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Bolívia: O que acontece quando a esquerda funcional ao Império sela sua própria morte?

Os opositores ao governo do MAS não apenas optaram por um protagonismo oportunista, senão que, com absoluta perda de sentido histórico
Rafael Bautista S
ALAI / Agência Latino America de Informação
La Paz

Tradução:

O embuste de um golpe com cara de “transição” está descrevendo, prolixamente, todo um montão de desvarios políticos e intelectuais, sobretudo na esquerda: cuja apologia ao governo de “transição” está definindo seu próprio suicídio histórico. A esquerda opositora (ao governo do MAS) não apenas optou por um protagonismo oportunista, senão que, com absoluta perda de sentido histórico, tem cumprido fielmente com o último propósito imperial: macular e escarmentar definitivamente todo o horizonte popular. Porque a atual criminalização e perseguição do sujeito indígena tem como finalidade última a abolição do horizonte político proposto por este sujeito: o viver bem, a descolonização e o Estado plurinacional.

A esquerda opositora denunciou tanto a direitização do governo de Evo, que nunca se precataram de sua própria direitização. Denunciaram tanto a suposta ditadura e “dominação masista”, que já não sabem agora reconhecer a verdadeira ditadura e dominação do supremacismo branco em sua versão mestiça. Acusaram tanto o caudilho índio, que não perceberam a própria legitimação que outorgaram ao caudilho ilustrado (Carlos Mesa) e ao caudilho “macho” inquisidor (Fernando Camacho).

Tanto se rasgaram as vestes por uma nacionalização que dizem que não houve, que agora não sabem o que dizer da sistemática alienação anunciada do lítio e de todos os nossos recursos estratégicos. Enquanto reclamavam livremente a falta de liberdade de expressão na suposta ditadura, se esqueceram, agora olimpicamente dessa reclamação, quando são violados todos os direitos e se ameaça, se persegue, se encarcera e se expulsam jornalistas e se proscrevem meios internacionais. 

Os opositores ao governo do MAS não apenas optaram por um protagonismo oportunista, senão que, com absoluta perda de sentido histórico

Reprodução Twitter
A Bolívia é o início do golpe da geoeconomia do dólar para todo o continente sul-americano.

Essa esquerda funcional ao Império sela sua própria morte. Critica tudo, mas nunca faz a autocrítica e nem limpa, pelo menos, a própria miséria histórica que carrega como uma maldição: oferecer à direita, em bandeja de prata, sua própria reposição. 

O trotskismo foi exemplar nisso, reeditando seu próprio anátema genético de abrir as portas ao fascismo. Por isso, não é de estranhar que o comedimento extremista seja o vírus introduzido na luta popular para direitizar suas opções. Isso aconteceu com a funcionalização do desacordo e do dissenso antigovernamental, para benefício de um fascismo empoderado que não tardou em liderar um assalto à democracia, em nome da democracia.

Esta direitização foi promovida também nos âmbitos acadêmicos e, desde ali, amparados em um criticismo acrítico (que mais se inclina pela pura criticoneria), se dedicaram diligentemente a socavar tudo para que não ficasse nada; dando, desse modo, o melhor argumento para legitimar o ódio fascista desatado contra o índio.

A academia se ufana de “crítica”, mas é a que dá os argumentos necessários para a reposição conservadora. Por mediação acadêmica, a direita fascista recebeu a “ilustração” de seu obscurantismo como oferenda intelectual; esta mediação inclusive auspiciou e legitimou um golpe fascista que fez dessa “transição” o desmantelamento sistemático, não apenas da institucionalidade que tanto diziam defender, mas sim da própria soberania nacional. 

A instauração de um regime de facto, o decreto que dá “licença para matar” ao exército, a liberação das quotas de exportação, a anunciada privatização de empresas estratégicas, o revanchista massacre branco , redesenho do corpo diplomático, revisão das Relações Internacionais, o reatamento de relações com os EUA, etc., não são atribuições de um “governo de transição”. Esta virada definitiva será a orientação de uma nova ordem imposta que será instaurada com a verdadeira fraude que vem sendo tramada com a nomeação de Salvador Romero, ficha de Carlos Mesa, para o Tribunal Supremo Eleitoral.

