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Antes do fechamento da Ford indústria já tinha perdido importância na economia do Brasil

Fim das operações de produção da Ford no país reabre discussões sobre a perda de espaço da indústria na economia brasileira
Renan Lúcio
Sputnik Brasil
São Paulo (SP)

Tradução:

No mês passado, pegou muita gente de surpresa o anúncio do encerramento, neste ano, da produção da Ford Motor Company no Brasil, nas plantas de Camaçari (BA), Taubaté (SP) e da Troller (Horizonte, CE). Em nota, a empresa, primeira fabricante de veículos a se instalar no país, há mais de 100 anos, anunciou, citando o ambiente econômico desfavorável, que pretende manter aqui apenas a sede administrativa da América do Sul, o campo de provas — ambos no estado de São Paulo — e seu centro de desenvolvimento de produto, na Bahia.

Segundo a Ford, a “pandemia da Covid-19 amplia a persistente capacidade ociosa da indústria e a redução das vendas, resultando em anos de perdas significativas”.

“A produção será encerrada imediatamente em Camaçari e Taubaté, mantendo-se apenas a fabricação de peças por alguns meses para garantir disponibilidade dos estoques de pós-venda. A fábrica da Troller em Horizonte continuará operando até o quarto trimestre de 2021. Como resultado, a Ford encerrará as vendas do EcoSport, Ka e T4 assim que terminarem os estoques. As operações de manufatura na Argentina e no Uruguai e as organizações de vendas em outros mercados da América do Sul não serão impactadas”, informou. 

A decisão, por motivos óbvios, gerou indignação entre os milhares de trabalhadores afetados pela manobra, que logo iniciaram protestos contra a companhia. 

Fim das operações de produção da Ford no país reabre discussões sobre a perda de espaço da indústria na economia brasileira

Twitter / Reprodução
Quais as origens desse processo, suas implicações e o que pode ser feito para revertê-lo?

País perdeu 17 fábricas por dia ao longo de 5 anos

A “saída” da Ford do Brasil segue uma preocupante tendência de fechamento de indústrias no país ao longo dos últimos anos. Só em 2020, 5,5 mil fábricas encerraram suas atividades por aqui. Entre 2015 e 2020, foram 36,6 mil, conforme mostra um levantamento feito pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) a pedido do Estadão.

Essa pesquisa indica que, nesses cinco anos, cerca de 17 fábricas fecharam as portas por dia no território nacional. O número de estabelecimentos industriais nesse período caiu de 384,7 mil para 348,1 mil. Até 2014 — ano em que teve início uma importante crise político-econômica no Brasil —, segundo a série histórica iniciada em 2002, o número de fábricas no Brasil crescia, mesmo com a indústria de transformação perdendo espaço na economia por conta do avanço dos outros setores, conforme destaca o portal.

Apesar dessa intensificação da desindustrialização nos últimos anos, a perda de importância da indústria na economia brasileira vem ocorrendo há muito mais tempo.

Depois de o Brasil conseguir atingir certo nível de industrialização, em décadas passadas, através, principalmente, da substituição de importações e políticas desenvolvimentistas, com forte participação do Estado, o país começou a enfrentar um processo de desindustrialização precoce, redução da participação da indústria no valor adicionado da economia antes que esta atinja o estágio de maturidade — por uma série de fatores. 

Isso vem ocorrendo no país desde 1985. Naquele ano, a indústria tinha 48% de participação no Produto Interno Bruto (PIB), e, de lá para cá, apesar de alguns momentos de oscilações positivas, esse percentual vem caindo. Essa participação ficou em 21,4% em 2019, último ano com dados disponibilizados pela Confederação Nacional da Indústria (CNI). Desses, apenas 11,8% dizem respeito à indústria de transformação, que é a que transforma a matéria-prima em um produto final ou um intermediário que servirá à produção de um item final. 

Atualmente, os serviços respondem pela maior parte do PIB brasileiro. Mas, ao contrário do que ocorre em economias mais desenvolvidas, esses serviços, em geral, são pouco sofisticados e, consequentemente, de menor valor, quando comparados aos de países mais ricos.

Na comparação entre os dois setores, a indústria é justamente o que tem maior capacidade de impactar, positivamente, a economia brasileira quando se tem um aumento da produção em cada uma dessas atividades.

Da porta da fábrica para dentro, da porta da fábrica para fora

Essa perda de espaço da indústria dentro do Brasil ocorre, paralelamente, à perda de participação brasileira na produção global do setor. Até 2014, o Brasil figurava entre os dez maiores produtores no ranking mundial. Entre 2015 e 2019, perdeu seis posições, sendo superado por México, Indonésia, Rússia, Taiwan, Turquia e Espanha. 

De acordo com o economista Marco Rocha, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a indústria brasileira vem perdendo competitividade de uma forma generalizada. E isso está relacionado, de um lado, a fatores que estão da porta da fábrica para fora, como, por exemplo, a falta de investimentos em infraestrutura, e também a fatores “que estão da porta da fábrica para dentro”, como o fato de a indústria brasileira ter feito “uma atualização muito marginal em relação às mudanças que ocorreram no sistema industrial mundial nas últimas décadas”. 

