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Foto: Polícia Nacional da Angola

Angola: memórias da guerra conscientizam novas gerações sobre paz e reconciliação nacional

Se por um lado é difícil superar o passado, por outro, é possível aprender com a fase vivida pelo país para não cometer os mesmos erros
Karina Marrón González
Prensa Latina
Luanda

Tradução:

Carolina Ferreira
(Foto: Reprodução)

“Este homem me cercou aqui em Cuito Cuanavale (Angola), estávamos lutando em lados opostos”, disse à Prensa Latina o general reformado Eusébio de Brito Teixeira, sorrindo, enquanto gesticulava para o também general reformado João Batista Tchindandi.

Teixeira, que durante a guerra (1975-2002) aderiu às Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA), passando depois para as Forças Armadas Angolanas (FAA), apresentou com entusiasmo o seu antigo adversário das FALA, o braço armado da União Nacional pela Independência Total de Angola (UNITA).

“É certo. Nós, irmãos, estávamos de um lado e do outro, mas depois do Memorando de Entendimento de Luena, unimo-nos com um propósito: reavivar a pátria em termos de desenvolvimento”, afirmou Tchindandi, que é conhecido pela alcunha de “Poder Negro”.

A história destes homens é apenas um fragmento do que Angola viveu durante os 27 anos que decorreram desde o primeiro confronto até 4 de abril de 2002, quando as lideranças militares das FAA e FALA assinaram o Memorando de Entendimento de Luena, complementar aos Acordos de Lusaka, terminando a guerra.

As lutas pelo poder que floresceram ainda antes da declaração de independência (11 de novembro de 1975), as diferentes visões de como deveria ser a República, bem como os desejos estrangeiros pela riqueza e pelo território desta nação atiçaram as chamas de um conflito que custou numerosas vidas e atraso no desenvolvimento.

É um passado difícil de superar, mas para pessoas como Teixeira e Tchindandi a chave é aprender com essa fase para não cometer os mesmos erros.

“É necessário que a nova geração angolana estude generosamente esta história, porque estamos de partida; os homens vão embora, a história fica. Têm que estudar com rigor esta história para que não se perca”, afirmou Teixeira, que foi governador da província do Cuando Cubango (2008-2012).

Também concordou com os seus critérios o general reformado Francisco Lopes Gonçalves Afonso, “Hanga”, que em conversa com a Prensa Latina insistiu na necessidade de contar aos jovens o que foi vivido durante a guerra, às pessoas que perderam a vida, para que não se repita novamente: “não se pode morrer de prazer”, frisou.

Veterano de inúmeras batalhas, entre elas a do Cuito Cuanavale (15 de novembro de 1987 – 23 de março de 1988), que com a derrota das tropas sul-africanas mudou o rumo da história da África Austral, “Hanga” lembrou que atualmente não há necessidade de lutar.

“Há muito território livre. Tem que plantar, tem que trabalhar, tem muita água, tem muito verde, tem tudo para a gente viver feliz, não precisa brigar. Aqui há algo para todos, temos de baixar as nossas ambições e ser mais empáticos, compreender mais o sofrimento dos outros para que isso não volte a acontecer”, notou.

A luta que temos travado entre nós não precisa se repetir, enfatizou e referiu o quanto ainda falta fazer no país para garantir que Angola vá bem.

“Hoje a nossa luta é intelectual”, disse “Black Power”. “Devemos transmitir a história aos jovens, consolidar o patriotismo e fazer dos nossos filhos não herdeiros que recebem tudo, mas sucessores capazes de dar continuidade às nossas ideias de unidade nacional, de reconciliação total, de paz, sempre de paz e de trabalho”.

(Foto: Reprodução)

Abraçar e perdoar

No dia 4 de abril de 2002, o então chefe do Estado-Maior General das FAA, General Armando da Cruz Neto, em representação do Governo Angolano, e o chefe do alto comando das FALA, General Geraldo Abreu Muendo “Kamorteiro”, pela UNITA, assinaram o Acordo de Paz e Acordos de Reconciliação Nacional. A morte do líder da UNITA, Jonas Savimbi, a 22 de fevereiro desse ano, marcou um ponto definitivo, que facilitou o processo que levou à assinatura do documento e ao silenciamento definitivo das armas.

Os líderes de ambos os comandos, que se enfrentam desde 1975, não só avançaram na aplicação do cessar-fogo, como também deram mais um passo ao incorporar os militares nas forças armadas nacionais com o propósito comum de defender o povo angolano e o país.

Chamado de Dia da Paz e da Reconciliação Nacional, o dia 4 de abril tornou-se muito mais do que um dia festivo, pois surgiu como um símbolo das aspirações de unidade e de luta em busca de uma sociedade mais próspera para todos.

Não admira que em Angola seja considerada uma das maiores conquistas populares após a independência nacional, proclamada a 11 de novembro de 1975, pois permitiu também a reconstrução do país, o desenvolvimento de infraestruturas rodoviárias, a extensão dos serviços básicos e a construção de habitações, entre outras questões.

Monumento da Paz, em Luena, Angola (Foto: Polícia Nacional da Angola)

Porém, 27 anos de confrontos, conflitos e perdas de entes queridos não podem ser apagados com a assinatura de um documento, por isso ainda há muitas feridas para curar.

Em 2019, foi criada a Comissão para a Implementação do Plano de Reconciliação em Memória das Vítimas de Conflitos Políticos (Civicop), cujas finalidades incluem a emissão de certidões de óbito e a construção de um memorial único para todas as vítimas.

Coordenado pelo Ministério da Justiça e Direitos Humanos e composto por representantes de diversos partidos, igrejas e organizações socioprofissionais e da sociedade civil, bem como acadêmicos, o Plano de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos (Civicop) visa unir essencialmente os angolanos.

Para tanto, entre suas ações fundamentais estão a identificação de pessoas falecidas em conflitos políticos, sua caracterização histórica, a busca e identificação de restos mortais, sua entrega às famílias e homenagens.

De abril de 2021 a 13 de março de 2024, o Civicop registrou 3.589 nomes de vítimas de conflitos políticos no país e continua à procura de 821 pessoas, uma tarefa que não é isenta de contradições.

Relatos de irregularidades na busca e certificação dos restos mortais, questionamentos sobre a técnica laboratorial utilizada para essas funções e até o prestígio e conhecimento dos especialistas que participam do processo ensombram o trabalho da instituição.

As ameaças de abandono deste mecanismo, como o anúncio feito a 21 de dezembro pelo presidente da UNITA, Adalberto Costa Júnior, pesam também sobre uma das entidades que mais deveria contribuir para fechar as feridas do passado recente.

“Na guerra estivemos em lados diferentes, mas hoje devemos estar unidos pelo propósito de ver esta Angola melhorar”, lembra-nos o “Black Power”, que hoje conversa e brinca com quem antes só compartilhava o fogo das balas.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.
Karina Marrón González

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