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Anistia e Direitos Humanos

Paulo Cannabrava Filho

Tradução:

Paulo Cannabrava Filho*

Paulo Cannabrava Filho. Perfil DiálogosA expressão, latino-americano, na convocação deste seminário sobre Direitos Humanos é por si mesma um convite à reflexão. A presença de representantes do Paraguai, Bolívia e Venezuela nos evoca a lembrança de quanto sofreram os povos dos países desta Nossa América sob a férula do colonialismo, das oligarquias escravistas, das ditaduras civis e militares ou cívico-militares submissas a interesses estrangeiros.

La Patria GrandeParaguai está aqui para não nos deixar esquecer o que foi o terror de Stroessner; Bolívia para nos lembrar o quão nefasta foi a participação da ditadura brasileira para a ascensão e manutenção da ditadura de Banzer. Venezuela para testemunhar como um povo farto da opressão foi capaz de liquidar com a ditadura de Perez Jimenez. São países cujas histórias se assemelham a história de todos os demais países de Nossa América. Esta Nossa América que tem uma história comum e que haverá de construir um futuro comum. Melhor me expressando, essa Nossa América que só terá futuro unida na pátria grande sonhada por Bolívar.
Nossos povos entendem o significado desse destino comum. Quando em 1964 aqui se deu o golpe militar, nossa diáspora política se dirigiu para os países latino-americanos: notadamente para Bolívia, Uruguai, Chile, México, Panamá, Cuba. A solidariedade garantiu a sobrevivência dessa gente. Não só da gente brasileira. A essa diáspora se foram somando os uruguaios, os argentinos, os bolivianos, os chilenos, na medida que nossos  países, vivendo essa mesma e comum história, foram caindo sob as botas e casacas das ditaduras. Num encontro latino-americano sobre anistia e direitos humanos não podemos deixar de lembrar como um grito de alerta o que foi a Operação Condor. Recomendo a todos o livro da jornalista argentina Stella Calloni fartamente documentado sobre o que foi essa operação engendrada por Pinochet que envolver numa santa-aliança as máquinas repressivas de todos os nossos países.
patria grande (1)Durante décadas nossos povos amadureceram na vivencia o conceito e a compreensão da solidariedade como valor humano e fator de sobrevivência. Não podemos permitir nunca que esses valores se arrefeçam. Solidários na luta de libertação, solidários no confronto com a repressão, seguimos solidários na construção da democracia e na conquista e respeito aos direitos humanos.
Os filhos desta Nossa América foram recebidos solidariamente também na Europa, notadamente na França, Itália, Bélgica, Suécia, numa Europa que ainda não era submetida ao poder dos monopólios coo o é hoje. Tão grande foi a solidariedade do povo italiano aos brasileiros num momento e ao povo chileno noutro, que a ditadura brasileira chegou a ameaçar o Estado italiano com represálias aos italianos residentes no Brasil. O Tribunal Bertrand Russel, que havia julgado os crimes imperiais no Vietnam havia sido convocado pelo senador Lélio Basso para julgar os crimes da ditadura brasileira e teve que incorporar o Chile após o golpe de Pinochet. Como admitir que fosse deportado um cidadão italiano condenado por suas ideias, por suas denúncias? Que moral tem o senhor Berlusconi para pedir o repatriamento de Batisti? Menos por dívida moral para com o povo italiano do que por princípio moral de solidariedade temos o dever de ser solidários e proteger Cesare Battisti. E não bastasse isso, temos o dever de respeitar o artigo 5o, inciso 52 da Constituição que diz: “não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião”.
rompendo-o-silencio1Da mesma forma, também por uma questão moral e de respeito à história temos o dever de abrir os arquivos e revelar para a nação aqueles que cometeram crimes de lesa humanidade, o inafiançável e abominável crime de torturar um semelhante. E para pasmo de toda a nação, a tortura continua a ser praticada nos cárceres de muitos de nossos países, notadamente sobre pessoas dos setores marginalizados por uma sociedade que insiste em ser excludente.
Meus caros, olhar e apreender com o passado é necessário para compreender o presente e construir o futuro. Nesse mergulho sobre nossa história seria irresponsável ater-se unicamente a fatos. É preciso buscar, incansavelmente, as causas, os porquês, os verdadeiros responsáveis. Só assim se poderá evitar que nossas tragédias continuam a reproduzir-se.
Estamos aqui para refletir sobre Memória e Verdade. O que se pode constatar da história de cada um dos aqui presentes é que memória é verdade. Essas histórias reveladas é que tornarão evidentes os verdadeiros dramas dos perseguidos políticos.
