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Kamala Harris (Foto: Gage Skidmore / Flickr)

Apoio ao genocídio em Gaza vai custar votos cruciais a Kamala Harris

Mesmo após Departamento de Estado dos EUA reconhecer que Israel viola direito internacional em Gaza, Kamala Harris não condena as ações publicamente
David Brooks, Jim Cason
La Jornada
Nova York

Tradução:

Ana Corbisier

Cedendo a pressões internas e vazamentos, o Departamento de Estado dos EUA reconheceu publicamente que é “razoável” concluir que Israel está utilizando armas estadunidenses em violação do direito internacional em Gaza. Mesmo com esta confissão, a candidata presidencial democrata Kamala Harris se recusa a condenar qualquer ação bélica de Israel, o que pode lhe custar a eleição.

Em quase todos os eventos de campanha nos estados-chave de Pensilvânia, Michigan, Wisconsin e, na última quinta-feira (31), novamente no Arizona, Harris foi interrompida por manifestantes exigindo que se comprometa a acabar com o genocídio em Gaza e a suspender o envio de armas estadunidenses a Israel. Em seus discursos preparados, Harris não menciona essa guerra nem as mortes civis, mas, na quinta-feira, assim como na quarta, foi forçada a responder aos manifestantes, afirmando: “todos queremos que a guerra em Gaza acabe e que os reféns sejam libertados o mais rápido possível, e farei tudo ao meu alcance para deixar isso claro. Todos têm o direito de ser ouvidos, mas agora quem está falando sou eu”.

O argumento básico daqueles que defendem o voto para Harris em relação a este tema é que o ex-presidente Donald Trump seria pior, já que é mais próximo do governo de Israel e, portanto, mais perigoso para os palestinos — ou seja, seria escolher o menor de dois males. Mas esse argumento está se tornando cada vez mais difícil de sustentar para alguns em Michigan, estado com cerca de 250 mil eleitores árabe-americanos. Na semana passada, o prefeito democrata da cidade de Dearborn, com a maior concentração de árabe-americanos do país, recusou-se a endossar Harris e informou a seus seguidores que devem “votar de acordo com suas consciências”.

As notícias da semana passada de que o governo de Joe Biden e sua vice, Harris, haviam recebido quase 500 informes oficiais indicando que Israel usou armas estadunidenses causando danos “desnecessários” a civis em Gaza, podem complicar ainda mais o apoio à democrata. Que Israel está matando milhares de civis, sobretudo menores e mulheres, não é novidade, e o porta-voz do Departamento de Estado, Matthew Miller, reconheceu isso ao comentar na quarta-feira: “Acreditamos que é razoável avaliar que há incidentes em que Israel não cumpriu todas as suas obrigações relativas à lei internacional humanitária”.

Casa Branca fecha os olhos para evidências do genocídio em Gaza

Continua crescendo a ira contra o reconhecimento dos EUA de crimes de guerra por parte de Israel, mas o país ainda se recusa a tomar medidas contra Tel Aviv. O Washington Post cita vários funcionários do governo afirmando que o processo de avaliação “tornou-se funcionalmente irrelevante, com mais líderes de alto escalão no Departamento de Estado descartando fontes não israelenses” dessa informação. No início deste ano, o Departamento de Estado reconheceu que o secretário de Estado, Antony Blinken, havia rejeitado avaliações de sua própria equipe e de outras agências, que concluíam que Israel estava violando a lei internacional e leis estadunidenses que exigem a suspensão do envio de armas a quem comete violações, neste caso, unidades militares de Israel.

Esses reconhecimentos oficiais e outras evidências da cumplicidade estadunidense em possíveis violações do direito internacional por Israel continuam a complicar o apoio à candidata democrata entre bases antes consideradas fiéis. Para líderes do chamado “movimento não comprometido”, que pressionam Harris há meses para denunciar os crimes de Israel, a posição da candidata cria um enorme dilema. Nas primárias, esse movimento convenceu 110 mil eleitores democratas em Michigan a escrever “não comprometido” nas cédulas para expressar sua ira pelo apoio do governo ao genocídio israelense. Abbas Alaweih, principal porta-voz desse movimento, declarou há um mês que não apoiaria Harris, mas reconheceu o grande dilema que isso deixa. “Trump não só é um promotor da supremacia branca, como também ameaça criminalizar a defesa pró-palestina” neste país, disse em entrevista à CNN esta semana. Disse que o movimento agora recomenda que seus seguidores votem em Harris se residirem em estados considerados chave, como Michigan, para evitar uma vitória de Trump.

