O que fazer se estamos presos num edifício em chamas, mas os bombeiros recusam-se a usar as mangueiras, negam a existência das labaredas e seu chefe usa os extintores para investir contra os que pedem ação? Este cenário de distopia parecia desenhar-se no Brasil até terça-feira (17/3) à noite, enquanto o espectro do coronavírus chega cada vez mais perto. Foi interrompido subitamente ao som de panelas e gritos de Fora Bolsonaro, ouvidos em, pelo menos, cinco capitais — e repetidos no dia seguinte com nitidez ainda maior.
Os protestos produziram os primeiros resultados, mas eles são insuficientes. A sabotagem de Jair Bolsonaro persiste, porém ficou clara e o tornou vulnerável. Os membros da Câmara, do Senado e do STF começaram a se mover, embora os gestos sejam ainda muito insuficientes. É na continuidade do grito destes dois dias que podem florescer as chances de evitar, ao longo dos próximos meses, uma tragédia social inédita.
O foco principal das atitudes que estão levando o país ao abismo está, é claro, no Palácio do Planalto. Dois meses depois de o governo chinês lançar o alerta sobre o potencial de destruição do coronavírus, e colocar sob quarentena inédita 58,5 milhões de habitantes da província de Hubei, o governo federal não tomou as medidas mais elementares – nem para proteger a população da ameaça sanitária, nem da imensa catástrofe econômica e social que galopa em paralelo, devido ao colapso dos cassinos financeiros.
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Panelaço contra o presidente Bolsonaro começou as 20:30
No aspecto sanitário, as duas linhas de defesa que poderiam resguardar a população foram negligenciadas. Ao contrário do que se cansa de recomendar a Organização Mundial de Saúde (OMS) – e funcionou de modo notável na China, Coreia do Sul e Singapura – não foram tomadas até agora medidas de distanciamento social, em nenhuma das modalidades adotadas nestes países. O grosso da população segue obrigado a permanecer nas ruas, expondo-se e espalhando o vírus, tanto por falta de orientação em contrário quanto pela ausência quase absoluta de medidas que garantam meios alternativos de subsistência. Agora, a curva de contágio já se assemelha à da Itália, onde começou há um mês uma crise hospitalar gravíssima, sem que o governo brasileiro tirasse, também neste caso, a menor lição.
Um número muito maior de pessoas adoecerá ao mesmo tempo – o que poderia facilmente ter sido evitado. E estes doentes, que necessitarão desesperadamente de UTIs, as encontrarão lotadas, porque a segunda linha de defesa, o reequipamento de emergência dos hospitais, também não foi cuidada. Ao contrário: o gasto social foi congelado por vinte anos. O número de leitos caiu desde 2007, enquanto a população continuou crescendo. Não foi adquirido um único respirador artificial – equipamento-chave para evitar mortes desnecessárias, embora sejam relativamente baratos (R$ 100 mil). A inépcia total do governo o torna incapaz até mesmo de assegurar providências mais comezinhas. Os passageiros que chegam aos aeroportos, vindos dos principais centros de propagação da pandemia, não são monitorados (enquanto países como a Argentina os colocam em quarentena). Sequer o preço do álcool gel é tabelado, ou se assegura o fornecimento de máscaras e luvas à população.
Dois bloqueios autoimpostos paralisaram o governo. O primeiro é a servidão aos mercados financeiros e à política de “ajuste fiscal” – mesmo quando esta já foi rompida nos próprios países que a conceberam. As medidas de “apoio” social que o ministro Paulo Guedes anunciou em entrevista coletiva hoje (18/3) assombram (e até insultam) pela pequenez. Os aposentados terão uma breve antecipação do dinheiro que já lhes pertence. A população, já insolvente junto aos bancos (que cobram juros imorais e incomparáveis aos do resto do mundo), será convidada a se enforcar ainda mais. Ao falar em medida “compensatória”, Guedes tratou os milhões de trabalhadores informais como esmoleus, anunciando que pensa em oferecer-lhes… R$ 200, durante três meses (o equivalente a três notas de R$ 2 ao dia…). Para efeito de comparação, os motoristas uberizados estão registrando, em São Paulo, perdas superiores a R$ 150 ao dia.
