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Aposta da classe baixa, Pedro Castillo venceu em 50 dos 46 distritos mais pobres do Peru

Se Castillo ganhar – como é previsível, seu governo leve o país ao descalabro – essa direita que hoje se entrega a Keiko não se responsabilizará pelo desenlace
Luís Pássara
Diálogos do Sul Global
Lima

Tradução:

Ai, Peru, pátria tristíssima. De onde tiraram os poetas seus pássaros transparentes? Só vejo dor, só amargas cozinhas, eu puramente pratos vazios. Só vi povoados tristes, sementeiras de gritos, gemidos tão grandes que nem pelas ruas mais largas podiam passar. Eu cantava, agora estou triste e é por ti terra pobre, é por esses povoados de uma única rua por onde nunca passou a felicidade.

Manuel Scorza, As imprecações, 1955. 

Os “memes” e “fakes” povoam as redes advertindo quanto ao “perigo comunista” que espera o país depois de um possível triunfo de Pedro Castillo, sem perceber que tais mensagens não vão além do círculo dos já convencidos de que só Keiko salvará o Peru. As “madames”, angustiadas, trocam conselhos para ensinar seus servidores domésticos – cozinheiras, babás, diaristas, choferes e jardineiros– quanto à imprescindível necessidade de que os Fujimori voltem ao governo. Os cavalheiros de certa idade –e de uma já perdida fina estampa– tomam uísque perguntando-se, inquietos, se os militares aposentados em quem confiam –e cujas associações multiplicam comunicados– terão ou não ascendente sobre os oficiais que exibem agora  galões e estrelas.

O panorama me leva a uma história ocorrida em Lima nos anos noventa. Minha mulher e eu –que vivíamos então  em Buenos Aires– fomos a Lima para uma curta estadia. Um amigo próximo nos convidou, com outro casal, para jantar em sua casa. No decorrer da conversa ocorreu-me compartilhar nossa surpresa ao ver, na saída de Lima para o norte, que as favelas tinham se multiplicado notavelmente desde nossa visita anterior. A dona da casa, jovem psicóloga, que pouco interviera na conversa até então, soltou um expressivo “Este não é o meu país”, que nos deixou a todos em silêncio por um momento. 

Guzmán e Polay já haviam sido capturados, e a subversão agonizava. Aprendi então que na classe alta de Lima não se aprendera nada a partir das intentonas armadas que obtiveram certo apoio dos setores mais pobres. Preferiram considerar seus líderes como agentes de alguma potência estrangeira e seus seguidores como ignorantes ou dementes. Sessenta mil mortos depois, pensaram que o país voltaria a ser como sempre. Daí que, sem ler o relatório da Comissão da Verdade e da Reconciliação, apressaram-se em rejeitar a análise nele contida sobre as causas do conflito armado interno. 

Os carros bomba e os sequestros passaram a ser uma lembrança ingrata e a festa continuou, como sempre fora. Os velhos que hoje temem que um triunfo de Castillo os desabasteça de uísque talvez ainda lembrem que, nos mesmos anos em que Scorza escreveu o poema que encabeça esta nota, um parlamentar atreveu-se a propor o estabelecimento de um passaporte interno, de modo a frear a “invasão” migratória da cidade capital. Em seu delírio, “Lima, minha velha Lima” ficaria assim protegida. Dada a ignorância que caracterizou boa parte da direção do país, o autor do projeto seguramente desconhecia que esse mesmo instrumento de controle de população fora implantado por Stálin na União Soviética. 

Desperdiçada a ocasião que a subversão deu aos “de cima” de entender seu país, a esquerda educada – mas permanentemente dividida por disputas de poder disfarçadas de diferenças de “linha” – fracassou em sua tentativa de substituir a direita estrangeirizante. A partir de 1985 o povo percebeu que os peruanos só somos iguais a cada cinco anos e em cada oportunidade apostou na mudança… e perdeu. Em 1985 foi por García, que levou o país para um “futuro diferente”… que veio a ser muito pior. Em 1990 foi por Fujimori, para evitar Vargas Llosa que, apesar de suas qualidades, representava objetivamente os de sempre. E assim sucessivamente. Caímos de mal a pior até chegar ao de agora, que supõe escolher entre dois males. Quem poderia dizer-nos convincentemente – isto é, além de seus desejos ou de seus medos – qual é o mal menor? 

Se Castillo ganhar – como é previsível, seu governo leve o país ao descalabro – essa direita que hoje se entrega a Keiko não se responsabilizará pelo desenlace

FRANCISCO VIGO/EPA/Lusa
Os “memes” e “fakes” povoam as redes advertindo o “perigo comunista” que espera o país depois de um possível triunfo de Pedro Castillo.

Mas, desta vez, a diferença reside em que Castillo tem uma raiz popular que, até hoje, nenhum candidato presidencial viável tivera. Prova disso é o fato contundente de que, dos 50 distritos mais pobres do país, em 46 ganhou o candidato de Peru Livre. Ele é a nova aposta dos “de baixo”. 

É uma aposta que assusta “os de cima”. Alguns ameaçam ir embora e enviam mensagens em que dizem “estar fazendo as malas”. Pois terão que ficar sabendo que hoje em dia não é tão fácil. Não basta ter dinheiro, o que é suficiente para ir vacinar-se nos Estados Unidos, como a “toda Lima” está fazendo nestes dias. Em todo o hemisfério norte obter a residência tornou-se complicado, requer trâmites que frequentemente não dão certo. Então, não basta decidir “vou embora” e anunciá-lo nas redes. 

Melhor, alguns deles –que nunca foram democratas e não gostam de um jogo democrático que não possam controlar– provavelmente estejam pensando em “por ordem”, como nos velhos tempos, fazendo que saiam os tanques. Mas nem sequer neste terreno as coisas são como eram. Nas forças armadas esmoreceu a vocação de desempenhar o papel de “instituição tutelar” que a direita lhes atribuiu para vestir com uniforme seus próprios interesses. Os altos comandos parecem estar voltados para questões mais concretas e talvez sejam facilmente convencidos por uma grande compra de armas em que haverá comissões pelo meio. Além disso, Biden é, agora, um obstáculo nada desprezível. 

Se Castillo ganhar em 6 de junho – e, como é previsível, seu governo leve o país ao descalabro –, essa direita que hoje se entrega a Keiko não assumirá a responsabilidade pelo desenlace. Lançará a culpa em Maduro, Evo Morales ou no dirigente norte coreano Kim Jong-un. Jamais aceitará que na origem da crise que corrói o país está o fracasso de uma direção econômica e política que não assumiu o país que lhe competiu dirigir. Optou por sugá-lo, em vez de desenvolvê-lo; por explorar seu povo, em vez de educá-lo como cidadãos, reconhecendo seus direitos; por prescindir do bem comum e olhar apenas para seus benefícios particulares. O Peru, como expressou de maneira transparente aquela psicóloga, nunca foi seu país. 

A isto nos levou essa voraz cegueira daqueles que, geração após geração, poderiam ter construído um país diferente ao que há mais de seis décadas entristecia Scorza e não o fizeram.

* Tradução de Ana Corbisier


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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