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Belo Monte viola direitos dos povos do Xingu

Redação Diálogos do Sul

Tradução:

A sociedade brasileira não tem consciência do custo social e ambiental de Belo Monte. Entrevista de Sônia Magalhães.

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Sônia Magalhães é graduada e mestra em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Pará – UFPA e em Sociologia pela Université Paris 13. Atualmente leciona na UFPA, onde está vinculada ao Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural. Também leciona nos Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas e Pós-Graduação em Gestão dos Recursos Naturais e Desenvolvimento Local na Amazônia.

“…Entre todas as violações geradas pela construção de Belo Monte nos últimos cinco anos, quando as obras foram iniciadas no Rio Xingu, a maior delas, “a partir da qual várias outras foram desencadeadas, eu diria que é o não reconhecimento da população tradicional”, diz a antropóloga Sônia Magalhães, membro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, que coordenou, em conjunto com a professora Manuela Carneiro da Cunha, o relatório “Estudo sobre o deslocamento compulsório de ribeirinhos do rio Xingu provocado pela construção de Belo Monte”, concluído no final do ano passado. Este estudo será publicado pela SBPC nas próximas semanas. “O fato de não haver esse reconhecimento gerou uma cadeia de violações de direitos que até o momento não foi sanada”, diz a pesquisadora.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone, Sônia explica que a “recomendação fundamental” do relatório produzido pela SBPC para resolver os conflitos gerados pela construção da hidrelétrica de Belo Monte é a necessidade de reconhecer a condição dos ribeirinhos como tais, o que tem sido violado pelo Plano Básico Ambiental – PBA. “O reconhecimento dessa condição não é da empresa Norte Energia nem do Ibama. Ao contrário, o reconhecimento é do indivíduo e da sociedade da qual ele faz parte, ou seja, dos ribeirinhos. Essa é a recomendação pilar do estudo da SBPC”, frisa…”
Patricia Fachin*  
Entre todas as violações geradas pela construção de Belo Monte nos últimos cinco anos, quando as obras foram iniciadas no Rio Xingu, a maior delas, “a partir da qual várias outras foram desencadeadas, eu diria que é o não reconhecimento da população tradicional”, diz a antropóloga Sônia Magalhães, membro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, que coordenou, em conjunto com a professora Manuela Carneiro da Cunha, o relatório “Estudo sobre o deslocamento compulsório de ribeirinhos do rio Xingu provocado pela construção de Belo Monte”, concluído no final do ano passado. Este estudo será publicado pela SBPC nas próximas semanas. “O fato de não haver esse reconhecimento gerou uma cadeia de violações de direitos que até o momento não foi sanada”, diz a pesquisadora.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone, Sônia explica que a “recomendação fundamental” do relatório produzido pela SBPC para resolver os conflitos gerados pela construção da hidrelétrica de Belo Monte é a necessidade de reconhecer a condição dos ribeirinhos como tais, o que tem sido violado pelo Plano Básico Ambiental – PBA. “O reconhecimento dessa condição não é da empresa Norte Energia nem do Ibama. Ao contrário, o reconhecimento é do indivíduo e da sociedade da qual ele faz parte, ou seja, dos ribeirinhos. Essa é a recomendação pilar do estudo da SBPC”, frisa.
Sônia lembra que a obra de Belo Monte, desde o início de sua construção, tem sido “marcada pelas condicionantes”, as quais vêm se acumulando ano após ano. “Um bom diagnóstico do que são os problemas de Altamira é o número de ações civis públicas que estão em vigor atualmente. No caso da cidade, entre todas as ações civis, diria que a principal delas diz respeito ao esgotamento sanitário. (…) Segundo o licenciamento previsto, antes de a barragem entrar em operação, deveria ter sido feito um sistema de tratamento de esgoto sanitário, antes de os dejetos serem lançados no rio, mas isso não foi feito. Portanto, a barragem entrou em operação sem que isso tivesse ocorrido, o que gerou um problema extremamente sério na cidade, com repercussões sobre a qualidade da água”. E adverte: “Hoje, em Altamira, há uma situação de emergência pública”.

Confira a entrevista:

IHU On-Line – A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC divulgou recentemente um relatório intitulado “Estudo sobre o deslocamento compulsório de ribeirinhos do rio Xingu provocado pela construção de Belo Monte”, no qual aponta que foram feitas novas violações de direitos dos ribeirinhos expulsos por conta de Belo Monte. Em que consistem essas violações?

