento serão redirecionadas para economias que oferecem vantagens comparativas em relação à China, como Vietnã, Indonésia, Bangladesh, Camboja e Laos. Redirecionamento que já está mesmo acontecendo – acionado inclusive por empresas chinesas.
A Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE) representa investimento geopolítico e financeiro massivo pela China, e também por parceiros da China; já são mais de 130 estados e territórios signatários. Pequim está usando seu imenso pool de capital para fazer a própria transição rumo a uma economia baseada no consumidor, ao mesmo tempo em que promove o desenvolvimento necessário da infraestrutura paneurasiana – com todos aqueles portos, ferrovias para trens de alta velocidade, fibra ótica, redes de fornecimento de energia elétrica que se expandem para a maioria das latitudes do Sul Global.
O resultado final, até 2049 – prazo para expansão da ICE –, será o advento de um mercado integrado de não menos que 4,5 bilhões de pessoas, naquele momento, com acesso a alguma cadeia chinesa de exportação de produtos high-tech e também dos mais prosaicos itens de consumo.
Quem tenha acompanhado os acertos e parafusos do milagre chinês lançado pelo Pequeno Timoneiro Deng Xiaoping em 1978 sabe que Pequim está, na essência, exportando o mesmo mecanismo que levou todos os próprios 800 milhões de chineses, num relâmpago, a se tornarem membros de uma classe média global.
Por mais que o governo Trump possa apostar na tática de “pressão máxima” para conter ou até bloquear o acesso dos chineses a todos os setores do mercado dos EUA, o que realmente conta é que o avanço da ICE saberá gerar mercados múltiplos, extra EUA, ao longo dos próximos 20 anos.
Não fazemos “ganha-ganha”
Não há ilusões no Zhongnanhai (3), assim como tampouco há ilusões em Teerã ou no Kremlin. Esses três atores top da integração da Eurásia estudaram exaustivamente o modo como Washington, nos anos 1990, devastou a economia da Rússia pós-URSS (até que Putin, afinal, arquitetou uma recuperação); e o modo como Washington só faz tentar destruir também completamente o Irã, já há 40 anos.
Pequim, como Moscou e Teerã, sabem tudo que há para saber sobre Guerra Híbrida, que é conceito criado pela inteligência dos EUA. Sabem que o alvo estratégico crucial da Guerra Híbrida, seja qual for a tática, é gerar caos social e mudança de regime.
O caso do Brasil – um dos BRICS, como China e Rússia – foi até mais sofisticado: uma guerra Híbrida inicialmente arquitetada por espionagem da Agência de Segurança Nacional dos EUA, envolveu para guerra dita ‘jurídica’ (em que o aparelho judiciário é usado como arma de guerra) e mudança de regime (golpe) pela via eleitoral. Mas concluiu-se com “missão cumprida” – o Brasil já foi reduzido ao status degradado de neo-colônia dos EUA.
Não esqueçamos um antigo marinheiro, o legendário Almirante Zheng He, chinês e muçulmano, que por 30 anos, de 1405 a 1433, comandou sete expedições pelos mares até a Arábia e a África Oriental, tendo chegado a Champa, Bornéu, Java, Malacca, Sumatra, Ceilão, Calicute, Ormuz, Áden, Jeddah, Mogadíscio, Mombasa, levando toneladas de itens para comerciar (seda, porcelana, prata, algodão, instrumentos de ferro, utensílios de couro).
Essa foi a Rota Marítima da Seda original, que progrediu em paralelo com o trabalho do Imperador Yong Le, que estabeleceu uma Pax Sinica (Paz Chinesa) na Ásia – sem precisar nem de colônias nem de proselitismo religioso. Mas a dinastia Ming retraiu-se – e a China voltou à vocação agrícola de cuidar de si mesma.
Não cometerão duas vezes o mesmo erro. Mesmo sabendo que o hegemon (4) de hoje não faz “ganha-ganha”. Preparem-se, porque o jogo realmente pesado ainda nem começou.
Notas
1 – Talassocracia é uma palavra de origem grega que significa domínio sobre os mares. Assim, o poder de um Estado talassocrático está associado ao domínio militar sobre os mares (Nota da Redação do i21).
2 – A “Inciativa Cinturão e Estrada” é mais comumente chamada em português de “Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota” (Nota da Redação do i21).
3 – Zhongnanhai é um complexo de edifícios de Pequim onde está localizado o escritório central do Partido Comunista da China (PCCh) e também a sede oficial do governo da República Popular da China (Nota da Redação do i21).
4 – Hegemon, na geopolítica, está relacionado a Estados que, em determinado período de tempo, exercem a supremacia de um povo sobre outros povos. O “hegemon de hoje”, citado pelo autor, é, obviamente, os Estados Unidos da América (Nota da Redação do i21).
* Pepe Escobar é jornalista independente, especialista em questões geopolíticas
Traduzido pelo Coletivo de tradutores Vila Mandinga