A naturalização da violência é uma das formas mais potentes de solidificação de uma lógica perversa que nos torna coniventes com as mais diversas atrocidades. Estando atentas a isso, tendemos a fixar limites, marcos éticos e legais que limitam a fronteira entre o que nos permitimos e permitimos aos outros enquanto seres que compartilham o mesmo mundo (a partir de parâmetros de convivência, sociabilidade e respeito) e a barbárie, o desrespeito e a brutalidade. Passar essa linha imaginária, também temos noção disso, impossibilita qualquer projeto de futuro fora dos seus marcos de violência e ódio.
Desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República passamos a viver e a conviver com a materialidade dos nossos piores sonhos. A cada fala proferida em tom de deboche — e elas são tão frequentes que não conseguimos sequer uma trégua para acordar do pesadelo que nos foi imposto — exclamamos: “Agora ele passou dos limites”.
O que não nos damos conta, talvez, é que quanto mais afirmamos que agora é o limite, mais flexível tornamos a fronteira da violência. E aqui é preciso ressaltar que as frases em sua violência simbólica e subjetiva se revertem em violências físicas ao permear uma cultura e um imaginário social já impregnado pelo machismo, racismo e pela LGBTfobia. A violência simbólica é a violência que autoriza que certos corpos sejam considerados indignos de respeito, dignidade e validade, tornando-os sujeitos aos piores tipos de atrocidade.
Foto: Reprodução / Instagram
Rosto de Bolsonaro ilustrou cartaz de show do Pussy Riot, no Festival Sem Censura, que ocorreu em janeiro, em SP
O que não podemos esquecer é que o limite já tinha sido ultrapassado antes mesmo de Bolsonaro vencer as eleições. Não foram poucas as vezes em que o militar demonstrou estar situado do outro lado da fronteira, destilando seu ódio contra a comunidade LGBT, mulheres, indígenas, quilombolas e a população negra.
Suas ações recentes contra a Amazônia também demonstram que a violência não tem como foco somente os humanos, mas a própria floresta, a natureza, o meio ambiente. Vale lembrar ainda que muitos de seus ministros e membros da sua família também destilam cotidianamente seu ódio contra a maioria da população brasileira, sustentados pelo mesmo ideário perverso.
Essa reflexão inicial foi pensada para tratar da nova frase da semana do presidente contra a repórter Patrícia Campos Mello, do jornal Folha de São Paulo. A violência de cunho sexual e grosseiramente misógina, que não será reproduzida aqui, mostra todo o desrespeito e ódio do presidente contra as mulheres e também contra jornalistas. E isso é bastante sintomático da lógica em que se situa a sua mentalidade, utilizar da difamação como arma para causar sofrimento a um suposto inimigo. Sim, nós mulheres jornalistas, críticas ao seu projeto de violência, estamos no rol de seus inimigos. Vamos ter que aprender a lidar com isso juntas. Mesmo assim, não vamos afirmar que Bolsonaro passou dos limites, pois eles foram ultrapassados há muito tempo.
O que podemos sim enfatizar é que a sua fala não se dirigiu apenas à Patrícia, mas a todas as mulheres jornalistas e isso avilta toda a sociedade brasileira. Mulheres jornalistas que têm sido nos últimos tempos a principal resistência dentro do campo jornalístico, recuperando um dos principais e também antigos sentidos da profissão que é a capacidade crítica de enfrentar os poderosos tiranos e a defesa intransigente dos direitos humanos, perfurando uma bolha apática de conivências que muito reflete na crise que o jornalismo vem enfrentando.
Mas esse ataque não vem acontecendo somente no Brasil. A América Latina enfrenta, nos últimos anos, uma ofensiva violenta contra jornalistas e, em especial, contra mulheres jornalistas, feministas, ativistas e defensoras dos direitos humanos. Em maio do ano passado, um encontro promovido pelo grupo Cotidiano Mujer[1], grupo ligado à Articulación Feminista Marcosur, e a GAMAG América Latina, núcleo regional da Global Alliance on Media and Gender (GAMAG)[2], integrado pelo Portal Catarinas, discutiu as perseguições. As ameaças constantes, que resultam até mesmo no assassinato de jornalistas, têm sido uma prática recorrente de grupos anti-direitos em diversos países latino-americanos. Aqui um dos tantos exemplos de que violência simbólica caminha lado a lado com a violência física.
Como afirmaram no evento representantes da Articulação Feminista do Mercosul, os setores anti-direitos e reacionários têm avançado na região questionando o marco dos direitos humanos. As estratégias de disputa de sentido incluem a propagação de mensagens de ódio sexistas, racistas, assim como a circulação de notícias falsas e difamação. Para enfrentar esse contexto, profissionais organizadas em redes autônomas têm construído estratégias que possam frear os ataques, que tanto limitam a nossa liberdade e o exercício da profissão.
Como jornalistas feministas e defensoras dos Direitos Humanos nos solidarizamos com a repórter Patrícia Campos Mello e com todas e todos os jornalistas que têm sido vítimas do ódio e se empenhado em não naturalizar a violência contida nos discursos de Bolsonaro e seus apoiadores, refletida também em seus atos, em seu projeto de destruição do País e do povo.
[1] https://cotidianomujer.org.uy/sitio/ [2] https://gamag.net/Veja também