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E o que vimos na avenida na última escola a desfilar? Uma enxurrada de problemas jogados como forma de “protesto”, mas sem uma interpretação. Quem é a “Pátria Amada”? “Somos filhos de quem”?
Quando terminou o desfile de 2018 da Beija-Flor eu e meu companheiro nos entreolhamos com uma cara de “que coisa bizarra foi essa?”. Digo isso só pra marcar que o meu desconforto foi imediato. Durante o desfile, eu só conseguia lembrar do filme Tropa de Elite, por se tratar de uma obra igualmente artística que se desenrolou no cenário do Rio de Janeiro.
Por Verônica Lima (*)
O filme, sobretudo o primeiro, expõe ao limite a violência policial no Rio de Janeiro, buscando “humanizar” a questão, mas cai no que eu vou chamar aqui de “superexposição” do problema, com uma falta de responsabilidade interpretativa perigosíssima. Porque em Tropa de Elite o problema é do “sistema”, e não se nomeia esse sistema. Existem trabalhos, textos, artigos, vídeos e muita produção crítica sobre o conservadorismo de Tropa de Elite, e depois posso fazer uma atualização com bons links ao final (contribuições são bem-vindas). Mas a questão é que a “crítica pela crítica” de Tropa de Elite gerou e ainda gera uma onda conservadora vide o endeusamento da pior faceta da personagem Capitão Nascimento, e com direito a reforço de estereótipos e discursos rasos e fascistas (como o horroroso “bandido bom é bandido morto”).
E o que vimos na avenida na última escola a desfilar? Uma enxurrada de problemas jogados como forma de “protesto”, mas sem uma interpretação clara. Quem é a “Pátria Amada”? “Somos filhos de quem”? Aposto que alguns responderiam “o sistema”, o mesmo do filme. Fora os estereótipos reforçados: a maioria dos “bandidos” interpretados pela escola eram negros, a tradução de “crime” era sempre algo espetacularizável como roubos e assassinatos, fora a criminalização da prostituição (adoraria ver a Monique Prada escrevendo sobre isso), entre outras questões retratadas de forma bem simplória.
Num momento, o desfile me lembrou mesmo um telejornal da Globo, essa mesma que exaltou o desfile, e esqueceu a ligação da escola com a contravenção até hoje (incrivelmente, o estranho Josias de Souza escreveu sobre isso). E qual é a estratégia da midiatização dos telejornais? Encher o noticiário de tragédias, criar um clima de medo paralisante, apenas pincelando discussões sobre as raízes do problema. Depois tem a novela pra reforçar os estereotipos, pra vender o ideal de sucesso. Depois tem Big Brother pra ter assunto extra. E aí no dia seguinte mais tragédia, mais medo, etc e tal. Essa é outra questão que é muito bem trabalhada por muitos analistas, e que podemos chamar de anestesia social.
Foi isso que a Beija-Flor fez, deu uma anestesia no povo, fez a galera cantar a plenos pulmões, com um samba catártico e bonito, sim (embora alguns especialistas em carnaval não tenham gostado). Quem não quer cantar que se sente abandonado num contexto social em ruínas em tantos aspectos? Mas a evolução da agremiação de Nilópolis deixou um buraco na avenida, para usar uma expressão carnavalesca: quem é, ou quem constrói essa Pátria Amada, cara pálida?
Um desfile de 2013, num campeonato de 2018 (muito bem representado por outras escolas)
Impossível não lembrar dos protestos de 2013, “contra tudo e contra todos”, que acabou em outra onda conservadora arrematada pelo golpe político-midiático de 2016 e as deturpações da operação Lava-Jato. Quando não se dá nome aos bois, quando não há posicionamento claro, a manipulação ganha espaço, e o conservadorismo (de todos os lados) também.
Nesse sentido, o desfile da Beija-Flor me pareceu uma viagem temporal: poderia ter sido facilmente apresentado em 2013, naquele clima difuso. Diferentemente dos desfiles de outras escolas, super conscientes do que estamos vivendo hoje: Paraíso do Tuiutí (chamada por alguns como a grande campeã desse ano, e que retratou a cara do racismo VIVA, bem VIVA, e os verdadeiros monstros que bebem o sangue da nossa gente), Mangueira (com sua crítica inteligente ao desmonte das verbas do carnaval por parte da prefeitura), Salgueiro (com o enredo sobre a força da mulher negra), e até mesmo Portela (que embora sem grandes enfase, falou do preconceito com migrantes, um problema sempre presente dentro e fora do Brasil).
Interessante observar que essa identificação com os protestos se refletiu claramente nas alegorias e até em alas da Beija-Flor. Por exemplo, um único carro (se não me engano, o penúltimo) trazia, no mesmo “balaio”, a questão da transexualidade (Pablo Vittar representando), a violência no esporte (com bailarinos fazendo uma apresentação numa réplica de campo de futebol), prostitutas, entre outras coisas que eu devo não estar lembrando, de tanta coisa que tinha. E o que eram as ruas em 2013 senão uma “geléia geral” sem foco? Depois devidamente aproveitadas pra reforçar estereótipos e posições simplistas que não chegaram nem perto de instalar uma discussão efetiva e madura sobre o que seria uma reforma política, muito menos de enfrentamento real dos problemas sociais que castigam nosso país.
E o desfile da Beija-Flor vai chegar a esse mesmo não-lugar. Não à toa a Globo está celebrando tanto esse título. Festejarão até o desfile das campeãs, e depois voltarão ao anestesiamento com as tragédias, sem discussão eficaz sobre o que poderia ser transformado de verdade. No samba, a Beija-Flor chama um difuso “você que não soube cuidar, que negou o amor” a aprender com escola. Mas, no fim, ela só reproduziu a velha estratégia da crítica pela crítica. Os holofotes que fizeram “o menino que você abandonou” (olha o interlocutor indefinido, aí gente!) brilhar na avenida, são os mesmos que se apagam todos os dias pras raízes dos diversos problemas que vemos.
Meu cunhado resumiu, na manhã de ontem: “falou de tudo, mas não falou de nada”.
Confira o desfile:
(*) é jornalista e pesquisadora