Pouco a pouco vai se desmascarando o planejamento golpista. Aplicando diligentemente a lógica fascista, criminalizaram os protestos populares, enquanto santificavam a “kristalnacht” racista que foi desatada pela “juventude cruzenhista”,  “juventude cochala”, “a resistência pacenha”, etc. Hoje perseguem dirigentes populares, sob o qualificativo de “masistas”, acusando-os de sediciosos e terroristas; mas não dizem nada das hordas nazistas juvenis e universitárias que queimaram, destruíram, atacaram e até quase queimaram em vida a autoridades do governo anterior; sem contar que o atual reitor da UMSA havia feito um seguro contra incêndios dias antes da queima de sua casa, ou que os 64 ônibus makatari que foram queimados, estavam em desuso e retirados de funcionamento em um cemitério de sucata. 

Agora seguramente cobrarão substancialmente seus seguros de uma operação planejada que mostra a perversidade de certas pessoas que semearam caos para sacar substanciais lucros de um país em chamas.  A sociedade urbana engoliu o conto das “hordas” que vinham destruir tudo, para justificar a repressão do exército. Essas “hordas” foram, na realidade, os que vieram para apoiar Camacho e Pumari e o assalto golpista, agora abençoados como “defensores da democracia” pelo regime de facto. 

Os mobilizados no depósito de Senkata, estavam há cinco dias no bloqueio, sem polícia nem exército, e nunca lhes ocorreu incendiar os tanques de armazenamento de gás; mas bastou a acusação de terrorismo para que os pacenhos chamassem de “heróis” o exército e a polícia, que produziram 9 mortes e dezenas de feridos. Outra vez, como em outubro de 2003, La Paz se abastece de combustível manchado com o sangue daqueles que deram o peito pela defesa dos nossos recursos. 

Os ingênuos ambientalistas (que não entendem a geopolítica do discurso ambiental e a luta de capitais que funcionalizam até as alternativas energéticas como novos nichos de acumulação) já foram cooptados pela política de “reflorestamento” da Chiquitanía, que dará início à definitiva extensão da fronteira agrícola da soja transgênica, para benefício exclusivo do capital agroindustrial de Santa Cruz que, na verdade, é controlado pelo capital brasileiro e financiado pela Monsanto.

O incêndio premeditado da Chiquitanía serviu para mobilizar interessadamente a juventude urbana em torno à demanda de “ajuda internacional”; graças a essa mediação, desde Jujuy, Argentina, ingressou todo o material logístico e os dólares necessários para comprar grupos paramilitares, sicários travestidos de “juventude democrata”, Comités Cívicos e para os aparelhos coercitivos do Estado. Tudo estava planejado, mas a esquerda, até a acadêmica, estava tão sumida em seu rechaço patológico ao “falso índio presidente” que não viu nada. E continua cega diante do que está vindo. 

A direita já tem o seu programa de governo redigido em Washington, cujos porta-vozes serão Camacho e Pumari: a “federalização” do país, ou seja, a quebra do Estado e a balcanização do país; para que nossos recursos estratégicos nunca mais sejam patrimônio nacional. 

E o pior: esquartejar o espírito plurinacional e impor uma nova Reconquista, que dissemine o “caos construtivo” na região. A Bolívia é o início do golpe da geoeconomia do dólar para todo o continente sul-americano.

Nisso consiste uma “solução final”, desde a Alemanha nazista até a doutrina “core and the gap” do Pentágono e da CIA: desatar o caos indefinido como a nova fisionomia de um mundo sumido no inferno. 

O triste será que, quando acabemos como a Síria, o Iraque, o Afeganistão ou a Líbia, não ficará ninguém com vida para dizer aos insensatos “críticos” de esquerda, o quão profundamente equivocados que estavam.

*Músico, poeta e escritor boliviano

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Rafael Bautista S

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