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Bolsonarismo e a estratégia de recuperação da hegemonia global de um império decadente

O que acontece no Brasil guarda relação direta com as exigências econômicas, geopolíticas e simbólicas impostas pela ditadura do capital financeiro
Rafael Hidalgo Fernández
Diálogos do Sul Global
Havana

Tradução:

Em junho de 2013, uns dias depois da explosão dos protestos em massa que surpreenderam a muitos no Brasil, inclusive ao próprio governo da época, um amigo me perguntou: “Como você vê tudo isso?”

De acordo com uma velha e saudável prática, evitei opinar sobre assuntos nos quais sua força política tinha implicação direta e fundamental. Optei por abordar o “outro lado da moeda”: o fator externo, sem o qual – enfatizei — todo exercício de interpretação ficaria truncado, “ainda mais por ser o Brasil”. 

Com a confiança da amizade, ele me interrompeu com esta expressão: “não vai me dizer que os gringos estão por trás de tudo isso!” Eu lhe respondi com igual ênfase: “Pois é isso, exatamente, o que eu ia dizer” mas com esse matiz: “os gringos estão também, tem papel protagônico, mas não são os únicos…”.

Em seguida agreguei: “As causas dos protestos são múltiplas e todas têm muitas variáveis associadas, internas e externas, históricas e conjunturais. Para você e para a esquerda da América Latina e do Caribe será fundamental entender bem o que está acontecendo, de forma integral, sem omissões pragmáticas (…). O que acontece no Brasil se irradia de imediato, sobretudo, para a América do Sul”. O raciocínio é válido em relação à realidade política atual. 

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Em seguida lhe argumentei em termos coloquiais os dados, os fatos e as análises que seguem, agora com o estímulo de sua honradez: dois anos depois, após o Congresso Nacional aprovar impeachment que interrompeu o mandato legítimo de Dilma Rousseff, sem haver podido provar contra ela qualquer acusação, escreveu esta nota: “(…) lamentavelmente você tinha razão, esses (impublicável) estão implicados até o pescoço no que aconteceu aqui”. Assim foi e assim continua sendo. 

O que acontece no Brasil guarda relação direta com as exigências econômicas, geopolíticas e simbólicas impostas pela ditadura do capital financeiro

Ilustração: tt Catalão
“A campanha subterrânea dos grupos internacionais se aliou à dos grupos nacionais contra o regime de garantias do trabalho”

Depois do golpe

Três anos meio depois do golpe de 2016, o Brasil avança com celeridade dominado por níveis de ódio e violência que suas mentes mais lúcidas, de todas as filiações políticas, sociais, religiosas e acadêmicas, começam a temer e, felizmente, a alertar e denunciar. Os fatos confirmam que seu sistema político está vivendo uma crise estrutural e integral, ou orgânica, como aduzem alguns desde uma perspectiva analítica gramsciana.

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A nação transita por um processo paradoxal; a partir de certas regras do ordenamento jurídico vigente que estão sendo vulneradas, cai dia após dia, o Estado de Direito e a paz interna. Bolsonaro e o bolsonarismo aparecem como os responsáveis principais e imediatos de tal estado de coisas. Mas isso é só uma parte fundamental da verdade. O país é cenário de uma luta de classes que enfrenta interesses internos e também externos. É um caso teste neste sentido. 

A explicação sobre o que acontece guarda, ao mesmo tempo, uma relação direta e essencial com as exigências econômicas, políticas, geopolíticas e simbólicas do grande capital transnacional e, sobretudo, com as de seu setor hegemônico, o financeiro.

Estes interesses operam de forma direta e via aliados internos, o que não é equivalente a que toda a direita tenha sido cooptada para o plano antinacional em curso. Esta é a fração que poderia ainda apoiar os esforços anunciados para formar uma frente ampla em defesa da democracia. 

Brasil e as prioridades do capital transnacional

Para os representantes governamentais desta elite transnacional, sobretudo para os de seu núcleo hegemônico estadunidense, passou a ser prioritário impedir que o Brasil emerja como uma potência viável no estratégico Atlântico Sul, tal e como advertiu Noam Chomsky[i]

Que dados da realidade, que fatos históricos e que argumentos dão sustentação a esta tese? De maneira sumária podem ser identificados os seguintes, sem a pretensão de que sejam todos. 

