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Bolívia: seus ditadores, encarcerados por toda a vida

Jorge Mansilla

Tradução:

Jorge Mansilla Torres *

Embaixador Jorge Mancilla Torres, poeta e jornalista boliviano, colaborador de Diálogos do Sul
Embaixador Jorge Mancilla Torres, poeta e jornalista boliviano, colaborador de Diálogos do Sul

A justiça boliviana condenou em maio de 1995 o ex-ditador Luis García Meza a 30 anos de prisão incomutável por seus crimes contra o povo e o Estado. No começo deste século, o Peru julgou e condenou o ex-ditador Fujimori, como a Argentina fez com seus cruéis depredadores militares.

O general Videla foi sentenciado duas vezes à prisão perpétua e morreu na solidão de sua cela algum tempo atrás. Agora, o ex-presidente guatemalteco Ríos Montt anda fazendo passes de mágica para ver se escapa da pena de 80 anos de prisão que lhe foi decretada por seus horrendos crimes de extermínio dos índios. Estes exemplos de dignidade acontecem onde existe memória histórica e quando os povos se obrigam a trocar o rancor pelo fato de se fazer justiça.
Na penitenciária de alta segurança de Chonchocoro, a 3 mil 800 metros no altiplano de La Paz, estará preso García Meza até os seus 93 anos de idade. Com ele, em cela contígua, encontra-se o coronel Luis Arce Gómez, seu ex-ministro do Interior, acusados ambos do assassinato de mais de 500 cidadãos, torturas e perseguição contra outros 4 mil, pelo menos 90 desaparecimentos forçados, assalto a recursos público e tráfico de cocaína a partir da própria presidência da república.
O golpe militar perpetrado em 17 de julho de 1980 – o nono de 11 sangrentas insurreições desde 1964 sob o influxo ianque da guerra fria– tinha como objetivos, entre muitos, impedir a posse do presidente democrata Hernán Siles Zuazo, vencedor das eleições ocorridas 18 dias antes; interromper o julgamento de responsabilidades instaurado pelo deputado socialista Marcelo Quiroga Santa Cruz contra a atroz ditadura fascista do general Hugo Banzer Suárez (1971-78); frustrar a reversão para o Estado das jazidas de hidrocarbonetos e minerais em mãos de transnacionais, e por desígnio do imperialismo iniciar na América Latina a implantação do neoliberalismo.
Aquela aventura militarista teve o descarado apoio da embaixada dos Estados Unidos, do Fundo Monetário Internacional e da ditadura argentina de Videla. Os celebrantes mais visíveis do putsch foram, além da direita reacionária regional, a emissora de TV estadunidense CNN e a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), que disseram que o exército impediu com essa “ação patriótica” a instauração do “castrocomunismo” na Bolívia.
Ao ser derrubado nesse dia o precário governo da presidenta Lidia Gueiler, prima irmã do golpista García Meza, a população saiu às ruas adotando todas as formas de resistência contra os salteadores de sua vontade eleitoral e diante do servilismo desapiedado do exército de uma república decadente. Esse literal Estado falido foi superado com a instauração constitucional, em 2010, do atual Estado Plurinacional da Bolívia.
O regime fascista dos “luises” durou apenas 13 meses, mas causou grandes estragos, como a reativação do comércio internacional da cocaína – prática multimilionária iniciada pelo ditador Banzer nos anos 1970–; a matança indiscriminada de pessoas inocentes; o assassinato e o desaparecimento do corpo de Quiroga Santa Cruz e de líderes políticos e sindicais; a subtração e venda do diário de campanha do Che Guevara; o massacre de oito altos dirigentes social-democratas surpreendidos em uma reunião clandestina; a concessão injustificada a seus pares de uma mina de pedras preciosas; a violação de direitos humanos e a supressão de liberdades com o estado de sítio e o toque de recolher durante cinco meses; o cerco e a invasão de acampamentos mineiros rebeldes nas montanhas andinas; e etc.
Foi nesse tempo que o ministro Arce Gómez pediu à cidadania resistente que “andasse com seu testamento debaixo do braço” (abril 1981). Esse psicopata purgou depois 10 anos de prisão nos Estados Unidos por delitos de narcotráfico e foi extraditado a Bolívia em 2009, onde a justiça o condenou a outros 30 anos de prisão, até 2039.
Quando finalmente, depois de 18 anos de ditaduras militares, os bolivianos recobraram, em 1982, seu direito de exercer a democracia, o imperialismo e seus governos nacionalistas e social-democratas desataram o  neoliberalismo como sistema de governo. Tudo se tornou objeto de privatização. Por volta de 1995, a Bolívia tinha perdido a posse e o manejo de seus recursos naturais e de empresas históricas, ao conjuro da “capitalização”, eufemismo demagógico da simples privatização.
Morre-se quando se deixa de combater e a Bolívia resistiu em pé a tanto temporal adverso. Em pleno neoliberalismo a sociedade civil e suas organizações sociais iniciaram ações reivindicatórias para condenar os culpados de sua desgraça, começando pelos golpistas.

General Luis García Meza paga por seus crimes de narcotráfico e genocídio
General Luis García Meza paga por seus crimes de narcotráfico e genocídio

Foram viabilizados nos tribunais da justiça suprema acusações e denúncias com provas documentadas de centenas de mulheres, órfãos, dirigentes políticos, jornalistas, religiosos e, enfim, sobreviventes dessa “golpívia”.
Pela primeira vez chegou ao público a lista de tiranos, carcereiros, torturadores, defraudadores e paramilitares que serviram os ditadores Barrientos, Banzer, Natush Busch e García Meza, entre muitos.
O julgamento público contra as ditaduras durou quase 10 anos repletos de armadilhas e ardis que, apesar de tudo, foram desbaratados com testemunhos de rajadas de metralhadoras contra multidões, bombardeios aéreos sobre mercados de bairros, justiçamentos a domicílio, cerco e ataque criminoso a fábricas, núcleos de plantadores de coca e centros mineiros, destruição de emissoras de rádio e diários anti-golpistas, etc.
A CIA, a DEA e a Usaid, braços operativos do intervencionismo ianque foram apontados com evidências. Não foram adotadas sanções contra esses organismos de espionagem e repressão, a não ser nestes tempos em que o governo de Evo Morales procede a expulsá-los do território.
Durante o julgamento a que estava sendo submetido na Corte Suprema de Justiça de Sucre, a cidade capital, o ex-ditador García Meza fugiu do país em abril de 1993. Foi descoberto um ano depois no Brasil, com documentos falsos. Foi preso novamente e junto com ele o coronel Gualberto Rico, seu ajudante de ordens, em uma cobertura no Rio de Janeiro. El cruel golpista entregou-se sem resistência, chorando.
Esta fugaz recontagem da crueldade do ogro capitalista propõe dar significado à validade da recordação histórica e pedir que não se perdoe, a título de convivências mal paradas sobre o esquecimento. A revolução comunitária da Bolívia abre seu caminho iluminada pela memória social e pela esperança socialista.
* Jornalista boliviano do La Jornada, México – Colabora com Diálogos do Sul


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Jorge Mansilla

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