Uma das constatações derivadas da análise dos fatos contra nosso povo nos anos de chumbo é a presença dos agentes do império. É a promiscuidade entre oficiais e agentes dos serviços de inteligência e de repressão de nossos países com oficiais e agentes dos serviços de inteligência das potencias, particularmente dos Estados Unidos. Oficiais latino-americanos que se submetem ao Estado Maior estadunidense. Oficiais de nossos países seduzidos durante cursos nos Estados Unidos. Agentes e funcionários seduzidos durante cursos em que são  submetidos a verdadeiras lavagens cerebrais. Aonde e de quem aprenderam as técnicas de tortura? Aonde aprenderam as técnicas de repressão aos movimentos sociais?
InimigoNuma reflexão sobre direitos humanos não se pode deixar de dar uma inda que rápida olhada no que é uma das principais características da conjuntura mundial. Em todo o mundo o poder se concentra a cada dia em um número menor de mãos. As mega-corporações  transnacionais abarcam hoje toda a gama de atividade humana, tanto na área de produção como de serviços. Como polvos gigantescos vão estendendo seus tentáculos, promovendo fusões, comprando tudo. Informação, assim como os produtos de entretenimento, foram transformados em commodities. Informação deixou de ser entendida como serviço para atender o direito humano de ser informado, virou produto para ser monopolizado e vendido para se obter lucro. Os meios de comunicação deixam de ser serviço público e se transformam em poderosas máquinas de manipulação psicossocial colocadas a serviço dos grandes conglomerados empresariais.
Todos os dias vemos notícias sobre novas fusões e aquisições por parte desses grandes conglomerados empresariais. E aqui cabe destacar que no afã de lucro essas empresas estão promovendo em nossos países uma ampla campanha pela desregulamentação total de nossos Estados. Nossas leis atrapalham suas estratégias de maior lucros. Nossa legislação trabalhista, que garante conquistas dos trabalhadores, como a de jornada de oito horas, férias, licença maternidade, décimo terceiro, tudo isso é fator que diminui o lucro e precisa ser abolido.
Aceitar as teses de que nossas leis e regulamentos impedem o desenvolvimento é, além de falaciosa, dobrar-se aos interesses das grandes corporações. Não nos esqueçamos que já tivemos taxas de desenvolvimento das mais altas do globo com todas essas garantias aos trabalhadores em vigência. Agora mesmo setores da indústria estão trabalhando a plena capacidade. Mas, elas querem mais lucros. Com ações espalhadas por todas as bolsas do mundo essas mega-empresas sem pátria têm como prioridade tão somente lucros, dividendos, royalties. Os direitos da cidadania constituem obstáculo à sanha predadora, ao afã de lucro, de multiplicação do capital para saciar a fome por novas aquisições e fusões..
Contra essa sanha desregulamentadora precisamos de um esforço de toda a nação pelo império da lei. Nossas leis são boas, a começar da Constituição Cidadã de 1988. Vale lembrar que cidadania se constrói  respeitando os direitos dos outros; que democracia se constrói através das regras de convivência, ou seja, democracia se constrói respeitando as leis. É preciso, portanto, que se conheçam as leis e que sejam respeitadas. Desrespeitar as leis é fazer o jogo da anti-pátria.
Com relação a nossa lei de anistia todos aqui somos testemunhas de que ela é fruto de árdua luta dos ex presos e perseguidos políticos e da solidariedade de nosso povo. Sem dúvida é uma lei boa, apesar das críticas. O que falta é unicamente seu estrito cumprimento. A busca de argumentos que tergiversem o espírito da lei é o mesmo que descumpri-la.  É preciso manter a mobilização para garantir o estrito cumprimento da lei. A anistia não estará completa enquanto não se fizer justiça a todos os injustiçado.
E para isso é preciso também punir os torturadores e para isso não é preciso modificar a lei. Basta respeitar a Constituição, as leis e tratados internacionais em vigência. O Brasil é signatário de tratados internacionais, com força de lei pois aprovados pelo Congresso. Basta com cumprir a lei para punir os algozes do povo.
Para finalizar, resumido ao extremo, os grandes obstáculos à plena vigência dos direitos humanos: temos de um lado a ação predadora das empresas  e das oligarquias; de outro lado, a promiscuidade entre nossas forças militares, de inteligência e civil com os agentes das potencias cujos governos estão submissos aos interesses das mega-corporações  e dos senhores de todas as guerras. Em muitos de nossos países avançamos no resgate das populações excluídas e na construção da democracia. E talvez por isso mesmo as ameaças ao estado de direito continuam. Não podemos baixar a guarda. A luta continua.
*Jornalista editor de Diálogos do Sul – Intervenção no III Seminário Latino-americano de Anistia e Direitos Humanos – Brasília, 23 de novembro de 2009.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1967. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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