Na conjuntura atual, isso se somou, segundo ele, a uma aproximação de uma mudança para um novo paradigma tecnológico, representando pela indústria 4.0, que está levando à reorganização de uma série de multinacionais, que inclui “uma espécie de racionalização estratégica dessas operações internacionais”.

De outro lado, é preciso levar em consideração também, ainda na avaliação do professor, a forma como o comércio internacional reage às grandes crises, como a de 2008 e, agora, a da COVID-19. Nesses contextos, ocorrem uma retração do comércio internacional e, depois, um processo de recuperação no qual as empresas procuram reorganizar suas escalas de produção e suas operações globais. 

“Para além disso, existe uma perspectiva de muito pouco crescimento da economia brasileira nos próximos anos. E a América Latina, nesse contexto de reorganização do sistema industrial mundial também foi se tornando um mercado pouco atrativo. E aí o Brasil também tem um peso muito importante em tornar o mercado latino-americano pouco atrativo do ponto de vista industrial”, afirma o especialista em entrevista à Sputnik Brasil. 

Na opinião do gerente executivo de Economia da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Renato da Fonseca, se, no passado, o Brasil atraiu muitas empresas por conta do grande tamanho do seu mercado, hoje, “nenhuma empresa escolhe uma localização apenas por causa do mercado doméstico, ela tem que exportar”. E é aí que começa o problema. 

Em primeiro lugar, Fonseca destaca que, por ter uma educação de baixa qualidade, o Brasil não consegue formar uma mão de obra qualificada para trabalhar com as novas tecnologias que estão sendo implementadas por essas empresas. Em segundo lugar, o complexo sistema tributário nacional, no qual os tributos se acumulam ao longo da cadeia, dificulta a disponibilização de produtos mais competitivos. E o excesso de burocracias, seja para abertura de empresas, as relacionadas ao comércio exterior, ou outras, também são exemplos de fatores desestimulantes, junto com os altos valores pagos por energia, transportes e logística. 

“Então, no fundo, a gente tem um conjunto de entraves, que a gente chama de custo Brasil, que significa o quê? O que é mais caro para se fazer no Brasil quando se compara com o resto do mundo”, explica o representante da CNI, também ouvido pela Sputnik Brasil. “Isso faz com que as empresas brasileiras tenham dificuldades de competir no mercado internacional. E isso, praticamente, inviabiliza uma empresa multinacional vir para o Brasil e utilizar o Brasil como uma plataforma de exportação, seja de um produto final, seja de um insumo ou parte de um produto que vai se juntar, em outro país, para fazer um produto final.”

De acordo com Fonseca, há uma discussão problemática hoje, no Brasil, sobre “se tem que ter um subsídio para o setor A, um sistema tributário especial para o setor B”, o que, em sua opinião, não é o ideal para o país. Isso, ele acredita, só vai gerar mais complexidade, que é exatamente o que deve ser evitado. 

“Você tem um sistema hoje em que o setor que está mais longe da cadeia, que mais agrega valor, tem menos facilidade para competir, porque acaba tendo uma carga tributária maior. Você compara hoje: a indústria, como um todo, paga mais tributos do que os outros setores e, dentro da indústria, setores de cadeias mais longas acabam pagando mais tributos. E, aí, começa a surgir a demanda por esses casos especiais.”

O governo, para o gerente da Confederação Nacional da Indústria, precisa “prover esse ambiente de negócios” e, ao mesmo tempo, “direcionar algumas políticas”, como fazem os Estados Unidos e alguns países europeus, principalmente na questão da inovação. 

“A gente teve uma história de sucesso nisso na questão agricultura. Onde você colocou a Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária], você colocou recursos para inovação nessa área, e, aí, desenvolveu novas sementes, conseguiu expandir a fronteira agrícola brasileira, entrando pelo Centro-Oeste, e, hoje, a gente é a potência que é”, destaca. 

Outros obstáculos para as empresas do setor industrial apontados por especialistas e empreendedores brasileiros são os juros praticados na concessão de empréstimos e a “excessiva valorização cambial”. Enquanto nos EUA, na Europa, na China ou na Coreia do Sul é possível conseguir créditos com juros abaixo de 10% ao ano, no Brasil, segundo André Rebelo, diretor executivo de economia e estratégia da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), se o empresário conseguir empréstimos abaixo dos 25%, isso é considerado “barato”. 

“A gente soma isso a alguns longos períodos de excessiva valorização cambial, que a gente viveu, por exemplo, de 2005 até 2016, com o câmbio muito distorcido, favorecendo artificialmente as importações e tirando competitividade do produto nacional”, diz o economista à Sputnik Brasil, defendendo a agenda de reformas e o equilíbrio fiscal. 

“A agenda agora é a da competitividade”

“Não dá mais para fazer substituição de importação, como a gente fez nos anos 1950, 1960, 1970. A agenda agora é a da competitividade”, defende Rebelo. 

Para o diretor de economia da FIESP, a atual taxa de câmbio, bastante desvalorizada, não é um problema para o setor industrial. Ele acredita que ela deve se valorizar um pouco, mas não em excesso, de maneira a tornar o preço do produto importado barato “artificialmente”. 

