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Argentina busca evitar um default paradoxal

João Baptista Pimentel Neto

Tradução:

Diana Cariboni*

Fotograma da transmissão pela televisão do discurso da presidente da Argentina, Cristina Fernández, no dia 16. Foto: TV Pública
Fotograma da transmissão pela televisão do discurso da presidente da Argentina, Cristina Fernández, no dia 16. Foto: TV Pública

A Argentina está em uma situação paradoxal desde que, no dia 16, a Suprema Corte de Justiça dos Estados Unidos se recusou a se envolver no julgamento iniciado por um grupo minoritário de credores: às portas de uma nova inadimplência, apesar de ser um dos países com menos dívidas do mundo.

A sentença no caso República Argentina versus NML Capital deixa firme a sentença do Tribunal do Distrito Sul de Nova York, que em 2012 ordenou que Buenos Aires pagasse de imediato e em dinheiro o valor nominal de bônus que, com juros e outras penalidades, chegam a US$ 1,5 bilhão. E também cria precedente para toda a dívida não paga em mãos de outros possuidores de bônus especulativos, num total de cerca de US$ 16 bilhões.

Essa quantia, no entanto, “equivale a apenas 3% do produto interno bruto (PIB) argentino”, disse à IPS o economista Ramiro Castiñeira, da consultoria Econométrica. “Não tem sentido Buenos Aires entrar em inadimplência por essa quantia, quando é um dos países que mais eliminou suas dívidas nos últimos anos”, argumentou. O economista afirmou que o Brasil, por exemplo, deve pagar este ano apenas em juros quantias equivalentes a 5% do seu PIB, além de vencimentos de capital por mais de 12% do PIB.

O problema é que a Argentina não pode dispor de US$ 16 bilhões em dinheiro, equivalente à metade de suas reservas de divisas, muito afetadas por uma série de medidas monetárias restritivas que agravaram a fuga de capitais. A presidente Cristina Fernández rechaçou, na noite do dia 16, a sentença judicial, que qualificou de “extorsão”. Mas insistiu em sua vontade de honrar dívidas e negociar.

Após a inadimplência (default) em que a Argentina incorreu em 2002, durante a pior crise econômica e social de sua história, o governo dedicou ingentes esforços para colocar ordem em um endividamento que teria chegado a 160% do PIB. Foram canceladas obrigações com o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) e reestruturada a dívida nas mãos de 92,4% dos possuidores de bônus, com importantes reduções de capital, em 2005 e 2010.

O endividamento voltou a níveis manejáveis. Nos últimos meses foi acordado um plano de pagamento da antiga dívida com o Clube de Paris, de credores oficiais, e para compensar a empresa de petróleo Repsol pela expropriação em 2012 de sua filial YPF. Mas a situação que gera a sentença da Suprema Corte norte-americana tem potencial para colocar em risco o que foi alcançado.

A sentença proíbe os bancos de Nova York de pagar os vencimentos de capital e juros aos credores que aceitaram a reestruturação se não for implementado o pagamento ao fundo especulativo NML Capital. No dia 30, Buenos Aires deverá pagar US$ 532 milhões por bônus emitidos sob legislação estrangeira.

Para evitar esse embargo, se poderia modificar a jurisdição de pagamento por meio de uma troca voluntária. “A ideia pode parecer tentadora, mas é impraticável e também implicaria cair em default técnico”, por alterar os parâmetros estabelecidos na emissão dos papéis, apontou à IPS o economista argentino Leonardo Stanley, pesquisador associado do Centro de Estudos de Estado e Sociedade.

Apesar de Fernández ter sido ambígua, Stanley interpreta que a mandatária expressou disposição de pagar. Assim, deve-se “iniciar um processo de renegociação com os ‘holdouts’ (credores), que poderiam ser incluídos dentro do pedido pelo juiz responsável pelo processo” em Nova York, afirmou.

