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As imensas dívidas das grandes empresas estará no centro da próxima crise financeira

Menos de dez anos após a quebra do Lehman Brothers, ocorrida em setembro de 2008, já estão reunidos os ingredientes de uma nova grande crise
Eric Toussaint
Revista IHU On-line
Porto Alegre

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“No mundo imaginário do sistema capitalista ensinado nos manuais de economia, as empresas emitem ações na Bolsa para arrecadar capital para investir na produção. No mundo real, as empresas capitalistas pedem emprestado capital nos mercados financeiros ou aos bancos centrais para recomprar suas ações na Bolsa, com a finalidade de aumentar a riqueza de seus acionistas e dar a impressão de que a saúde da empresa é excelente”, escreve Eric Toussaint, cientista político, porta-voz internacional do Comitê pela Abolição das Dívidas Ilegítimas, em artigo publicado por Rebelión, 15-04-2019. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo:

Menos de dez anos após a quebra do Lehman Brothers, ocorrida em setembro de 2008, já estão reunidos os ingredientes de uma nova grande crise.

No entanto, os governos das principais economias do planeta haviam prometido restabelecer uma disciplina financeira que respeitasse o interesse geral e evitasse novas crises de efeitos dolorosos para a população. Com o objetivo de defender este sistema capitalista que enojava a maioria da opinião pública, multiplicaram a palavreado sobre medidas fortes destinadas a reformar o sistema para lhe dar um “rosto humano”, mas, é claro, sem que isto mudasse nada em absoluto na prática. Na realidade, a política que os governos e os dirigentes dos bancos centrais realizaram cuidou e favoreceu os interesses do grande capital, em particular os das grandes sociedades financeiras. Nenhuma medida estrita obrigou seriamente os capitalistas a colocar freio em assumir riscos, reduzir a especulação, investir na produção.

As crises fazem parte do metabolismo do sistema capitalista, mas não são iguais. No presente artigo, não se trata de recordar as causas gerais das crises capitalistas. Trata-se, aqui, de diagnosticar fatores que certamente conduzem a uma nova crise de grande amplitude.

Quando explodir, os governos, os dirigentes dos bancos centrais e a imprensa dominante aparentarão surpresa, assim como em toda vez que acontece.

Menos de dez anos após a quebra do Lehman Brothers, ocorrida em setembro de 2008, já estão reunidos os ingredientes de uma nova grande crise

Mediun
As crises fazem parte do metabolismo do sistema capitalista, mas não são iguais

Para as pessoas que se opõem ao sistema, é fundamental apontar com o dedo para as responsabilidades e mostrar como funciona o capitalismo, para ser capazes de impor uma lógica diferente e romper com este sistema.

Desde 2010, aproveitando-se da política de baixas taxas de juros, adotada pelos bancos centrais dos países mais industrializados (Reserva Federal dos Estados Unidos, Banco Central Europeu, Banco da Inglaterra, Banco do Japão, Banco da Suíça…), as grandes empresas privadas aumentaram massivamente seu endividamento. Nos Estados Unidos, por exemplo, a dívida das empresas privadas não financeiras aumentou em 7,8 bilhões de dólares, entre 2010 e meados de 2017.

O que fizeram com o dinheiro emprestado? Investiram em pesquisa-desenvolvimento, em investimentos produtivos, na transição ecológica, na criação de empregos decentes, na luta contra a mudança climática? Em absoluto, não.

O dinheiro tomado emprestado serviu, em particular, para realizar as seguintes atividades:

I. As empresas pedem emprestado para recomprar suas ações na bolsa. Isto produz duas vantagens para os capitalistas: 1) faz subir o preço das ações; 2) permite “remunerar” as(os) acionistas sem consequências no pagamento de impostos sobre os lucros. Além disso, em numerosos países, as mais-valias sobre as ações não estão gravadas com impostos ou estão, mas com taxas muito baixas (em comparação ao imposto sobre a renda ou o IVA). Já em 2014, as recompras de ações nos Estados Unidos haviam alcançado um montante mensal de 40 a 50 bilhões de dólares [1]. O fenômeno prosseguiu posteriormente. Destacaremos que já se havia assistido, antes da precedente crise, a um aumento muito forte das recompras de ações a partir de 2003, que havia alcançado um máximo em setembro de 2007, em plena crise dos subprimes. Entre 2010 e 2016, as empresas norte-americanas compraram suas próprias ações na Bolsa por um montante aproximado de 3 bilhões de dólares [2]. Uma grande parte da boa saúde das bolsas, não só a dos Estados Unidos, se dá por causa das recompras massivas de ações. É, pois, completamente artificial.

