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As utopias são necessárias

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

Héctor Béjar*

hectorbejarHéctor Béjar apela à construção de utopias que, mesmo que irrealizáveis, sempre nos empurram a um mundo melhor. A libertação dos povos começa pela recuperação de suas consciências. E a recuperação das consciências começa pels construção de utopias.

Esta é, em síntese, a ideia de “Mito y utopia. Relato alternativo del origen republicano del Perú”, do cientista social Héctor Béjar. Marco Fernández realizou esta entrevista para o jornal peruano La Primera.

Mito y Utopia
“Mito y utopia. Relato alternativo del origen republicano del Perú”, do cientista social Héctor Béjar.

“Mito e utopia”. A que você se refere com o título?

Ha muitas formas de ver um mito. A antropologia europeia nos diz que os mitos são próprios das sociedades primitivas. O problema é que os europeus não aceitam que eles também tenham mitos. O livro “Mito e utopia” te adverte “cuidado, a sofisticada cultura ocidental têm outros mitos”. O primeiro mito é sua superioridade, o mito de que a civilização começa com Europa. O outro mito europeu é que o capitalismo surge espontaneamente: não foi assim, o capitalismo, como diz Marx, emergiu vertendo sangue, pelo despojo de milhares de pessoas. Essa gente, que está entre o século XIV e o século XV, tinha utopias. Quer dizer, pensava que se podia viver de maneira distinta. Todos os grupos sociais que trataram de viver de maneira diferente foram esmagados sangrentamente pelos exércitos dos proprietários europeus que já estavam despojando as pessoas de suas propriedades. Há um choque entre os mitos que foram sendo criados pelas classes dominantes na Europa e as utopias que foram sendo criadas pelos despojados, os oprimidos.

Que tipo de utopias eram essas?

Primeiro, todos questionavam a propriedade. Como dizia Santo Agostinho, o pecado original do homem é ter propiciado a pobreza e ter dividido a terra. Esso também ocorreu na América. Essa é a revolução do Conselheiro caluniado por Mário Vargas Llosa quando escreveu “A Guerra do Fim do Mundo”, apresentando o Antonio Conselheiro como um louco…. Quando na realidade é a história (escrita por Euclides da Cunha, em Os Sertões) dos escravos que tinham sido “libertados;’ e que não tinha para onde ir e que vão para o deserto, e quando eles tratam de estabelecer uma sociedade sem propriedade, a nova república brasileira acaba com eles. Este foi um autêntico genocídio, uma coisa feroz, que se repete no Paraguai com a Guerra da Triple Aliança, contra os últimos ecos do que havia sido as missões jesuíticas no Paraguai, que tampouco aceitavam a propriedade privada.

Esses grupos que durante 500 anos pretenderam viver de maneira diferente tinham todos a ideia contrária à propriedade?

Sim. Os líderes eram todos padres. O Vaticano tinha sido tomado pelos proprietários, durante o Renascimento. Que fez Clemente, o primeiro papa? Acaba com os cavalheiros templários, com aqueles que ainda pensavam em uma função social da igreja. O assunto do livre é: se a contradição fundamental é entre os mitos e as utopias, entre os mitos dos poderosos e as utopias dos pobres e despojados, qual é a nova utopia?

Qual é?

É preciso pensar. O que é que ocorreu? Os poderosos estão te convencendo para que não tenhas utopias. Este livre questiona o realismo medíocre.

O que é realismo medíocre?

É o realismo de quem pensa que há que viver somente o dia de hoje. Ocorre que a sociedade pensa que tem que competir, o que supõe que a cooperação acaba.

Uma nova república?

O subtítulo diz “Relato alternativo da origem republicana do Peeru”

Qual é o relato oficial e qual o alternativo?

O relato comum é o de que aqui havia uma colônia, essa colônia estava subordinada a Espanha; que fomos uma colônia espanhola e que logo surgiram uma série de líderes guerreiros, como San Martín e Bolívar que te libertaram e esses líderes tinham uma mentalidade republicana, exceto San Martín, que tinha ideia monárquica. Essa é a história oficial. A história verdadeira, primeiro, é que não havia colônia. Colonos houve na Norte da América, porque colono é o que vem e se instala para cultivar. Aqui só vieram a sacar todo o ouro possível, regressar e comprar um título na Europa e instalar-se na Europa. Quando lês a biografia de Carlos V, percebe que ele não tinha interesse pela América; só o ouro para financiar suas guerras. Segundo problema: como fomos colônia da Espanha se quem governava era Carlos V e ele sequer falava castelhano? Espanha nunca chegou a existir. A velha Espanha, primeiro, eram os castelhanos que tinham expulsado os árabes e berberes, mas que logo foram reprimidos por Carlos V e sua corte austríaca, porque foram as comunidades que faziam a primeira revolução de independência, as que foram reprimidas e aniquiladas.

A Espanha o nega. E o Peru, o que nega?