“A decisão é mais política. Tal como recentemente acordou com a Repsol e o Clube de Paris, o governo deveria se sentar para negociar com Paul Singer”, titular da Elliott Management, a empresa matriz do NML Capital, opinou Stanley. Para ele, o impacto econômico é inevitável, “embora não necessariamente venha a ser enfrentado pelo governo atual”, que termina em dezembro de 2015. Por isso, “qualquer proposta deveria ser feita no âmbito legislativo, o que ajudaria na transparência e credibilidade”, acrescentou.

Em seu discurso do dia 16, Fernández disse que “essa causa envolve todo o sistema financeiro global. É a validação de um modelo de negócio em escala global que, se continuar, vai produzir tragédias inimagináveis”. Segundo Eric LeCompte, diretor-executivo da organização religiosa antipobreza Jubileu Estados Unidos, “este é um golpe devastador para os países altamente endividados que devem apoiar as populações pobres”. Agora, “esses fundos especulativos contam com um instrumento para submeter as economias em problemas”, afirmou em um comunicado.

É possível que “a Argentina não tenha usado as melhores opções ou estratégias”, argumentou Stanley, mas a postura da Suprema Corte mostra que, “apesar da crise internacional, o poder de lobby do setor financeiro continua intato”. Esse resultado “também pode prejudicar esse setor (se os Estados começarem a duvidar dos benefícios que implica emitir bônus na jurisdição de Nova York) e para os Estados Unidos que deixaram de ser o credor do mundo para se transformar em um de seus principais devedores”, afirmou.

Peter Hakim, presidente emérito do centro de pensamento Diálogo Interamericano, com sede em Washington, reconheceu que, “tanto o Tesouro dos Estados Unidos, como o FMI estão preocupados pelas consequências mais amplas de a Argentina entrar em default e pelo impacto em outras negociações de dívidas”. “Recordemos que o Tesouro (junto com o FMI), embora não integrem o processo, apoiaram o argumento da Argentina de que deve pagar os holdouts nas mesmas condições em que estava pagando os credores que aceitaram a reestruturação da dívida”, ressaltou à IPS.

Hakim acrescentou que as relações entre os dois países melhoraram nos últimos meses, na medida em que a Argentina adotou “um conjunto de políticas econômicas mais ortodoxas e moderadas, como reformar suas notoriamente manipuladas estatísticas, pagar o Clube de Paris e a Repsol, entre outras”.

Mas o futuro imediato desses vínculos depende de como reagir Buenos Aires neste caso, para o qual pode haver solução se as autoridades argentinas mostrarem maior flexibilidade, pontuou Hakim. “O governo de Fernández terá de resistir à tentação de converter essa decisão em um problema político doméstico”, afirmou. Isso parece difícil. Há décadas que o manejo da dívida é um fator central das crises econômicas e políticas da Argentina. Em seu pronunciamento, a mandatária fez um resumo histórico dessa evolução.

 

Evolução da dívida pública argentina. Foto: Cortesia de Ramiro Castiñeira/Econométrica
Evolução da dívida pública argentina. Foto: Cortesia de Ramiro Castiñeira/Econométrica

Só a porção de bônus que Singer e seus aliados pretendem cobrar é ilustrativa. Em 2008, o NML Capital adquiriu os bônus com valor nominal de US$ 370 milhões, mas na época valiam apenas US$ 48 milhões. Nos anos do governo de Carlos Menem (1989-1999), foram emitidos 30% desses bônus, durante um regime cambiário da convertibilidade (um peso, um dólar). Os restantes 70% foram emitidos durante a “megatroca”, uma operação fraudulenta realizada em 2001 para adiar vencimentos, que disparou o endividamento por dezenas de milhares de milhões de dólares.

Pela megatroca foram processados o então presidente Fernando de La Rúa (1999-2001) e seu ministro da Economia, Domingo Cavallo, e foi pedida a prisão internacional de David Mulford, que era o presidente internacional do banco Credit Suisse First Boston e havia sido alto funcionário do Tesouro norte-americano.

*IPS, de Montevideo para Diálogos do Sul

 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

João Baptista Pimentel Neto Jornalista e editor da Diálogos Do Sul.

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