No mundo imaginário do sistema capitalista ensinado nos manuais de economia, as empresas emitem ações na Bolsa para arrecadar capital para investir na produção. No mundo real, as empresas capitalistas pedem emprestado capital nos mercados financeiros ou aos bancos centrais para recomprar suas ações na Bolsa, com a finalidade de aumentar a riqueza de seus acionistas e dar a impressão de que a saúde da empresa é excelente.

Os dirigentes de empresa que são em parte remunerados em stock options, ou seja, em ações que podem revender, têm um enorme interesse em animar a sua empresa para que recompre suas ações.

Também é preciso destacar que os dirigentes de empresa foram muito generosos em matéria de distribuição de dividendos. Entre 2010 e 2016, os dividendos entregues aos acionistas nos Estados Unidos alcançaram os 2 bilhões de dólares. No total, caso sejam somadas as recompras de ações e os dividendos distribuídos, os acionistas das empresas estadunidenses receberam 5 bilhões de dólares entre 2010 e 2016.

II. As empresas pedem emprestado para comprar créditos. Compram produtos estruturados compostos de créditos concedidos a outras empresas ou a particulares. Compram sobretudo obrigações emitidas por outras empresas privadas, assim como títulos públicos. Em 2017, a empresa Apple sozinha tinha créditos sobre outras empresas em um montante de 156 bilhões de dólares, o que representa 60% do total de seus ativos [3]. Ford, General Motors e General Electric compram igualmente dívidas de outras empresas. Além disso, 80% dos ativos da Ebay e 75% dos ativos da Oracle são créditos sobre outras empresas.

As trinta principais empresas não financeiras dos Estados Unidos ativas no mercado das dívidas possuem juntas 423 bilhões de dólares de dívidas de empresas privadas (Corporate debt and comercial paper securities), 369 bilhões de dólares de dívidas públicas e 40 bilhões de dólares de produtos estruturados (Asset Backed Securities y Mortgage Backed Securities).

Na medida em que as empresas tentam maximizar os rendimentos que retiram dos créditos que possuem sobre outras empresas, são impelidas a comprar dívidas emitidas pelas empresas menos sólidas dispostas a remunerar os prestamistas mais que outras. O mercado das dívidas com risco se amplia.

Se as empresas devedoras chegarem a entrar em dificuldades de pagamento, as empresas credoras se encontrarão em dificuldades. Em 2016, a Apple comunicou as autoridades americanas que um aumento de 1% nas taxas de juros poderia provocar uma perda de 4,9 bilhões de dólares [4]. Mais ainda na medida em que para financiar estas compras de dívidas, a Apple, assim como as demais empresas, fez empréstimo. Por exemplo, em 2017, a Apple emprestou 28 bilhões de dólares. Sua dívida financeira total aumentava para cerca de 75 bilhões de dólares. Por efeito dominó, nos Estados Unidos pode vir a ocorrer uma crise de uma amplitude tão importante como a de 2007-2008.

Também é necessário saber que quando as taxas de juros sobem, o valor dos títulos de dívida das empresas baixa. Quanto mais esses créditos (ou seja, os títulos de dívidas emitida sob forma de obrigações pelas empresas privadas) representam uma parte importante dos ativos das empresas, mais pode haver um impacto negativo da queda do valor sobre a saúde dos credores. Estes credores correm o risco, então, de carecer de fundos próprios para compensar a desvalorização dos créditos que possuem.

A situação descrita corresponde a uma nova progressão da financeirização do capital: as grandes empresas não financeiras seguem desenvolvendo seus investimentos financeiros. Apple, Oracle, General Electric, Pfizer, Ford e General Motorsreforçam seus departamentos financeiros e assumem, novamente, cada vez mais riscos para aumentar seus lucros.

Além disso, uma grande parte dos créditos possuídos sobre outras empresas passam por paraísos fiscais, o que aumenta a opacidade das operações realizadas e pode aumentar o risco. As ilhas Bermudas e Irlanda estão entre os principais paraísos fiscais utilizados pelas grandes empresas dos Estados Unidos que apostam profundamente na otimização fiscal.

O que acaba de ser descrito concerne ao conjunto do mundo capitalista, ainda que os dados apresentados se refiram à economia dos Estados Unidos.

A montanha de dívidas privadas das empresas estará no coração da próxima crise financeira. Mas com crise ou não, os comportamentos descritos justificam amplamente a ação de todas as pessoas que lutam para acabar com o capitalismo e o sistema da dívida.

Notas

[1] Financial Times, “Return of the buyback extends US rally”, 5 de dezembro de 2014.

[2] Financial Times, “Buyback outlook darkens for US socks”, 22 de junho de 2017.

[3] Financial Times, “Debt collectors”, 16-17 de setembro de 2017.

[4] Financial Times, “Patcy disclosure gives investors little to chew on”, 28 de setembro 2017.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Eric Toussaint

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