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Imagem: Freepik

Bíblia, Santa Hildelgarda e porte de maconha | Carta aberta a Rodrigo Pacheco

Conclamo o senhor Pacheco a ser mais cuidadoso e, Deus me livre, colocar sua alma em risco. E como bem sabe, a guerra contra a Cannabis sativa já fracassou
Carlos Russo Jr
Diálogos do Sul Global
Florianópolis (SC)

Tradução:

Doutor Pacheco, como todo bom cristão, deve, sem dúvida, ter lido a Bíblia. Por isso me permito relembrá-lo que em Eclesiástico (38,4) pontifica uma frase de enorme importância: “Deus faz crescer nos campos ervas com o poder de curar e o homem sábio deve saber usá-las”. Por outro lado, creio que o que Vossa Excelência ainda não teve a oportunidade de conhecer o histórico e o legado de Hildegarda de Bingen, Santa reconhecida pelo Papa Alexandre III e doutora da Igreja!

Se já fosse de seu conhecimento, não sairia como esses “vendilhões do templo”, (lembra-se da fala de Cristo?), conclamando pela punição indistinta a todo usuário e portador de cannabis. Tenho certeza!

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Pois então, saiba que Santa Hildegarda, apelidada Sibila do Reno, foi uma monja beneditina, mística, teóloga, pregadora, compositora, naturalista, médica informal, poetisa, dramaturga e escritora alemã. Viveu 81 anos, falecendo em 1179. O Papa Alexandre III reconheceu-a como a pessoa mais influente na cristandade de então.

Somente 50 anos após, já no século XIII, surgiria outro Santo que a suplantaria em influência na Igreja, Tomás de Aquino!

Santa Hildegarda

A santa Monja da pequena cidade alemã de Bingen foi uma revolucionária dos costumes rompendo com o patriarcalismo reinante. Ela não somente defendeu o direito das mulheres ao prazer sexual, como tinha êxtases e visões. A respeitabilíssima Hildegarda, a acreditar em Dante, está hoje pelo menos no Sétimo Céu, próxima ao Criador, um objetivo com que, temo, jamais Vossa Senhoria e este articulista, poderão sonhar em alcançar.

A Santa deixou por escrito diversas de suas experiências, quer pessoais, quer comunitárias. Numa de suas lições, ela prescreve o consumo da semente da erva cannábica porque faz bem ao estômago. E alertou: seu azeite diminui o mal-estar e reforça o bom humor! E saiba, caro Presidente, que a Santa detinha conhecimento aprofundado a respeito da cannabis. Tanto que alertou para não se usar a maconha quando a pessoa não esteja se sentindo bem (provavelmente para não mascarar outras enfermidades), “mas se estiver um pouco doente, nunca fará mal”.

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O cânhamo também é uma planta pertencente à espécie “Cannabis sativa”, o senhor sabia? Veja doutor, o cânhamo, pai da folha e semente da cannabis, é originário do continente asiático. Escavações arqueológicas no Japão confirmam que, no mínimo, 10 mil anos atrás, seres humanos já coletavam suas sementes para uso. Foram também encontrados resquícios pré-históricos na Índia, Tailândia e Malásia.

Achados arqueológicos no território da atual China provam que, mais tardar, desde 4000 a.C., já se fabricavam têxteis com fibras de cannabis. Também chineses são os primeiros registros de seu emprego na medicina: o saber a respeito é atribuído ao mítico imperador Shennong.

O mais antigo livro da fitoterapia chinesa

O livro Běn Cǎo Jīng, do primeiro milênio antes da era cristã, contém indicações sobre a cura com ervas. Nele, a ação do cânhamo é descrita explicitamente: a planta não só permitiria comunicar-se com os espíritos como relaxaria o corpo. Ao mesmo tempo, alerta-se que doses excessivas poderiam levar a alucinações!

Dr. Pacheco, será que Deus indicou cannabis até para Moisés?

O historiógrafo Heródoto, no século 5º a.C., descreveu que o povo equestre dos citas, atuais ucranianos, em seus ritos fúnebres, se reuniam numa tenda, lançavam sementes da planta sobre pedras em brasa e se purificavam num banho de vapor. “Os citas se alegram com a sauna e uivam de prazer”, conta Heródoto. A palavra latina cannabis, aliás, provém do idioma cita. Mas, já chegamos aos montes Sinai! A cannabis tem uma longa história tanto no judaísmo, quanto no cristianismo.

