Pesquisar
Pesquisar

José Dirceu: "Por que sou a favor da articulação e criação de uma Frente Democrática"

Não podemos confundir direitos civis e políticos com direitos sociais. Sem liberdade, não teremos como recuperar os direitos sociais e ampliá-los
José Dirceu
Nocaute
São Paulo

Tradução:

O voto é a arma do povo brasileiro, que não detém o poder econômico, militar, judicial ou de informação. Para fazer o impeachment de Bolsonaro, temos que construir uma ampla frente democrática e, dentro dela, criar uma saída à esquerda para a crise brasileira e para a reconstrução de nosso país.

Tenho passado por maus pedaços nas últimas semanas, na verdade meses. A cada dia, vejo amigos e amigas de décadas de luta – e mesmo o PT — se opondo a Frentes Democráticas.

Razões não faltam, levando-se em conta o golpe que derrubou Dilma precedido da recusa do PSDB em aceitar a derrota eleitoral de 2014. Tudo se complica quando incluímos nas razões o apoio de praticamente toda nossa direita à agenda ultra liberal de Bolsonaro-Guedes e a infâmia, e vergonhosa indignidade do impedimento de Lula. 

APOIE A DIÁLOGOS

Sem falar nas tentativas de prescrição do PT, um partido mais do que comprometido com a democracia — surgiu para lutar por ela e cresceu e se fortaleceu a defendendo e praticando mesmo quando não concordava com seu caráter elitista, excludente e eivado de heranças e entulhos da Ditadura como a tutela militar, filha da impunidade dos crimes praticados pelo Estado via Forças Armadas, o artigo 142 e outras pérolas como a desproporcionalidade na Câmara dos Deputados, a iníqua e injusta estrutura tributária e por aí vamos.

Fico remoendo o risco que corremos em confundir os direitos civis e políticos que conquistamos depois de 24 anos de ditadura na Constituição de 1988 com os direitos sociais que construímos na luta e escrevemos na Constituição Cidadã. Parece uma discussão inócua ou simplista, mas não o é pela simples razão de que, sem liberdade, teremos que lutar, como fizemos exclusivamente por ela, pelo direito de reunião, manifestação, organização, expressão.

Não podemos nos esquecer de que nos custava a vida ou anos de prisão — geralmente tortura, desemprego, clandestinidade e exílio – apenas lutar por salários, contra a censura, a tortura, contra a falta de liberdade, pelo direito de greve, contra o arrocho salarial ou a manipulação da inflação, e como nos custou longos e duros 21 anos até o colégio eleitoral e 25 anos até as eleições para presidente.

Não podemos confundir direitos civis e políticos com direitos sociais. Sem liberdade, não teremos como recuperar os direitos sociais e ampliá-los

José Dirceu. Arquivo pessoal
José Dirceu, ex-deputado federal pelo PT e ex-ministro da Casa Civil do governo Lula.

O voto é a arma do povo

Na democracia crescemos e chegamos ao governo do país. O voto é a arma do povo brasileiro, que não detém o poder econômico, militar, judicial ou de informação e formação da mídia monopolista. Pelo voto, o povo derrotou duas vezes as tentativas de impor o parlamentarismo e lutou bravamente pelo direito de eleger o presidente da República. 

RECEBA NOSSO BOLETIM

Foi o povo que derrotou a Arena e a ditadura nas urnas em 1974 e nunca mais deixou a ditadura vencer uma eleição. E só não elegeu o presidente no colégio eleitoral em 1978 porque os militares mudaram a composição do colégio eleitoral e inventaram a excrescência do senador biônico. 

Em 1986, deu maioria absoluta ao PMDB na Câmara e no Senado em 86 e elegeu o PT para governar o Brasil quatro vezes e o elegeria mais uma vez em 2018 fosse Lula o candidato ou as eleições limpas.

Meus argumentos são simples, quase simplórios, mas minha intuição e minha consciência me pedem que os apresente. Aprendi desde menino na luta contra a ditadura que os inimigos de meus inimigos são meus amigos, companheiros ou companheiras de viagem como se dizia, cada um com destino a uma estação, mas todos preservando o meio para o fim, a democracia.

Nosso povo e nosso Brasil já têm excesso de violência, pobreza, desigualdade e miséria, discriminação, preconceito, racismo, machismo e homofobia para que acrescentemos à violência Estatal uma ditadura de caráter neofascista e militar, um governo familiar de milicianos e defensores não apenas da tortura e assassinato político, mas do fundamentalismo religioso e do obscurantismo, de negação da ciência e da liberdade.

É verdade que nossa direita liberal e mesmo alguns na centro-direita sonham em conviver com um Bolsonaro domesticado e são seus aliados na manutenção dos interesses financeiros internacionais e dos rentistas internos, da mais iníqua e injusta concentração de propriedade, riqueza e renda do mundo.