Fora isso, o governo, segundo ele, precisa buscar o equilíbrio das contas públicas, para fazer o “Estado brasileiro caber dentro do PIB brasileiro”, consolidar taxas de juros mais baixas, controle da inflação e crédito mais barato para empreendedores e consumidores.

O caminho para a reindustrialização apontado por Renato da Fonseca é semelhante ao defendido pelo especialista da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo.

Também para ele, as reformas realizadas, nomeadamente, a trabalhista, a da previdência e a emenda do teto de gastos, devem ser vistas como avanços importantes. Mas, ao lado disso, é essencial que a União siga perseguindo o equilíbrio fiscal, que haja mais foco na educação e que vários dos projetos apresentados no Congresso Nacional visando a dar mais dinâmica ao ambiente de negócios sejam aprovados. 

“O Congresso vem mostrando, nesses últimos anos, essa vontade de melhorar o ambiente de negócios. E a gente acredita que isso pode ser feito neste primeiro semestre ou, pelo menos, neste ano que está se iniciando.”

Desburocratizar não é suficiente

Na história do capitalismo, nenhum país se desenvolveu, de acordo com o professor Marco Rocha, sem uma “complexificação tecnológica da sua estrutura produtiva” e sem contar com uma atuação ativa do Estado no sentido de induzir esse processo.

“Todos os países buscaram, os países que se desenvolveram, buscaram, através de políticas ativas do Estado, promover uma maior densidade tecnológica do seu parque industrial. Portanto, fizeram políticas ativas de fomento ao seu sistema produtivo, privado, fizeram políticas ativas de ciência, tecnologia e de inovação, promoveram, estruturaram o que a gente chama de sistema nacional de inovação. Quer dizer, criaram toda uma institucionalidade no entorno do seu parque industrial que fornecia a esse parque industrial justamente o suporte tecnológico e auxiliava na criação de inovações.”

Essas, Rocha explica, foram, historicamente, as condições fundamentais e necessárias para a promoção do desenvolvimento econômico. 

No momento atual, isso se torna cada vez mais difícil e requer, cada vez mais, uma institucionalidade, em termos de infraestrutura científica e tecnológica, mais ativa. E, hoje, isso não significa apostar apenas na indústria, mas, sim, “em toda uma gama de serviços tecnológicos acoplados à atividade industrial”, pontua o especialista, acrescentando que, no fundo, “é nisso que reside a competitividade”.

“É óbvio que facilitar todos os processos e desburocratizar — que é uma palavra muito usada atualmente — também é um passo importante, mas não é suficiente para deter um processo de porte muito maior.”

Em vez de se limitar a criar um bom ambiente de negócios, o economista da Unicamp acredita que o Estado, ainda hoje, deve ter uma participação ativa no fomento às atividades industriais, bem como na promoção da ciência, tecnologia e inovação e nos investimentos em infraestrutura. Sobretudo em um cenário de pós-pandemia, o qual, para ele, será marcado por políticas estatais de defesa das empresas e das indústrias nacionais. 

“Então, é importante o Brasil se posicionar para essa nova realidade internacional. E, nesse sentido, também habilitar práticas de políticas industriais, científicas e tecnológicas que são importantes e que são muito utilizadas lá fora. Como são os casos de compras governamentais, de encomendas tecnológicas e de outras formas de que o Estado possa exercer uma política de demanda tecnológica direta.” 

No período mais atual, casos como o da China e da Coreia do Sul, países que tiveram experiências bem sucedidas, costumam ser apontados como bons exemplos de industrialização mais recente. Mas também são “experiências históricas bem específicas”. Para o Brasil, segundo o professor, seria importante pensar uma experiência própria, tendo em mente “os instrumentos que a gente ainda possui para fazer esse tipo de política”. 

“A gente tem alguns complexos produtivos importantes na economia brasileira. A gente tem uma possibilidade de o Estado exercer demanda em alguns setores muito importantes, industriais, setores que têm uma densidade tecnológica alta também. A gente tem algumas empresas brasileiras que ainda participam de setores de alta tecnologia”, afirma Rocha, citando o complexo industrial da saúde e a infraestrutura urbana e logística como exemplos de segmentos de grande potencial no Brasil.

Isso, argumenta o especialista, deveria ser transformado em “eixo estruturante da política econômica nacional”, que é, justamente, o contrário do que o país está fazendo atualmente, mirando no princípio de austeridade como o grande norte da política econômica brasileira. 

Em vez da austeridade, o Brasil, ele sublinha, deve voltar a olhar para o desenvolvimento econômico como “princípio norteador da política econômica”. E se organizar em relação à mudança de conjuntura do pós-pandemia. 

“Existe uma capacidade de encadear, de juntar política pública, política de fornecimento de infraestrutura para o país, com política científica e tecnológica, com política de fomento à base produtiva nacional, que pode ser muito utilizada nesse momento como uma forma de reverter esse quadro de desindustrialização e de promover alguns nichos de competitividade da indústria nacional.” 

Renan Lucio, Sputnik Brasil


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

   

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Renan Lúcio

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