O Brasil cujo sistema de democracia liberal burguesa permitiu a aprovação de uma constituição progressista e com formulações avançadas após o fim da ditadura militar instalada em 1964 (pecado 1); a posterior eleição de um operário metalúrgico como Presidente (pecado 2); que possibilitou que ele concluísse seu segundo mandato com 83% de popularidade (pecado 3) e que elegesse sua sucessora com amplos votos (pecado 4).

O país, além disso, que se transforma na sexta economia do mundo sob a presidência desse operário, sem ter produzido mudanças substantivas nos fundamentos da matriz econômica nacional (pecado 5); que à frente de um governo de esquerda e progressista decide impulsionar com êxito uma política internacional de paz e cooperação, ativa e altiva, com resultados construtivos importantes na África, no Oriente Médio e na América Latina e Caribe (pecado 6), e que tirou milhões da extrema pobreza e da pobreza (pecado 7), por tudo isso se transformou em outro “mau exemplo” que era preciso anular, mesmo sem haver transitado, como Cuba ou Venezuela, por caminhos revolucionários. 

“Mau exemplo” e vulnerabilidades

Para anular o “mau exemplo”, a direita internacional e a interna aliada aproveitaram da interdependência do país com relação ao grande capital transnacional, em virtude do alto grau de transnacionalização de sua economia e pelo tipo de inserção que lhe caracteriza na divisão internacional do trabalho.

Sabiam que isso o tornava mais vulnerável a um processo progressivo de desestabilização de amplo espectro nos marcos dos chamados Golpes Suaves, ou para dizer isso em termos mais exatos, segundo as premissas da Guerra não Convencional, elaborada pelos estrategistas estadunidenses para tratar de recuperar a hegemonia global do império em decadência. 

Esta necessidade de quebrar as opções potenciais de desenvolvimento autônomo do Brasil, visto ao calor da situação atual, obedece a necessidades intrínsecas do grande capital (dimensão estrutural-genética); guarda relação com os fatores de poder nacional que esta nação possui em proporções colossais (dimensão histórico concreta); e se explica à luz da política dos Estados Unidos por recolocar a América Latina e o Caribe como fator de contenção a favor de sua geopolítica mundial (dimensão política).

Demandas da ditadura do capital financeiro

Para as demandas expansionistas do grande capital e para sua necessidade de maximizar a quota de lucros, dominar a dinâmica dos processos de concentração da propriedade e da riqueza em um país continental como o Brasil, transformou-se em uma exigência maior, sobretudo após a crise financeira de 2008 e depois do desafiante ascenso da esquerda na região, que durou até 2009. 

No nível global, tais demandas da elite capitalista mundial se correspondem com a necessidade intrínseca de quebrar obstáculos para a reprodução expedita e cada vez mais rápida e segura do movimento dos capitais, com o plano de controlar sem limites os recursos naturais dos países “em desenvolvimento”, assim como com a determinação de subordiná-los de maneira fácil ao objetivo de mercantilizar tudo o mercantilizável neles, o que Williams Robinson chama de expansão intensiva [ii] do capital.

Como parte desta lógica, a elite que a Oxfam identifica como 1% da população mundial, no caso do Brasil decidiu quebrar e/ou enfraquecer seu sistema político, a fim de alcançar 6 objetivos de uma vez, entre outros:

1) controlar o poder executivo com seus próprios representantes (sempre o tiveram nos demais poderes);

2) garantir a máxima rentabilidade possível do capital em um contexto de recursos escassos;

3) eliminar e/ou reduzir em consequência os programas sociais que transferem renda aos mais pobres;

4) restar capacidade interna ao Estado para projetar uma política exterior protagônica e própria;

5) facilitar com isso um realinhamento vassalo do Brasil aos Estados Unidos e seus aliados;

6) golpear os processos de integração afastados dos cânones estabelecidos pela Casa Branca na América Latina e no Caribe.