Sônia Magalhães – A violação de direitos dos ribeirinhos é muito anterior ao estudo da SBPC, o qual vem constatar, mais uma vez, que existe essa violação. Com base no conhecimento dos pesquisadores que fazem parte do grupo, o estudo aponta uma série de impropriedades do ponto de vista técnico, social e jurídico. Se pudéssemos eleger uma violação – não que seja a única -, a partir da qual várias outras foram desencadeadas, eu diria que é o não reconhecimento da população tradicional. O fato de não haver esse reconhecimento gerou uma cadeia de violações de direitos que até o momento não foi sanada.

Os ribeirinhos, mesmo morando historicamente nessas áreas, não foram reconhecidos como tais. Também não foram levados em conta os aspectos sociológicos, e os ribeirinhos, literalmente, foram expulsos de suas áreas sem nenhum diálogo, sem nenhuma medida que tentasse, de alguma forma, minimizar a violência que é um deslocamento compulsório. Por outro lado, há várias questões técnicas relativas à fauna, à flora e ao ecossistema em geral que repercutem sobre o modo de vida e as relações sociais dos ribeirinhos, porque eles têm uma relação especial com o território.

Então, o estudo aponta um conjunto de recomendações fundamentais para que os ribeirinhos consigam ter condições de reestruturarem o seu modo de vida. A primeira recomendação que aparece como preâmbulo do relatório é o reconhecimento da condição de ribeirinho, o qual é prerrogativa dos próprios ribeirinhos. Ou seja, o reconhecimento dessa condição não é da empresa Norte Energia nem do Ibama. Ao contrário, o reconhecimento é do indivíduo e da sociedade da qual ele faz parte, ou seja, dos ribeirinhos. Essa é a recomendação pilar do estudo da SBPC. A partir daí há recomendações relativas à reterritorialização dos ribeirinhos sumariamente desterritorializados, porque foram expulsos. Eles não tiveram nenhum protocolo de deslocamento.

Os ribeirinhos, mesmo morando historicamente nessas áreas, não foram reconhecidos como tais

IHU On-Line – Para quais regiões do Pará eles foram deslocados?
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p style=”padding-left: 30px;”>Sônia Magalhães – Eles tiveram que procurar outro lugar qualquer, como as casas dos parentes ou dos amigos. Muitos deles, apesar de serem ribeirinhos, também tinham casas na cidade, porque essa é uma característica das populações tradicionais da Amazônia, mas alguns deles foram, inclusive, deslocados de suas casas da cidade. Antigos pescadores estão se empregando em fazendas como vaqueiros e há uma espécie de diáspora, intensa, que, naquele momento em que fizemos o estudo, era difícil de quantificar. Apesar disso, conseguimos localizar tanto redes de localidade quanto de parentescos e conseguimos identificar aqueles que permaneceram em Altamira e outros que migraram.


IHU On-Line – Uma das conclusões do relatório da SBPC é sobre a maneira como a Norte Energia está conduzindo o processo dos ribeirinhos que saíram das suas localidades. Pode nos falar como tem sido feito esse processo? A Norte Energia tinha algum tipo de responsabilidade em relação aos ribeirinhos após a construção de Belo Monte?

Sônia Magalhães – Não foi feito um acordo entre ribeirinhos e a Norte Energia, mas existe uma legislação que diz respeito ao licenciamento ambiental, a qual tem um instrumento chamado Plano Básico Ambiental – PBA, no qual não está explicitamente colocada a questão dos ribeirinhos pelo simples fato de que eles não foram reconhecidos como tais, ao contrário, eles foram invisibilizados. No entanto, o próprio PBA aponta que todos os deslocados por conta do empreendimento devem ter seus modos de vida recompostos. Desse ponto de vista, o Plano está sendo violado, e os instrumentos do licenciamento não estão sendo cumpridos.

IHU On-Line – Quais são os argumentos utilizados para não se reconhecer os ribeirinhos como tais?

