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Baltasar Garzón: violência no Brasil tem relação com impunidade de crimes da ditadura

“Os muros, ainda mais quando mentais, são perigosos", diz o juiz que ordenou prisão do ditador Augusto Pinochet
Mayara Paixão
Brasil de Fato
São Paulo (SP)

Tradução:

Há 21 anos, o então juiz espanhol Baltasar Garzón foi responsável por virar a página de um importante capítulo da história do Chile e dos direitos humanos ao expedir o pedido de prisão do ditador Augusto Pinochet por crimes contra a humanidade.

Foi somente a partir da decisão, em 1998, que Pinochet começou a ser julgado pelos crimes de tortura, terrorismo e corrupção que cometeu durante os 17 anos do regime ditatorial que esteve à frente.

O advogado espanhol veio ao Brasil para participar do lançamento do projeto de monitoramento da Comissão Nacional da Verdade, promovido pelo Instituto Vladimir Herzog e recebeu a equipe do Brasil de Fato para uma entrevista exclusiva.

Passadas décadas desde o restabelecimento da democracia no Chile e demais países da América Latina, o ex-juiz se diz preocupado com o ressurgimento de discursos que reivindicam o autoritarismo militar, como os de Jair Bolsonaro. 

O advogado destaca que a eleição pelo voto popular não dá aval para figuras, como o mandatário brasileiro, reivindicarem bandeiras não democráticas para a resolução dos problemas sociais.

Garzón também vê fortes laços entre a impunidade dos crimes da ditadura militar brasileira (1964 – 1985) e as altas taxas de violência policial no Brasil de hoje, uma vez que se consolida um “terreno de impunidade” no país. Para ele, o combate à violência extrema está em mecanismos democráticos como a erradicação da desigualdade social.

Entre os temas abordados na conversa de aproximadamente 40 minutos estão o fenômeno da judicialização da política, a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a democracia brasileira, a liberdade de expressão e a importância da solidariedade internacional.

A defesa dos direitos humanos está atrelada a toda a carreira do advogado espanhol. No currículo, Garzón conta com ações como a investigação de assassinatos atribuídos à ditadura franquista na Espanha (1936 – 1975). O ex-juiz também é responsável por liderar a equipe de defesa de Julian Assange, fundador do Wikileaks, preso desde o início de maio.

Internacionalista nato, ele deixa a seguinte mensagem: “Os muros, ainda mais quando mentais, são perigosos. Corremos o risco de que, frente ao desconhecido, nos agarremos a quem nos dá soluções fáceis e falsas, (…) a democracia se constrói no dia a dia”.

“Os muros, ainda mais quando mentais, são perigosos", diz o juiz que ordenou prisão do ditador Augusto Pinochet

José Eduardo Bernardes / Brasil de Fato
Advogado espanhol recebeu o Brasil de Fato na tarde de terça-feira (24)

Confira a íntegra da entrevista:

Brasil de Fato: Mais de trinta anos após a redemocratização, temos um presidente defensor da ditadura militar. Como o senhor vê as declarações e ações do governo de Bolsonaro?

Baltasar Garzón: Para mim, um dirigente político em uma democracia defender uma ditadura é uma aberração. Um dirigente político, eleito democraticamente dizer que um golpista, um ditador é um exemplo a ser seguido é uma barbaridade. Me dá muito medo.

Em uma sociedade permeada pelos meios de comunicação, como a atual, onde a comunicação é global, devemos aproveitar essa porosidade para dizer que não se pode permitir que esses discursos se instalem. Discursos como os xenófobos de [Matteo] Salvini, na Itália, Donald Trump, nos Estados Unidos, e [Viktor] Orbán, na Hungria. Isso ignora todo o sofrimento que milhões de vítimas passaram ao longo do século XX e inclusive do século atual. Nenhum democrata pode ficar imóvel diante disso.

É claro, temos que respeitar as decisões populares, mas quem é eleito pelo voto não pode fazer o que quer ou dizer o que quer. Os cidadãos votam no líder político para que, dentro da democracia, ele defenda o destino do país, não para que ele atue desta forma, que obviamente vai contra a própria cidadania.

Durante muitos anos, por exemplo, nunca ouvi o [ex] presidente Lula fazer uma declaração deste tipo, mas sim em defesa dos valores democráticos, da cidadania, da luta pelos mais vulneráveis.

Além das declarações bolsonaristas, tivemos manifestações, desde 2013, de pessoas que pedem a volta do regime. Na sua avaliação, o que isso representa? Isso nos diz algo sobre a qualidade da democracia no Brasil?

Quando a insegurança se instala e as instituições não são capazes de responder, a sociedade se sente desamparada e pensa que outro sistema é melhor. Principalmente se os discursos, de quem deveria defender o empoderamento cidadão e o fortalecimento das instituições democráticas, são de amedrontamento.

Chega a um momento em que os cidadãos estão desesperados e esse tipo de discurso, motivado por interesses econômicos claros, produz a aparição de “salvadores da pátria”, que depois se tornam um problema para a democracia.

Temos altos índices de violência policial, principalmente nas favelas, além de um grande número de assassinato de lideranças populares. Quando olhamos para nossa história, o Brasil é um país que não puniu os crimes da ditadura. O senhor vê relação entre esse fator histórico e o grande número de violência policial de hoje?

Honestamente, creio que sim. Se não há uma resposta para os acontecimentos de máxima gravidade, como são os crimes de lesa humanidade, a tortura e o desaparecimento forçado de pessoas; de alguma maneira, quem consuma esses abusos considera que existe um terreno de impunidade.

Quando a violência policial é extrema, como acontece por exemplo no Rio de Janeiro — e vimos recentemente com a morte da pequena Ágatha —  algo está falhando no próprio sistema, e é a incapacidade de quem lidera. 