Cristo cura dois cegos de Jericó (Imagem: Wikimedia Commons)

Mas voltemos à Bíblia, importante pro doutor que é tão devoto. No Velho Testamento, Deus instrui Moisés para fabricar um óleo de santa unção: além de canela, mirra e azeite de oliva, ele deve usar “kaneh bosm”. Segundo a teoria da antropóloga Sula Benet (1903-1982), mais tarde o termo foi erroneamente traduzido para o grego: em vez de cálamo aromático, ele se referiria ao cânhamo, à maconha! Em 2020, pesquisadores encontraram pelo menos um indício para essa teoria: no altar do templo judaico de Tel Arad, em Israel, detectou-se cannabis, contendo a substância tetra-hidrocanabinol (THC) que, aquecida, tem ação entorpecente.

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Mas a história continua, doutor!

Quando a Santa a abadessa Hildegard von Bingen (1098-1179) descreveu as propriedades benéficas do uso das sementes de cânhamo, a planta era empregada sobretudo na navegação e na fabricação de têxteis e papel.

Mil e uma utilidades

Na Suécia, durante a reforma de uma igreja, em 1909, descobriu-se uma tapeçaria de 3 mil anos, datando da época dos vikings, fabricada com cânhamo! Também nas sepulturas de vikings abastados encontraram-se, como tributos funerários, roupas finas feitas com fibras da planta.

Folhas de cânhamo foram igualmente decisivas na história da impressão de livros. Johannes Gutenberg tornou a maioria de seus exemplares impressos da Bíblia, em papel produzido com trapos de roupas e fibras de cânhamo.

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Por isso, cuidado, nobre Presidente do Congresso, ao julgar a cannabis planta dos infernos! Pois foi uma sorte da cristandade! O papel de cânhamo é mais resistente que o de hoje em dia. Sem ele talvez a Bíblia não houvesse chegado aos dias de hoje! E, quem sabe, sem a cannabis talvez nem Cabral tivesse chegado ao Brasil, sabia???

Pois, como em todos os navios da época, as velas, redes e cordas de sua frota eram feitas com cânhamo, que não apodrece nem mofa com a umidade. E aí, estas terras todas seguiriam pertencentes aos povos originais! E o senhor não teria a proeminência política que hoje tem!

Seja mais cuidadoso

Nesta carta aberta, conclamo o senhor a ser mais cuidadoso e, Deus me livre, colocar sua alma em risco! Vou lhe dar mais um argumento para que reveja seus posicionamentos: no último século, o cânhamo foi sendo substituído pelos combustíveis fósseis. Por fim, a indústria do cânhamo definhou.

Interessante notar que um dos promotores da vitória do petróleo, que aniquilou com o plástico a indústria do cânhamo, foi Harry Anslinger que, como chefe do Departamento Federal de Narcóticos dos Estados Unidos (DEA), durante 30 anos se empenhou pela demonização da cannabis – para felicidade da indústria petroleira!

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Afinal de contas, a queima dos combustíveis fósseis que substituíram a venerável planta é responsável pelo aquecimento do clima global. A redescoberta e desenvolvimento de antigas tecnologias, pré-petróleo, podem não ser a cura para tudo, mas o cânhamo tem grande potencial, pelo menos como um componente de uma economia mais sustentável. Sabe, o dr. Anslinger deve estar queimando nos Infernos, o senhor não acha?

Guerra fracassada

Como ilustrado, o senhor bem sabe que a guerra contra a Cannabis sativa já fracassou!!! Não só cada vez mais países legalizam o seu consumo, como numerosas empresas apostam nela, para além dos negócios com a maconha medicinal ou como droga recreativa. Por outro lado, nunca ocorreu no mundo overdose pelo consumo de maconha, ao contrário do álcool!

Estudos científicos incontestes afirmaram que a dose mortal é de 4 quilos, com consumo ininterrupto. E não existe nenhuma comprovação científica que a maconha seja “porta de ingresso” para outras drogas. Nada nos campos farmacológico, químico, psicológico e neurofisiológico.

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E, afinal, não somo bobos, e ambos sabemos quantos criminosos lucram com a proibição da cannabis! Mas, Deus vos livre de incidir na ira do Senhor!

Que Santa Hildelgarda o guarde e ilumine daqui pra frente!

Amem!!!


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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