Sônia Magalhães – Os ribeirinhos se auto identificam, e a população de Altamira sabe quem são os ribeirinhos, vivem na beira do rio e os conhece pelo nome. Alguns ribeirinhos, inclusive, são casados com indígenas, e a sociedade local os reconhece. Além disso, eles existem historicamente, estão presentes na bibliografia sobre a região e toda a sociedade altamirense interage com eles. Mas mesmo assim os ribeirinhos não aparecem no licenciamento ambiental.

IHU On-Line – É possível contabilizar quantos ribeirinhos já foram deslocados?

Sônia Magalhães – Aproximadamente 800 famílias. Há levantamentos feitos pela Norte Energia, mas não posso comentá-los porque não tenho conhecimento desse material. Nós o solicitamos, mas não conseguimos acessá-lo.

IHU On-Line – Qual é a situação em Altamira desde que Belo Monte recebeu a licença de operação?

Sônia Magalhães – O licenciamento de Belo Monte é marcado pelas condicionantes, as quais vêm se acumulando desde a licença prévia, a licença de instalação e depois a de operação. Essas condicionantes dizem respeito a várias áreas, ao próprio deslocamento urbano, às impropriedades relativas às áreas que foram deslocadas e foram inundadas em razão do comportamento do lençol freático, até relações relativas à saúde. Um bom diagnóstico do que são os problemas de Altamira é o número de ações civis públicas que estão em vigor atualmente. Entre todas as ações civis relativas à cidade de Altamira, diria que a principal delas diz respeito ao esgotamento sanitário. Altamira, como várias cidades do Brasil e da Amazônia, não tinha tratamento de esgoto sanitário e, portanto, todo o esgoto era lançado diretamente no rio. Isso por si já é algo problemático, mas era parcialmente aceitável porque o Rio Xingu tem uns períodos de vazão muito extremos, acima de 20 mil metros cúbicos por segundo, além de ter vazões médias bastante altas, o que garantia a circulação da água do rio e, por consequência, gerava uma espécie de “tratamento natural” do esgoto, porque o rio levava os dejetos da cidade de Altamira.

Impactos

Acontece que a barragem transformou toda essa área do rio onde o esgoto sanitário de toda a cidade é jogado até hoje, de tal modo que a água passou a ficar parada em frente à cidade de Altamira, sem nenhuma renovação. Portanto, teve-se, subitamente, em um rápido espaço de tempo, um acúmulo de resíduos e dejetos, que aumentou rápida e acentuadamente a poluição da água, reduzindo a sua qualidade e oxigenação. Essas são consequências observáveis em todos os reservatórios, mas no caso de Altamira a situação se agravou porque gerou também um esgotamento sanitário.

Segundo o licenciamento previsto, antes de a barragem entrar em operação, deveria ter sido feito um sistema de tratamento de esgoto sanitário, antes de os dejetos serem lançados no rio, mas isso não foi feito. Portanto, a barragem entrou em operação sem que isso tivesse ocorrido, o que gerou um problema extremamente sério na cidade, com repercussões sobre a qualidade da água e sobre a saúde de toda a população.

Redução da vazão do Rio Xingu

A segunda situação extremamente grave, que não ocorre no município de Altamira, mas no município de Vitória do Xingu, diz respeito à outra parte do rio que foi represada: como o rio, além de ser represado, foi desviado perenemente, houve uma redução de vazão num trecho de 100 quilômetros do rio. Em geral, a vazão do rio tem uma variação que vai ao máximo, algo em torno de 28 a 30 mil metros cúbicos por segundo. Como essa vazão foi reduzida à vazão mínima já registrada historicamente, todo esse trecho abaixo da barragem de Pimental teve sua vazão reduzida. A população que mora nesse trecho em que houve a redução da vazão, por conta disso, passou a enfrentar uma situação de alteração brusca em seu território, ou seja, essa é outra forma de desastre sobre o território. Essa população ribeirinha não tem nenhuma previsão de como serão minimizados os efeitos que estão acontecendo e tampouco tem alternativas. Isso inclui tanto a população ribeirinha, como outra fração importante de população não ribeirinha e que também mora abaixo da barragem de Pimental, no trecho de vazão reduzida.

Redução da pesca

A terceira situação extremamente grave, que envolve os municípios de Altamira, Vitória do Xingu e Senador José Porfírio, é a redução do estoque pesqueiro. Nessa região existe uma população muito grande de pescadores, e a pesca, além de ser uma importante fonte comercial de geração de renda, é, sobretudo, a principal fonte de segurança alimentar. Portanto, hoje existe uma população de pescadores sem peixe, e uma área de cerca de 250 quilômetros sem peixes. Essa situação é consequência não apenas da inundação, mas da redução da vazão, que também repercute sobre os berçários de peixes, sobre área de piracema e áreas de alimentação dos peixes.