Brasil: Capital financeiro versus democracia

Debilitar o Brasil como Estado nacional e impedir que seu sistema político eleitoral volte a facilitar a emergência de governos democráticos e progressistas, e de figuras como Lula, explica o plano de truncar as perspectivas de desenvolvimento autônomo do quinto país em extensão do mundo, sexto em população, limítrofe com 10 países sul-americanos, possuidor das principais reservas de água doce do subcontinente, dono de um subsolo que guarda os minerais necessários para os mais avançados ramos do indústria contemporânea, inclusive a petroleira, a petroquímica, a aeroespacial, a de informática e de telecomunicações. 

Danificar o poder nacional do Brasil vai, portanto, muito além de frustrar um projeto de governo marcado por ideias de esquerda e progressistas; aponta a anular, de raiz, toda tentativa de suas elites, tradicionais ou novas, de ter um protagonismo global no sistema de relações internacionais, com um nível decoroso de autonomia. 

A direita internacional sabe perfeitamente que, além de sua classe política desvalorizada ante a opinião pública nacional e internacional, o Brasil é um polo de atração como ator internacional respeitado (salvo com Bolsonaro). Assim foi observado, de maneira marcada, durante os dois governos de Lula e Dilma. 

Sabe mais: conhece que no Brasil, em todos os setores sociais, sem exceção, existem figuras, organizações sociais e instituições que condensam muito talento, alta formação intelectual, demonstrada capacidade de articulação política e decisão de conseguir que o país tenha voz própria no cenário internacional. Isso, portanto, as transforma em um perigo a eliminar e/ou anular, sobretudo as que possuem ideias de esquerda e a convicção de que pela via do capitalismo dependente de hoje não haverá soluções sustentáveis para fazer um novo projeto nacional de desenvolvimento [iii].

Mineração, petróleo e as tensões internacionais

Em um nível mais ligado à história recente, aparece como fator de tensão com as transnacionais dos EUA, Inglaterra e Canadá, a política seguida por Lula nos ramos do setor minero energético, e continuada por Dilma, de utilizar as empresas estatais, e as grandes empresas de capital nacional, como alavancas para um desenvolvimento interno mais autônomo, e como pilares para potencializar os saltos que o país demandava em educação e saúde, neste caso aproveitando a rentabilidade das empresas estatais. 

As petroleiras dos EUA e Inglaterra nunca aceitaram ficar de fora dos enormes lucros contidos nas riquezas do Pré Sal, nem com a decisão dos governos do PT de transformá-las em passaporte para o futuro em matéria de desenvolvimento social e científico-tecnológico.

Não é casual que depois das descobertas petrolíferas de 2006, no Pré Sal, anunciados com entusiasmo por Lula como obra do talento e da experiência acumulada pelos especialistas da Petrobras, em julho de 2008 já a IV Frota dos EUA estava pronta, altaneira, para “proteger” o Atlântico Sul. Leia-se para pressionar o Brasil, entre outros objetivos de alcance maior.

Perigos geopolíticos

Não se deve esquecer a paranoia da Casa Branca diante da presença amiga da China e da Rússia em nossa região. 

Tudo indica, ademais, que a Casa Branca viu como desafios inaceitáveis o protagonismo brasileiro na formação da UNASUL, no fortalecimento do MERCOSUL, na criação do Conselho de Defesa Sul-americano e outras iniciativas de projeção integracionista, tanto na África, visitada 29 vezes por Lula, como na América Latina e no Caribe.

Como assevera um dos acadêmicos mais respeitados do Brasil, Luiz Alberto Moniz Bandeira, ao se referir ao impeachment a Dilma: “Há fortes indícios de que o capital financeiro, ou seja, Wall Street e Washington, nutriram a crise política e institucional, aguçando a feroz luta de classes no Brasil” [iv]. Para ele, além disso, os EUA não só lutam por fortalecer sua “influência global” contra a China e a Rússia, mas sim contra as potências regionais emergentes, como era então o caso do Brasil.

