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Dois brasileiros estão entre os intelectuais que mais se destacaram nas lutas sociais do século XX na América Latina. O sociólogo Fernando Henrique Cardoso (1931-) e o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) compartilharam, ao longo de boa parte do século XX, um período rico de lutas e transformações sociais no Brasil e no continente.
Ricardo Carlos Gaspar*
A partir da Grande Depressão dos anos 1930 e da posterior eclosão da II Guerra Mundial (1939-45), a América Latina vivenciou intensos esforços para conquistar a autonomia nas decisões sobre o desenvolvimento econômico, fortalecer o papel do Estado, fazer avançar a industrialização e ampliar as experiências de planejamento nacional. Isso tudo no contexto de uma intensa urbanização, que modificou a estrutura de classes e atualizou a pauta de reivindicação dos movimentos sociais. Esse amplo espectro de transformações impulsionou e, por sua vez, foi impulsionado por novas maneiras de pensar a região. Fazendo uso de formas clássicas e contemporâneas de interpretação da realidade política global, a apropriação de correntes teóricas universais nutriu-se de um revigorado esforço de expressar, de forma autóctone, a região, suas particularidades e seus desafios.
No Brasil, tanto Fernando Henrique quanto Darcy Ribeiro, de uma ou outra maneira, absorveram o caudal crítico inaugurado pelo pensamento da CEPAL no pós-guerra, que ganhou consistência pela produção de grandes intelectuais, como Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Sérgio Buarque de Hollanda e Gilberto Freyre, entre outros. Herdaram (mais o segundo que o primeiro, é certo, pois a militância de Darcy sempre o levou mais perto das lutas populares) o rico ambiente político-social que marcou as décadas de 1950 e 60 no Brasil. Engajaram-se ao seu modo na resistência democrática à ditadura militar pós-64, filiaram-se a partidos políticos, ocuparam cargos públicos, disputaram eleições (aqui mais FHC que Darcy) e produziram trabalhos teóricos marcantes na literatura social latino americana, FHC no campo da teoria da dependência, Darcy mais voltado às construções analíticas capazes de captar as macro-evoluções histórico-culturais dos povos, com ênfase no continente americano, antes e depois da Conquista.
No tocante à prática política efetiva de Fernando Henrique e Darcy Ribeiro, os caminhos se bifurcam. Após o golpe militar (1964) e o exílio, a militância na oposição ao regime militar leva as duas personalidades a opções e posicionamentos distintos, que vão se revelando mais díspares com o passar do tempo. Fernando Henrique se candidata a Senador da República (1978), depois à Prefeitura de São Paulo (1985) – em ambas as ocasiões, derrotado porem com boa votação -, seguidas por uma vitoriosa candidatura ao Senado, em 1986 (na verdade uma reeleição, pois havia assumido a vaga de Senador ante a renúncia do seu titular, Franco Montoro, que se candidatou vitoriosamente ao governo de São Paulo em 1983) e por dois sucessivos mandatos presidenciais (1995-98 e 1999-2002), com ampla maioria de votos. Nesse trajeto eleitoral vitorioso, FHC vai mudando gradual, mas firmemente, de posição, abdicando do que havia escrito e pensado no passado, adotando posturas mais liberais e construindo sólidas alianças com a direita. No plano prático, seus dois períodos presidenciais se caracterizaram pela abertura ao mercado, as privatizações, o baixo crescimento econômico e o aumento da vulnerabilidade externa. No plano social, a precarização da força de trabalho, o aumento da desigualdade e o avanço da pobreza. No plano ideológico, a aplicação sem freios do modelo neoliberal. Na produção teórica (ou no nível das idéias), nenhuma – mas nenhuma mesmo! – contribuição apreciável, nem sequer uma nova postulação que buscasse justificar a alternativa da modernização conservadora como a mais adequada para o país. Nessa perspectiva, talvez a decepção mais profunda na atuação de FHC desde os anos 1990 tenha sido a absoluta esterilização do seu pensamento criador, prisioneiro do mais rasteiro “politicismo” – isto é, a crença na atuação política parlamentar como a mais relevante para a governabilidade e a eficiência da gestão pública, o que implicou a descarada troca de favores em prol da manutenção do status quo. De positivo, a elaboração e execução de um plano de combate à inflação, que não foi obra dele próprio, mas que foi coordenado por FHC e arquitetado sob sua gestão no Ministério da Fazenda do governo Itamar Franco: o Plano Real, de 1994.
Malgrado críticas que possamos fazer ao plano, relacionadas ao aumento da vulnerabilidade externa, à política de juros elevados e à intocabilidade dos problemas estruturais da economia, seu sucesso foi (e é) inegável, contribuindo para a estabilidade macroeconômica que o Brasil goza desde então.
Já Darcy, sem a pompa dos cargos e atitudes de FHC, continuou e aprofundou uma atuação política e intelectual intimamente vinculada aos interesses históricos da população brasileira. Foi Vice-Governador do primeiro Governo de Leonel Brizola no Estado do Rio de Janeiro (1983-87) e Senador de 1991 até seu falecimento em 1997. No governo do Rio de Janeiro executou uma obra de relevo histórico no campo educacional, criando as escolas públicas de tempo integral (os “Centros Integrados de Ensino Público” – CIEPs), que inspiraram, entre outras iniciativas, os “Centros Educacionais Unificados” – CEUs, iniciativa da Prefeitura de São Paulo na gestão de Marta Suplicy (PT, de 2001 a 2004), replicada atualmente em muitas cidades Brasil afora. À época, também idealizou e implantou, sempre em parceria – como no caso dos CIEPs – com o arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012), o projeto da Passarela do Samba, que serviu de paradigma para intervenções culturais de grande porte em todo o território brasileiro nos anos seguintes. Como senador teve atuação destacada, sendo o principal formulador da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996), que normatizou e democratizou o acesso ao ensino no Brasil. Revisitou os principais temas associados ao desenvolvimento brasileiro e latino americano, sempre deixando sua marca de reformador radical, inconformado com o destino de nossos povos. Redigiu, já com câncer em estado avançado, um libelo apaixonado, um canto de amor ao Brasil e sua gente (“O povo brasileiro”, publicado em 1995), obra em que mais uma vez a lucidez do analista e cientista social se coloca a serviço dos ideais maiores da liberação nacional, no esforço criativo e iconoclasta do permanente repensar da realidade brasileira.
Nesse breve esboço, fica clara a diferença nas trajetórias de dois intelectuais que compartilharam, ao seu modo, as riquezas e vicissitudes de uma época de intensas mudanças no Brasil e no mundo. A forma de inserção nessa realidade marca as grandezas e misérias de seres humanos comprometidos com a transformação social. Nesse sentido, Darcy Ribeiro – e jamais Fernando Henrique Cardoso – permaneceu coerente até o fim de sua existência plenamente vivida e foi, junto com Celso Furtado, o último expoente de uma geração de intelectuais que transformaram a maneira do Brasil se pensar no concerto das nações.
(*) Professor do Departamento de Economia da FEA – PUCSP. Especial para Diálogos do Sul.