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Argentina: Crônica de uma vingança anunciada

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

Bárbara Ester*

macriDesde 2003 a Secretaria de Direitos Humanos da Argentina foi dirigida por um advogado ex preso político, Luís Eduardo Duhalde, que teve como sucessor, em 2012 até 2015 a Martín Fresneda, filho de militantes desaparecidos. A partir daí a cúpula das Forças Armadas foi descabeçada, foram derrogadas as leis de Obediência Devida e Ponto Final ao tempo em que se patrocinou uma onda de processos que incluía a cumplicidade civil-militar.

Acrescente-se que 119 filhos de presos-desaparecidos recuperaram sua identidade graças as melhorias no sistema de busca (Banco Nacional de Dados Genéticos). Os ex centros clandestinos de detenção (CCD) e outros locais vinculados com a atuação do Terrorismo de Estado foram convertidos em Espaços de Memória, o que implicou sua desativação para uso policial ou militar e sua completa transformação em centros de investigação, educação e promoção de direitos.

No transcurso da campanha pela presidência, Maurício Macri advogava pela reconciliação e o diálogo, o que levou a pensar que a maioria dos bastiões kirchneristas seguiram atuando. Era essa a avaliação nas análises das pesquisas. Dois dias antes do segundo turno a atual Casa da Memória, ex Mansão Seré  centro clandestino de tortura e prisão de maior envergadura na zona oeste de Buenos Aires  amanheceu escrachada: “el 22 se termina el curro”. As paredes de um passado escuro ressignificado já anunciava uma mudança de 360 graus, de novo ao ponto de partida mas com um novo-velho discurso em disputa.

Em 23 de novembro de 2015, ha poucas horas de se conhecer os resultados do triunfo, com o editorial do diário La Nación, com o título “Não mais vingança”, começava a inauguração oficial do revanchismo.

A instauração de um enfoque que questiona —  em primeiro lugar —  o reconhecimento histórico das organizações de direitos humanos que são acusadas de distorcer a história com fins políticos populistas. A caracterização deixava clara a demanda dos editores expressa em seguida: prisão domiciliar aos ex genocidas. Por último, deixava a porta aberta para novas investigações por violações de direitos humanos, anulando qualquer cumplicidade civil e econômica. Os desaparecidos não eram a “juventude maravilhosa”, mas sim a guerra suja. Não houve nenhuma épica, sim distorção que o kirchnerismo conseguiu instalar. A justiça contra os militares foi apenas uma miragem.

Por ordem de Macri decidiu-se deskirchnerizar a política e as instituições. Não só no âmbito dos direitos humanos, mas em todo o Estado. Mais de três mil demissões nos ministérios chave com o ministério de Trabalho, o Ministério de Cultura, o ex Centro Cultural Kirchner, o Ministério de Indústria e Secretaria de Comércio Interior, o Ministério de Desenvolvimento Social, o Ministério de Justiça e Direitos Humanos e o Ministério da Segurança, chefias de Gabinete e organismos como AFSCA, OCCOVI ou ORSNA.

Gestos simbólicos

Os gestos simbólicos tem sido abundantes: desalojar da ex Esma o galpão onde Andrés Zerneri se encontra trabalhando na realização do monumento à mulher originária, a primeira desaparecida; a proibição do nome de Laura Bonaparte, mãe da Plaza de Maio em um hospital. O ministro da cultura, Darío Lopérfido, crítico da cifra de 30 mil desaparecidos, tenta estabelecer “uma estatística verdadeira” sobre esses casos. No mesmo dia, através da conta no Twitter oficial da Casa Rosada, Sara Rus foi considerada vítima de duas “tragédias”, e não sobrevivente de dois genocídios: o nazismo e a ditadura argentina que desapareceu com seu filho. Claro que não se trata de um escabroso altercado linguístico. O novo governo procura tirar os presos-desaparecidos da órbita estatal e convertê-los em vítimas de um terrorismo difuso e sem Estado, onde havia excessos em ambos os lados.