Basta ver como começou a operar o lobby petroleiro tão logo Michel Temer assumiu seu mandato golpista. De imediato tomou força o processo de privatização das empresas estatais mais emblemáticas, EMBRAER e ELETROBRAS incluídas. Seguidamente dinamizou-se a flexibilização das atividades da PETROBRAS, amplamente espiada pelos serviços de inteligência dos EUA durante o mandato de Dilma. Havia chegado a oportunidade para retomar a venda do produto do saque. O entreguismo começou a negar a visão estratégica de Getúlio Vargas com relação à independência energética do país. 

Operação Lava Jato

Para anular dita independência aparece na cena, em março de 2014, uma das maiores fraudes jurídicas do Brasil, o Operação Lava Jato, ou como deveria se chamar, Operação Contra o Brasil (OCB), se se julgam seus efeitos lesivos à economia nacional e às empresas de capital nacional, as quais, além disso, estavam implicadas no desenvolvimento de importantes programas para assegurar a defesa nacional com tecnologia própria, apesar das reservas de Washington e Tel Aviv, ambas capitais muito preocupadas com o programa do submarino de propulsão nuclear, no qual a empresa Odebrecht tinha papel fundamental. Esse tema dá um ensaio.

Hoje existem elementos suficientes para provar que a OCB foi uma elaboração externa, executada por um juiz provinciano ao qual a direita antinacional facilitou todas as prerrogativas para agir e exceder-se em sua atuação, com tal de remover o obstáculo imediato (Lula), a fim de alcançar o objetivo maior: debilitar o Estado brasileiro e subordinar sua política externa às lógicas hegemônicas da Casa Branca. Esta é a “sagrada” missão que Bolsonaro e o bolsonarismo estão cumprindo. 

Tudo indica que os assessores do juiz provinciano no Departamento de Estado dos EUA, quando conceberam a OCB com múltiplos objetivos, levaram em consideração a expressão de Richard Nixon ao general Emílio Garrastazu Médici, em 1971: “Para onde for o Brasil, irá a América Latina” [v].

Em qualquer caso, é evidente que estão dando a este país, especialmente desde 2002, uma atenção mais astuta e eficaz. Estude-se, como exemplo disso, o mandato da embaixadora Liliana Ayalde, em Brasília, hoje com cargo relevante no Comando Sul. 

Sessenta e seis anos depois, continua vigente o que expressou Getúlio Vargas em sua carta testamento de 24 de agosto de 1954: “A campanha subterrânea dos grupos internacionais se aliou à dos grupos nacionais contra o regime de garantias do trabalho” [vi]. Hoje é isto e muito mais.

Notas/Bibliografia

[i] No esforço por precisar o contexto exato em que Noam Chomsky faz esta previsão, “descubro” um texto do teólogo Leonardo Boff que alude a ela (A crise brasileira e a geopolítica mundial/25.4.16). Por seu conteúdo deveria ser leitura obrigatória para estas análises e para compreender a perspectiva estratégica do sábio estadunidense. Este, junto ao analista político brasileiro Luiz A. Moniz Bandeira, fez a asseveração nos marcos de um debate no qual foi avaliado o significado geopolítico da presença do Brasil nos BRICS.

[ii] William Robinson analisa com precisão os processos de metamorfose do que chama de “capitalismo global”. Seus enfoques permitem compreender melhor as razões “globais” que estão implicadas na atual crise político do Brasil. Ver Ver “Una teoría sobre el capitalismo global: producción, clases y Estado en un mundo transnacional. Ediciones desde Abajo, Bogotá. DC. Colombia, junio 2007

[iii] No campo das forças políticas de esquerda, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) tem elaborado importantes enfoques sobre o tema. No nível dos movimento sociais, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) trabalha em similar direção. O tema é objeto de atenção crescente da esquerda brasileira.

[iv] Ver en “El Golpe y la Geopolítica. Entrevista de Sergio Lirio a Luiz. A. Moniz Bandeira. Carta Capital 17.5.16

[v] Agência Estado 09 de Maio de 2002/16h07.

[vi] En www.pdt.org.br-/index,php/carta testamento-de-getulio-vargas-63…

Rafael Hidalgo Fernández, Sociólogo e analista político cubano


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Rafael Hidalgo Fernández

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