Na prática, mesmo em plena pandemia e crise sanitária, que já matou quase 60 mil brasileiros, já reassumem a agenda ultraliberal haja visto a aprovação da privatização da água.

Apesar de toda campanha para dourar a pílula, o que o Senado aprovou foi a entrega de um bem natural à exploração privada que visa o lucro. Amanhã vão querer privatizar o ar, porque a terra já é bem privado neste país e as florestas, que são o nosso pulmão, caminham também para o mesmo iníquo destino. 

Nem falarei da vergonhosa política externa e submissão de nossa soberania à política externa e de defesa aos Estados Unidos, a renúncia a um projeto de desenvolvimento nacional e a entrega da nossa soberania financeira à fracassada globalização financeira, o fechar de olhos para a captura dos aparelhos do Estado e a lenta, segura e gradual instauração de um regime autoritário como foi o de 1964.

Para completar o pano de fundo Bolsonaro, além de militar — esta é sua formação ideológica e política –, se apoia nas palavras de ordem do nosso fascismo tupiniquim ou monismo político da família, Deus e Pátria, no fundamentalismo religioso. Tem, portanto, raízes e base popular que, somadas aos interesses capitalistas de nossa elite, lhe garante apoio para, suportado pelos militares e milícias, manter não só o governo, mas avançar para se impor como ditador mesmo que dentro de aparente legalidade.

Outro fato, pois procuro me ater aos fatos, é que até agora Bolsonaro não se tornou um ditador, na prática, pela atuação da oposição e pelo impedimento que a Suprema Corte ou o Congresso Nacional lhe têm imposto e pela ampla e radical oposição da mídia monopolista a seu crescente autoritarismo e obscurantismo. Estou dizendo uma inverdade?

Esquerdas são alternativa

Assim, as forças políticas e sociais de esquerda ou de centro-esquerda que são alternativas reais de governo — basta ver o resultado da eleição de 2018, onde os três candidatos à esquerda Haddad, Ciro e Marina, tiveram quase 43% — deveriam ser as maiores interessadas em uma Frente Democrática. E deveriam ser em qualquer ponto de vista, particularmente dos direitos sociais e da urgente necessidade de deter o desmonte do Estado Nacional e de Bem Estar Social e a marcha insensata das chamadas reformas de Guedes e o risco real que Bolsonaro representa. As derrotas de Macri e Macron deviam nos servir de lição.

Não se trata de se submeter ou se atrelar aos interesses e objetivo eleitorais deste o daquele partido ou setor social que se opõe a Bolsonaro. Mas, sim, de construir uma Frente Democrática pelo impeachment e na luta e na unidade avançar para um programa mínimo mais amplo como foi o das Diretas que desaguou na Constituinte de 1988. Conforme a radicalidade e amplitude da luta contra Bolsonaro, teremos um ou outro resultado. As ruas, as mobilizações e a entrada das classes trabalhadoras na luta – as classes médias só aguardam o fim da pandemia para sair às ruas — ditarão o rumo e o conteúdo das mudanças pós Bolsonaro. 

Nossa tarefa é mobilizar e organizar as classes trabalhadoras, até porque os mais pobres, explorados, discriminados já estão nas ruas. A greve geral dos trabalhadores de aplicativos marcada para 1o de julho é um exemplo. A experiência recente prova que as classes médias conservadoras ou progressistas têm grande poder de mobilização até porque recebem um tratamento especial dos meios de comunicação.

Se a direita liberal ou conservadora não quer fazer o impeachment de Bolsonaro, cabe a nós, das esquerdas, fazê-lo, disputando as classes trabalhadores e base social democrática dessas forças. Isso exige formar uma ampla frente democrática pelo impeachment e, dentro dela, construir uma saída à esquerda para a crise brasileira e para a reconstrução de nosso país.

José Dirceu é ex-deputado federal pelo PT e ex-ministro da Casa Civil.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

Veja também


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

José Dirceu

LEIA tAMBÉM

Boluarte abre Peru a soldados dos EUA para reprimir revolta popular
Boluarte abre Peru a soldados dos EUA para reprimir revolta popular
Com Trump, EUA vão retomar política de pressão máxima contra Cuba, diz analista político
Com Trump, EUA vão retomar política de "pressão máxima" contra Cuba, diz analista político
Visita de Macron à Argentina é marcada por protestos contra ataques de Milei aos direitos humanos
Visita de Macron à Argentina é marcada por protestos contra ataques de Milei aos direitos humanos
Apec Peru China protagoniza reunião e renova perspectivas para América Latina
Apec no Peru: China protagoniza reunião e renova perspectivas para América Latina