Confira nossa seção especial: Eleições nos EUA

Na semana passada, o senador federal socialista democrático Bernie Sanders divulgou um vídeo indicando que está em desacordo com a posição de Harris sobre Gaza, mas argumenta que votar nela é a única forma de evitar o pior, que seria um triunfo de Trump, não apenas nesse tema, mas também nos direitos das mulheres e outros. O vídeo tem mais de 3,5 milhões de visualizações, mas ainda não se sabe se será suficiente para evitar o que afirma ser o pior.

Trump venceu em Michigan em 2016 por apenas 10 mil votos; Biden o venceu por 150 mil votos em 2020. Uma pesquisa da CNN divulgada na semana passada registra um empate entre Trump e Harris, indicando que mesmo um número muito reduzido de deserções nas bases democratas poderia ter enormes consequências.

Alguns moradores de Michigan já decidiram. “Eu não voto em ninguém que apoia o genocídio”, declarou Mike Fleshman, eleitor em Michigan, ao La Jornada. Em outra entrevista, dois estudantes árabe-americanos da Universidade Wayne State, em Detroit, disseram que esperam que Harris perca em Michigan. “Ela está apoiando o genocídio”, acusaram.

O ativista e intelectual judeu-americano Peter Beinart, firme crítico da política bélica de Israel, argumenta contra essa lógica. “Se eu morasse em Michigan, votaria em Kamala Harris”, escreveu em seu popular boletim no Substack. “E digo isso como alguém que acredita que Joe Biden e alguns de seus assessores deveriam ser levados a tribunais internacionais como criminosos de guerra por seu papel na destruição total de Gaza”. Mas Beinart argumenta que, sobretudo em estados-chave como Michigan, que definirão o resultado final desta eleição tão acirrada, é, de fato, um voto a favor de Trump, e isso é inaceitável para qualquer progressista.

Voto latino: foco de Kamala Harris e Donald Trump na reta final

Todos os políticos estão fantasiados neste Halloween, com um condenado e múltiplo acusado de abuso sexual e estupro se apresentando como um “protetor” das mulheres, e com uma vice-presidenta que continua se apresentando como promotora da paz, enquanto seu governo é acusado de ser cúmplice de um genocídio. Mas, o “show tem que continuar”.

Enquanto se preparavam desfiles e festas com pessoas fantasiadas de fantasmas, múmias, bruxas (politicamente correto), caveiras e loucos ensanguentados (antes era um dia para crianças, mas os adultos roubaram esse dia) para o Halloween, o que mais assusta para muitos é a eleição, sobretudo para os opositores da campanha de medo da direita, que ainda se assombram com o empate persistente entre os dois candidatos principais.

Ambas campanhas mantêm um ritmo incessante de eventos e viagens pelos sete estados-chave que determinarão o resultado nacional desta eleição, com as votações terminando nesta terça-feira (5) – ainda que ninguém saiba quando haverá um resultado final e se será aceito (sobretudo se for contra o candidato republicano). E nesses dias finais, o voto latino está no centro das atenções.

Isso se vê e se ouve nos comícios da campanha da democrata Kamala Harris na última quinta-feira (31) nos estados-chave do sudoeste: Los Tigres del Norte ofereceram sua música em um evento de campanha em Phoenix, Arizona, e mais tarde a candidata protagonizou outro evento com Maná e a atriz e cantora Jennifer Lopez em Las Vegas, Nevada.

Os democratas têm usado vários comentários racistas de seus oponentes e, mais recentemente, a frase de um comediante em um comício do candidato republicano Donald Trump no Madison Square Garden, que disse no palco que Porto Rico é “uma ilha flutuante de lixo”, como uma arma eficaz para promover o voto latino em seus discursos, em sua nova propaganda oficial [https://www.youtube.com/watch?v=5t1u4oi84FA] e com manifestações de artistas.