Essa situação dos pescadores também tem um efeito em cadeia: repercute sobre a situação das famílias e, como consequência, sobre a situação do próprio comércio, da circulação de mercadorias de modo geral, porque esses pescadores estão sem a sua atividade. Tanto os ribeirinhos como os pescadores necessitam, com urgência, um apoio de transição – um apoio financeiro -, pois eles não têm onde morar, não têm como se alimentar e estão em uma situação emergencial. Hoje, em Altamira, há uma situação de emergência pública.

IHU On-Line – Vislumbra possibilidades de reverter essa situação de impacto tanto para ribeirinhos quanto para a população em geral depois da operação de Belo Monte?

Sônia Magalhães – Os impactos de Belo Monte são irreversíveis e, até agora, incontornáveis. Além de serem extremamente trágicos – porque considero que um desastre ambiental é uma tragédia –, eles não recebem a atenção que deveriam receber. Há grandes questões que devem ser levadas em consideração. A primeira delas é que a sociedade – nós brasileiros – deve levar em consideração o custo social e ambiental de uma grande barragem, seja Belo Monte ou outra qualquer. Creio que a sociedade brasileira não tem consciência do que significa o custo social e ambiental de uma barragem. Quando digo que não tem consciência, quero dizer também que as perdas – sociais, ambientais, humanas – decorrentes de uma barragem são irrecuperáveis, são uma tragédia.

Uma metáfora que talvez possa fazer entender a situação é a de uma grande enchente: ela destrói tudo. É evidente que as pessoas buscam se recompor, mas é necessário muito apoio para que elas se recomponham e muitas delas jamais vão se recompor. Logo, é uma tragédia que não tem aparato técnico que a controle, porque a dimensão das perdas não é controlada tecnicamente. Esse é o primeiro ponto.

O segundo aspecto é que, mesmo sabendo disso, poderiam ser tomadas algumas medidas que fizessem a tragédia suportável, pois é possível oferecer ao ambiente e às populações humanas meios para lidar com ela e, no caso de Belo Monte, isso não existe. Posso afirmar que não conheço nenhum exemplo de barragem em que essas condições tenham sido oferecidas. As mínimas condições que foram obtidas foram resultado de muita luta e resistência em um conflito onde há uma assimetria de poder inimaginável, isto é, uma assimetria que talvez não vejamos em outras situações de conflitos, como, por exemplo, no caso que estamos traçando, que é a questão da invisibilização de uma população inteira, ou seja, de dizer que ela não existe, de não reconhecê-la.

Não acredito que Belo Monte venha, em algum momento, a recuperar ou restaurar aquilo que foi perdido pelas populações ribeirinhas. Não estou nem me referindo às questões materiais, mas culturais e simbólicas: essa é uma perda que não tem reposição e nós precisamos ter consciência disso: de que estamos impondo a uma parte da nossa sociedade uma perda que não tem volta.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Sônia Magalhães – O esforço que a SBPC fez foi interessante e pode contribuir muito para se refletir sobre os efeitos das políticas públicas no Brasil, porque as grandes barragens são um caso-limite, mas há outros. A SBPC fez um esforço de mostrar para a sociedade esse caso-limite, ou seja, qual é o significado da construção de uma barragem e de dar uma contribuição a essa população, de dar visibilidade a essa população e à violação dos seus direitos, e de contribuir com a nossa competência, que é a arma de que dispomos neste momento, que é a competência de analisar e apontar o que está acontecendo e indicar algumas soluções, apontar encaminhamentos para soluções possíveis para que as populações sobrevivam melhor a essa tragédia.

Tenho a esperança de que estudos como esse revelem a dimensão dessa tragédia, ao mesmo tempo que contribuam para esse momento emergencial, que seja uma demonstração para situações futuras, não do que deve ser feito, mas exatamente do que não deve ser feito. Eu diria que o estudo da SBPC é uma espécie de “não às hidrelétricas”.

 
*Original da revista on-line IHU – Instituto Humanitas Unisinos
 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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