A responsabilidade de quem lidera é encontrar os mecanismos democráticos adequados para combater o crime. Esses mecanismos devem ir mais profundamente e focar na erradicação da desigualdade social e na luta contra a pobreza. Lula tentou e conseguiu em grande medida, mas é preciso prosseguir.

Justificar os excessos que acontecem aqui não é bom para a democracia. Isso se converte em uma dupla insegurança e em um grave abandono. Os cidadãos não estarão seguros tanto pelo crime organizado quanto pela ação dos abusos policiais.

Gostaria de falar também sobre os fenômenos da judicialização da política e da perseguição judicial na América Latina, representados no Brasil pela operação Lava Jato. Como o senhor entende estes fenômenos e quais são as consequências para a sociedade?

O problema da judicialização da política, por outros conhecida como politização da justiça, é antigo. É um fenômeno que sempre acontece quando altos níveis de representantes políticos se veem submetidos a uma investigação, como em casos de corrupção.

Advogado preside a Fundação Internacional Baltasar Garzón, com atuação na Espanha e América Latina em defesa da dignidade humana e da jurisdição universal (Foto:José Eduardo Bernardes / Brasil de Fato)  

É preciso diferenciar um fenômeno do outro. A politização da justiça é quando a política penetra em determinados profissionais da justiça e os faz atuar por fins e interesses políticos. 

Já a judicialização da política é quando se interfere na separação entre os poderes. E o poder Judiciário toma decisões que deveriam se desenvolver no âmbito político.

Em meu ponto de vista, no Brasil houve um mecanismo massivo de corrupção em determinadas estruturas, como a Odebrecht e tudo o que significa a Lava Jato, mas se produziu a responsabilidade de determinados representantes políticos. Houve interferências nessa investigação com mecanismos questionáveis, como a delação premiada. E houve interferências de responsáveis pela operação, buscando fins que não são resultado do próprio mecanismo de investigação, e que, em alguns momentos, nos fazem questionar sua imparcialidade e independência.

Acusaram pessoas — em concreto me refiro ao [ex] presidente Lula  com um objetivo que, em si mesmo, já é suficientemente grave. O mais grave é selecionar uma pessoa para imputar a ela a responsabilidade de fatos que não foram objetos de uma investigação imparcial. Os fatos nos induzem a questionar se esse processo [Lava Jato] tenha sido limpo.

Isso leva à união dos dois fenômenos: politização da justiça e judicialização da política. E, logicamente, produziu um efeito político importantíssimo: impossibilitou que o presidente Lula concorresse às eleições. Esse foi o objetivo de muitos dos atores envolvidos.

Qual é a relação que deve existir entre justiça e política? A Justiça deve ter um lado? Qual?

Creio que um sistema democrático está definido quando há o desenvolvimento de cada um dos poderes do Estado: Judiciário, Legislativo e Executivo. Todos eles formam parte e dão sentido ao Estado. Em alguns casos teremos atritos. Justamente por isso, a Constituição e as leis estabelecem o sistema de inter-relação entre os poderes e onde estão os limites.

A politização da justiça acontece quando esses controles não funcionam. Ou quando quem tem que revisar esses controles não o faz. Ou quando determinadas forças políticas se aliam com atores judiciais para conseguir um fim político ilegítimo.

Falando sobre o tema do ativismo digital, o senhor coordena a defesa de Julian Assange… O que representam casos como os de Assange e Ola Bini para os direitos à informação e à liberdade de expressão?

No mundo da comunicação, das redes sociais e da propagação de informação de formas diretas, sem intermediários, é fundamental a presença de plataformas como o WikiLeaks — ou como o The Intercept, no Brasil — para que nós, cidadãos, possamos ter acesso a conteúdos que são impossíveis de obter em meios tradicionais de comunicação.

É necessário a definição de mecanismos de proteção destes jornalistas e ativistas. É muito grave essa perseguição a que está sendo alvo Julian Assange, agora sujeito a um procedimento de extradição. Aparecerão, em breve, revelações absolutamente graves de como se interferiu em seu direito de defesa e de como houve monitoramento, com gravações, inclusive de seus advogados.

Assange não é a origem da informação. O WikiLeaks recebe a informação que difunde, é um meio de difusão. Portanto, o que se está perseguindo em si mesmo é a essência da liberdade de expressão.

Garzón tem o título de Doutor Honoris Causa em 25 universidades ao redor do mundo (Foto: José Eduardo Bernardes / Brasil de Fato) 

Do meu ponto de vista, não só como advogado, mas como defensor dos direitos humanos, é muito grave e temos que trazer à público tudo o que está acontecendo para que não se consume a perseguição deste personagem submetido a um julgamento claramente predeterminado.

Pelo trabalho de sua vida, acredito que o senhor é um internacionalista. Qual a importância da solidariedade entre as nações e entre os povos, tanto os que vivem em países democráticos, quanto os que convivem com o autoritarismo?

Eu gosto dessa pergunta. Porque claramente sou internacionalista e universalista. Para mim, as fronteiras não têm sentido e nunca tiveram. Muito menos as fronteiras que impedem a solidariedade entre os povos, a confiança entre os distintos países. Estabelecer uma fronteira pode ter um sentido territorial, mas, para mim, os muros, ainda mais quando são mentais, são perigosos. Resultam na xenofobia, no ódio ao diferente.

Se não somos capazes de entender que formamos parte de um todo, vamos muito mal. Corremos o risco de que, frente ao desconhecido, nos agarremos a quem nos dá soluções fáceis e falsas. A democracia se constrói no dia a dia, e isso só se consegue com essa confiança e solidariedade entre os povos.

Edição: Katarine Flor

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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