O que a história peruana oculta cautelosamente, é que os dois primeiros presidentes do Peru foram traidores: o marques de Torre Tagle, que se arrepende de tudo, tria de maneira mais incrível e morre com os espanhóis: e Riva Aguero, que foi declarado Traidor e que se vai, trata de negociar com a Santa Aliança para que o reconheçam como presidente do Peru, como falso presidente do Peru. Esses são os dois primeiros presidentes do Peru. A República peruana tem um defeito de fábrica: nasceu mal. Quando algo nasce mal, já não sabes se vale a pena modifica-lo, se isso é modificável, ou se vale a pena pensa tudo de novo. E pensar um novo tipo de república de acordo com a atualidade. 

Como seria essa nova república?

Multicultural, que reconheça as culturas que acreditamos que eram selvagens, começando pelos amazônicos, aimarás, quéchuas, e claro, caboclos, italianos… todas as contribuições que o Peru teve. Porém essa é outra história que já não está no livro, mas a ideia é que se o Peru não se olha no espelho e não se reconhece como o que é, nunca vai poder solucionar seus problemas. Se o sonho é ser como os de Miami, prefiro o positivismo europeu. É necessário uma mudança nas estruturas mentais, isto é o que o livro instiga. Tu vives o que pensas. O problema básico do Peru está em como pensamos a nós mesmos. Isso não significa diminuir a importância das estruturas econômicas, mas o que o livre trata de dizer é que a forma como pensas é importante, tem igual ou maior importância que a forma como vives. A ideia é resgatar o que és para modificar o que pensas.

O Peru não é só andino ou amazônico

De maneira nenhuma. É urbano. Porém os andinos são cada vez menos andinos também. As modificações culturais são aceleradas no mundo e no Peru. Há uma serie de intelectuais brilhantes dos anos 1920, que hoje estão esquecidos. Um deles é José Vasconcelos, que fala da cultura índio-americana. Nessa época falava-se muito de raça, falava-se da raça cósmica. Precisamente na época em que no México se desprezava o indígena, ele reivindica o indígena, mas adverte, somos cósmicos, isso significa que temos que nos abrir para o mundo. Nem sequer usou a palavra indigenismo, ele falava de raça, mas, para ele, a raça índio-americana é uma raça espiritual, aberta ao mundo. Creio que devemos regressar ao Vasconcelos.

Não existem culturas superiores nem puras?

Como diria Wallerstein, o ocidental é um dos sistemas mundo que há: outro é China; outro o Oriente Médio, o mundo árabe; outro foi historicamente Bizâncio, a parte bizantina, a parte mais desenvolvida do mundo na época do nascimento da Europa que atualmente conhecemos; outro é o mundo eslavo… “Ha muitos mundos; mas, aqui acreditamos que há só um, ao ponto de que a história nos ensina só a historia ocidental; e a África foi apagada do mapa, culturalmente”, disse Béjar.

Por que alguns intelectuais quando falam em barbárie a situam na África?

Sim, e isso vem do século XIX. É uma imagem criada pelas potencias europeias. Em Paris, há pouco tempo, fizeram uma mostra (crítica) sobre a famosa Exposição Universal de fins do século XIX, na qual mostravam africanos acorrentados, índios de América do Norte exibidos como selvagens em jaulas… porque aos europeus (nesse tempo) interessava fixar a imagem do africano como selvagem porque estavam afirmando sua dominação sobre a África, e acabavam de repartir esse continente. Agora, os próprios europeus criticam o euro-centrismo. As imagens culturais criadas para justificar isto tem que ver com a justificativa de suas aventuras militares. Isso perdurou, essas imagens são as mesmas que agora justificam para atuar em suas novas aventuras imperiais, como na Líbia…

Que Imagens? Poderia ser mais específico?

Quando provocam o assassinato de Ghadafi, a imagem dele é a de um africano louco, e os muçulmanos aparecem como terroristas loucos. Vão criando diante de sua própria gente a imagem do islã como uma religião terrorista, quando todo o mundo que tenha visitado os países islâmicos sabe que são países pacíficos e que a base do islã é pacífica. O que sucede é que há grupos que tiveram que reagir diante da ocupação europeia.

Você diz que não há cultura pura

Devemos aceitar que toda cultura é intercultural. Tu vás a qualquer loja na Inglaterra e veras uma linda porcelana inglesa… e isso era chinesa; a porcelana holandesa é chinesa; os tecidos holandeses eram bizantinos; a tulipa, hoje símbolo da Holanda, é turca. Os europeus fizeram de tudo para negar suas origens culturais; negam sua interculturalidade. Se apresentam assim e nós os vemos assim; porque a culpa não é só deles, mas dos que os vemos assim, como A Cultura, e tudo o mais é menos.

No Peru, o maior promotor dessa ideia é Vargas Llosa

Responde a essa concepção, quando na realidade se trata de culturas diferentes que têm suas particularidades e cada uma têm seus fanáticos e seus fundamentalistas, que acreditam que sua cultura é A Cultura, a única possível, e todas as demais são negativas. Um equivalente a Mario Vargas Llosa seria um fundamentalista islâmico ou um fundamentalista neoliberal.

Héctor Béjar é colaborador de Diálogos do Sul – jurista e cientista social, é professor de sociologia na Universidade Nacional de San Marcos e uma das figuras mais destacadas da esquerda peruana. Autor de numerosos livros, entre eles La Revolución en la trampa (1968-1975)


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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