Há menos de três meses da posse do novo governo, a mudança de paradigma ocorre rápida e fielmente. O papel da “teoria dos dois demônios”, é o de avalista da realização simbólica do genocídio, porque seu afã é a destruição dos laços sociais, pretende borrar sua identidade e qualquer vestígio de ação coletiva. A recuperação da memória, a verdade e a justiça é a única garantia de que esses fatos não se repitam.

Ajuste

Para impor o ajuste, exercem uma espécie de poder pretoriano: repressão, gatilho fácil, criminalização da pobreza, regresso às investigações de antecedentes sancionadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, e detenções arbitrárias de líderes de organizações opositoras como é o caso de Milagro Sala — dirigente de Tupac Amaru e parlamentar no Parlasul — e Rodolfo Aguiar — secretário geral da ATE na Universidade de Comahue — presos por protestar; algo ocorrerá com eles depois de a opinião pública ter sido adequadamente manipulada.

O decreto presidencial de 22 de janeiro declara emergência em matéria de segurança o que habilita medidas excepcionais na luta contra o narcotráfico. Tal decisão foi denunciada por diversos espaços políticos, sociais e acadêmicos, entre eles o Acordo de Segurança Democrática e o grupo Convergência, posto que dá via livre para uma série de procedimentos de exceção para aumentar o número de efetivos policiais e dotá-los de maior poder de fogo. As Forças Armadas, por sua vez, adquiriram o direito de derrubar aviões que não se identifiquem, sem sequer consultar as autoridades políticas. A medida é inconstitucional porque constitui uma pena de morte sumária e encoberta, em contradição com o Pacto de São José da Costa Rica. Ao mesmo tempo, o decreto de emergência possibilita o Poder Executivo incrementar os gastos com tecnologia e armamento. Futuros agentes da guerra contra os narcóticos podem surgir e assumir um grande poder diante do Estado.

Alguns juízes já botaram as mangas de fora nem bem se iniciou o ano. Deram vantagem a Ernestina Herrera de Noble (proprietária do grupo Clarin) no processo por apropriação de menores, e, por unanimidade, concederam prisão domiciliar a Rubén Alfredo Boan, acusado de sequestra e torturar a mais de 80 pessoas.

América Latina

No âmbito regional, a grossura do presidente argentino com o governo venezuelano já tinham sido presenciadas na cúpula do MERCOSUL — realizada no Paraguai em dezembro de 2015 —, em torno da libertação dos denominados presos políticos venezuelanos. Com relação a Leopoldo López, condenado como autor intelectual das manifestações de fevereiro de 2014, que deixaram um saldo de 43 mortos e centenas de feridos. Por outro lado, em janeiro último, na reunião da Comunidade de Estados Latino-americanos e do Caribe — Celac, realizada em Quito, no Equador, a vice-presidenta argentina, Gabriela Michetti voltou a se pronunciar contra os venezuelanos, reconhecendo os laços de solidariedade internacional entre os dois países por ter recebido exilados durante a ditadura argentina.

Paradoxalmente, o processo que condenou a 13 anos de prisão  a López é “instigação à violência”, a mesma pela qual foi presa Milagro Sala em Jujuy diante do repúdio generalizado de amplo espectro da comunidade internacional. Contudo, a diferença é que no caso venezuelano está comprovado que houve o delito, enquanto no caso da dirigentes de Jujuy são só especulações ou evidências muito pobres.

Tanto no âmbito nacional, como no latino-americano, o macrismo se dedica a impugnar as garantias e as perspectivas de direitos humanos do governo anterior. “Equilibrar a balança e corrigir distorções”. Foi o que demonstrou o atual secretario de Direitos Humanos, Claudio Avruj, ao receber uma organização que representa os milhares de mortos. Os grandes avanços ocorridos parecem entrar em momentos de turbulência em que, além das organizações  de direitos humanos, ainda não se vê grandes resistência na sociedade.

*Artigo publicado em espanhol pelo CELAG Centro Estratégico de Estudos Latino-americanos 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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