Trump arrasaria EUA com deportações em massa; indocumentados geram US$ 1,3 tri ao PIB

Um artigo de opinião assinado por Ricky Martin, Lin-Manuel Miranda e Rita Moreno – três dos artistas mais premiados em música, cinema e teatro – foi publicado na última quinta-feira no New York Times, onde elogiam a imensa contribuição cultural de massa de sua ilha para os Estados Unidos e repudiam as expressões racistas que sofreram. “Os Estados Unidos estão mudando, como sempre: mudando se vê, se ouve, se come”, afirmam, argumentando que essas mudanças são preocupantes para alguns, o que explica os comentários racistas, mas que essa mudança ninguém pode impedir e convidam: “esqueçam o barulho. Ouçam a harmonia”.

Os porto-riquenhos, diferentemente de outros imigrantes latinos e suas famílias, nascem com o direito de votar nos Estados Unidos, e poderiam ser significativos em alguns dos estados-chave, incluindo a Pensilvânia.

O republicano vinha ampliando o surpreendente apoio de setores do eleitorado latino, mas esse tropeço em um de seus eventos pode ter sido um presente especial para os democratas.

Trump, sem saber, deu outro presente a seus adversários. Em um de seus discursos cada vez mais incoerentes em um comício eleitoral em Wisconsin, o candidato acusado de abusos sexuais por mais de 20 mulheres e declarado culpado em um caso civil por violação sexual, que disse no passado que, por ser famoso, as mulheres o permitem tocar até suas vaginas quando quiser, se declarou “um protetor das mulheres” e disse que as protegerá “gostem elas ou não”. Imediatamente, Harris destacou o comentário em seus discursos e entrevistas, ressaltando que, além de anular o direito das mulheres de optar pelo aborto, o comentário permite ver “quem ele realmente é”, um homem que acha que as mulheres não devem decidir por si mesmas.

Em todos os seus eventos, Harris insistiu que “estamos aqui porque estamos lutando por uma democracia”. E com isso, repetiu que “é tempo de uma nova geração de liderança nos Estados Unidos”, ou seja, ela (que tem 60 anos), em contraste com quem agora é o candidato presidencial mais velho após a saída de Joe Biden, Trump, com 78 anos.

Eleições nos EUA: os preocupantes indicadores para Kamala Harris

Ainda na quinta-feira, em um comício no Novo México, Trump decidiu retomar seu ataque contra os veículos elétricos, acusando os democratas de empregarem “táticas de Gestapo” para obrigar as pessoas a comprarem carros elétricos. Tudo isso é ainda mais estranho dado que seu grande amigo, que contribuiu com quase 150 milhões de dólares de sua própria fortuna para sua campanha, é Elon Musk, o homem mais rico do planeta e dono da montadora de veículos elétricos Tesla.

Ele acrescentou, em seu discurso em Albuquerque: “gosto de vocês, é bom para minhas credenciais com a comunidade hispânica ou latina… Amo os hispânicos… são bons trabalhadores, bons empreendedores, e são gente fina, são calorosos”. O ex-presidente também realizou eventos em Nevada e Arizona, dois estados considerados chave no mapa eleitoral, onde continua surpreendendo o apoio relativamente expressivo de alguns latinos. E em todas as suas escalas, voltou ao ponto de que as eleições “estão fraudadas” – se ele não ganhar.

Trump continua nutrindo um ambiente volátil com ameaças de violência em seus atos e declarações, acusando seus oponentes de serem “o inimigo interno” dos Estados Unidos, incluindo os jornalistas. Com isso, desencadeia uma contenda aberrante que continua rompendo as supostas normas de uma eleição, e segue presente o antecedente de uma tentativa de golpe de Estado e a recusa do republicano em se comprometer com a regra mais básica de uma eleição: reconhecer e respeitar o resultado.

Enquanto isso, o Comitê para a Proteção dos Jornalistas informou que sua equipe de emergência treinou mais de 700 jornalistas este ano em questão de segurança para cobrir as eleições presidenciais no país, ante preocupações com a violência política e também por parte das autoridades. A organização também oferece vídeos e outras informações sobre proteção. Desde o início de 2020 até o momento, o US Press Freedom Tracker documentou mais de 800 ataques contra jornalistas cobrindo eventos políticos e manifestações.