A segunda trava é ideológica. O presidente acreditou, pueril, nas fake news difundidas pelas redes sociais de ultradireitista, para entreter os militantes mais estultos. Segundo elas, o coronavírus é uma ameaça falsa, difundida para tumultuar governos como o de Donald Trump. Ainda no domingo, em entrevista à CNN, Bolsonaro repetiu a asneira. Foi certamente por isso que colocou em risco sua saúde e seu mandato, ao se abraçar com um punhado de manifestantes idosos e fanatizados, no domingo (15/3). Parece ter imaginado que, ao ficar clara a “fantasia” do coronavírus, poderia continuar ameaçando o Congresso e o STF, até o “ato final”, um protesto diante dos quartéis, em 31 de março. Foi quase constrangedor vê-lo, hoje, jurando colaboração com Rodrigo Maia e David Alcolumbre, os presidentes da Câmara e do Senado.
Em qualquer situação normal, um presidente que ameaçasse a este ponto a Saúde pública, a Segurança interna do país e a Constituição marcharia, destroçado, em direção à guilhotina do impeachment. Bolsonaro ainda sobrevive porque uma minoria ínfima e baldia, porém extremamente predatória e poderosa, pensa poder servir-se dele. Enxerga-o como o único homem capaz de recolocar as minorias em seu devido lugar, de reconstituir a relação Casa Grande X Senzala, de afastar as maiorias de uma vez por todas dos aeroportos. Quer reverter inclusive as pequenas concessões obtidas pelos governos petistas e sufocar, em especial, as ousadias intentadas por mulheres, pretos, pobres, periféricos, LGBTIs e todos os que desejaram desviar o país de sua condição colonizada.
É por isso que Rodrigo Maia, embora critique Bolsonaro, enche-se de dedos ao fazê-lo, deixa sempre aberta uma porteira para a recomposição e jamais ousa pronunciar as palavras que significariam uma ruptura. Revogar o congelamento do gasto social, imposto pela Emenda Constitucional 95, por exemplo. Esta providência simples, que seria essencial para um combate eficaz ao coronavírus, tornou-se um tabu – porque num Brasil periférico, a aristocracia financeira vê, no “ajuste fiscal” já condenado em outras latitudes, a chave para submeter e disciplinar as maiorias.
Também seja por isso que a mídia comercial, tão desafiada por Bolsonaro, tão ciente de que os últimos vestígios de “democracia” estão em jogo, hesitará sempre em dar o passo decisivo contra o capitão. Nos ambientes colonizados, os interesses dos grandes anunciantes sempre falarão mais alto que os princípios liberais. E o presidente, embora néscio, tem faro. Ele sabe que seus críticos endinheirados nunca terão a audácia de desafiá-lo. Seu cálculo político é claro. Ele aposta que, não sendo capaz de encontrar uma alternativa eleitoralmente mais viável até 2022, o poder econômico o apoiará. E deseja que a esquerda institucional continue a se comportar como um adversário previsível e frágil.
E esta esquerda teima em não contrariá-lo. Em meio à sombra da crise sanitária e social, que ações PT, PCdoB, PSOL, PSB ou PDT adotaram? Lula, ao regressar da Europa, adotou a atitude meritória de colocar-se em quarentena. E nesta condição ficou, sem se dirigir à sociedade ou ocupar o papel que lhe caberia. Guilherme Boulos e o PSOL parecem adotar a orientação (que não virá) de Lula. Ciro Gomes espera que o ex-presidente se manifeste – para ter algo a dizer… contra ele!
Em meio à louca comédia de erros, um haitiano desafiou, com sua voz e seu corpo, o capitão. Alguém lançou um chamado, pelo panelaço na quarta-feira (18/3). Viralizou. Por algum motivo, outros alguéns anteciparam-se e, um dia antes, começaram a povoar as janelas. Foi sucesso e repercutiu.
Entrevistado pelo Globo, Rodrigo Maia dignou-se a perceber que as vidas (desprezadas pelo presidente)… valem mais que a Economia! Os jornais comerciais animaram-se um tantinho (embora seja triste e lastimável a pobreza dos questionamentos que dirigiram Bolsonaro, em entrevista coletiva hoje). O Palácio do Planalto deixou de estimular (por enquanto), a marcha diante dos quartéis em 31 de Março. Notável contradição: o coronavírus e a sombra da morte estão em toda a parte – mas o ambiente político tornou-se muito mais respirável desde o panelaço.