As eleições primárias da Argentina despertaram a esquerda brasileira e sul-americana, agora ansiosas com a enorme possibilidade de uma vitória definitiva de Alberto Fernández já no primeiro turno das eleições presidenciais, em outubro. Porém, a mesma jornada eleitoral registrou outra grande vitória para a esquerda, talvez até mais importante que a do peronista que encabeça a kirchnerista Frente de Todos.
Na Província de Buenos Aires – região que congrega o enorme território ao redor da Cidade Autônoma de Buenos Aires (distrito federal argentino), e configura o maior colégio eleitoral do país – também houve primárias, na qual o vencedor foi o jovem economista Axel Kicillof, com 52,5% dos votos, superando por 18 pontos a atual governadora que também é a jovem promessa do macrismo.
Para quem observa os processos políticos e como eles se desenvolvem na região, é importante ficar de olho na trajetória e nas próximas iniciativas de Kicillof, presente e futuro da esquerda e da política na Argentina.
Um pequeno resumo biográfico de Kicillof: ele é jovem, mas já possui importante currículo (antes mesmo de se tornar governador). Em seus 48 anos de idade, e oito de vida pública, já foi secretário de Planificação (nos primeiros dois anos), e, depois, ministro de Economia (nos dois últimos anos) do segundo mandato da presidenta Cristina Kirchner (2011/2015). Desde então é deputado federal.
Mas há mais coisas a destacar sobre esse economista de raízes judias, doutor em Economia formado pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Buenos Aires, casado com a pedagoga e escritora Soledad Quereilhac, com quem tem dois filhos. Como ministro da Economia, o mais destacado do trabalho de Kicillof foi sua cruzada para que o país não pagasse uma suposta dívida reclamada pelos chamados “fundos abutre” – grupos de especuladores que adquirem bônus ou títulos de dívida pública de países por preços baixíssimos e esperam o momento propício para lucrar com eles, usando dos mecanismos da especulação financeira.
O governo de Cristina Kichner se manteve irredutível com respeito às exigências dos “abutres” até o último dia de mandato. Posteriormente, o governo de Mauricio Macri terminou pagando a dívida.
A gestão de Kicillof como ministro também foi marcada pelas medidas para fortalecer a gestão estatal da petroleira YPF (re- nacionalizada em 2011, em ação na qual ele participou como secretário de Planificação), e em diferentes programas de distribuição de renda aos setores mais vulneráveis e fortalecimento da proteção social.
Outro fator importante é a sua origem política. O economista é ligado à organização conhecida como La Cámpora, que agrupa os quadros formados politicamente na Juventude Peronista (JP). Razão pela qual a direita argentina, macrista ou não macrista, o considera um inimigo ainda mais terrível que o clã Kirchner.
O medo às suas ideias faz com que a imprensa hegemônica costume colocar sobre ele rótulos como “ultra marxista” (embora ele se defina como um desenvolvimentista neo-keynesiano) e “soviético”.
Carta Maior
O candidato a governador Axel Kicillof
No dia 20 de dezembro de 2015, uma pequena multidão, em uma praça da cidade de Buenos Aires presenciou o primeiro episódio do fenômeno Axel Kicillof.
Apesar de todas as críticas midiáticas recebidas em seu período como responsável pela política econômica, lá estava ele, já deputado e não mais ministro, dez dias depois da posse de Mauricio Macri, e falando ao público reunido em uma praça, em um evento político da cidade, coisas como: “Essas políticas neoliberais propostas por Macri, nós já experimentamos aqui na Argentina e foram um fracasso; terminaram levando as pessoas à miséria”, e também “Néstor e Cristina ensinaram que quando você tem uma política de aumentar a renda dos mais pobres, isso gera demanda, e essa demanda gera mercado, esse mercado aquecia a produção, que criava mais empregos, que também gerava mais demanda, e essa demanda retroalimentada sustentou um crescimento extraordinário do país durante 12 anos”, e também “O keynesianismo na Argentina se chama peronismo”.
No mesmo comício, Kicillof pediu ao público que tivesse “confiança na democracia”, e expôs uma longa lista de argumentos com quais acreditava que seu setor político logo voltaria ao poder – muitos dos quais se referiam à “atuação firme para que os mais pobres possam sobreviver aos efeitos da política de ajustes neoliberais”.
Axel Kicillof deixou o evento em seu pequeno carro popular, junto com sua esposa, a pedagoga e escritora Soledad Quereilhac. Durante os três anos e meio seguintes, o casal continuou viajando em seu carrinho, praticamente todos os meses, a diferentes cidades da Província de Buenos Aires, inclusive aos menores povoados e mais distantes da capital, sem se negar a dar a cara e inclusive a ser hostilizado. Mais de uma vez sofreram tentativa de escracho por parte de macristas de alguma região; e uma delas inclusive na presença de seus filhos pequenos.
Nada disso os intimidou. Mesmo depois de anunciada a campanha, Kicillof continuou se locomovendo pela província em seu carrinho popular, sem seguranças nem grandes estruturas de proteção – embora sempre acompanhado pelos também disciplinados militantes da organização La Cámpora.
O resultado desse longo e disciplinado período de militância política nas ruas pode ser visto no resultado das primárias deste domingo, onde Kicillof obteve 52,5%. A atual governadora (macrista), María Eugenia Vidal, também considerada a figura mais jovem e prometedora da direita argentina, ficou 18 pontos abaixo, com 34,6%. A missão de Kicillof agora é manter essa diferença enorme durante os próximos dois meses, até as eleições de outubro.
Alguns analistas acreditam que o fenômeno eleitoral que ele gera junto com um possível sucesso administrativo como governador da Província de Buenos Aires, o tornariam um muito provável candidato presidencial (e, porque não, presidente) em um futuro a médio prazo. Contudo, quem conhece as vicissitudes da política sabe que as coisas só acontecem com um passo de cada vez, e a única certeza agora é que o próximo passo está muito perto.
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