Bezos quebra 50 anos de tradição do Washington Post

Os estadunidenses estão descobrindo, mais uma vez, que os proprietários multimilionários de grandes meios de comunicação nem sempre são guardiões da independência editorial quando seus interesses empresariais estão em jogo em uma eleição, como foi o caso do Washington Post, que anunciou na semana passada que não endossará nenhum dos dois candidatos presidenciais nesta disputa.

Jeff Bezos, classificado pela Forbes como o segundo homem mais rico do mundo e proprietário da Amazon, ordenou que seu jornal rompesse com uma tradição de quase cinco décadas de endossar candidatos presidenciais. Como resultado dessa decisão, alguns membros do conselho editorial e escritores de opinião renunciaram, e mais de 250 mil leitores, segundo a NPR, cancelaram suas assinaturas (cerca de 10% do total).

Eleições nos EUA: comícios, ameaças, violência política e as últimas promessas de Harris e Trump

Bezos, pressionado a responder a essas reações, defendeu a decisão em uma declaração publicada na primeira página do Post, insistindo que nada tinha a ver com seus interesses empresariais. Mas, como seu primeiro editor-chefe, Marty Baron, observou em seu livro, Bezos enfrentou intensa pressão do então presidente Donald Trump, incluindo tentativas de negar contratos governamentais à Amazon devido à cobertura crítica do Post sobre sua presidência.

“Isso é covardia, com a democracia como vítima. Donald Trump verá isso como um convite para continuar intimidando o dono Bezos (e outros)”, comentou Baron na plataforma X ao criticar a decisão. “É uma preocupante falta de coluna vertebral em uma instituição famosa por sua coragem”, concluiu. Dois dos jornalistas mais famosos da história do Post, Bob Woodward e Carl Bernstein (que revelaram o escândalo de Watergate, entre outras conquistas), comentaram que esta decisão, a poucos dias da eleição, ignora “a evidência esmagadora reportada pelo Washington Post sobre a ameaça que Trump representa para a democracia”.

No mesmo dia em que o Post anunciou sua decisão de não endossar nenhum candidato, executivos de outra empresa de Bezos, a Blue Origin, realizaram uma reunião com Trump na Flórida. “Não há nenhuma conexão entre isso e nossa decisão sobre endossos presidenciais”, insistiu Bezos, ainda que poucos em seu próprio jornal acreditem nessa afirmação.

Mas o Post não está sozinho. Neste mês, o multimilionário proprietário do Los Angeles Times também anunciou que seu jornal não apoiaria nenhum candidato presidencial este ano. O apoio à democrata e californiana Kamala Harris, que já estava preparado pela equipe de opinião, foi descartado. Pouco depois, o editor de opinião do jornal renunciou.

Na campanha de Donald Trump, essas decisões foram festejadas, já que se supunha que o Post, jornal da capital, e o Los Angeles Times, o maior jornal do estado da Califórnia, onde nasceu e iniciou sua carreira política a candidata democrata, apoiariam Harris.

Na semana passada, o jornal nacional USA Today também anunciou que não endossará ninguém, ainda que não esteja claro se a firma de capital de investimento que é dona indireta do jornal teve algum papel nessa decisão.

Ao longo desses últimos dias de eleição, três dos cinco principais jornais do país decidiram não endossar nenhum candidato presidencial.

“A liberdade de imprensa é garantida apenas para aqueles que são donos de uma”, concluiu o jornalista A. J. Liebling no The New Yorker há mais de 60 anos.

La Jornada, especial para Diálogos do Sul – Direitos reservados.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

David Brooks Correspondente do La Jornada nos EUA desde 1992, é autor de vários trabalhos acadêmicos e em 1988 fundou o Programa Diálogos México-EUA, que promoveu um intercâmbio bilateral entre setores sociais nacionais desses países sobre integração econômica. Foi também pesquisador sênior e membro fundador do Centro Latino-americano de Estudos Estratégicos (CLEE), na Cidade do México.
Jim Cason Correspondente do La Jornada e membro do Friends Committee On National Legislation nos EUA, trabalhou por mais de 30 anos pela mudança social como ativista e jornalista. Foi ainda editor sênior da AllAfrica.com, o maior distribuidor de notícias e informações sobre a África no mundo.

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