Há método e estratégia na loucura de Bolsonaro. Ele não age como todos os outros presidentes da Nova República que tentaram construir governabilidade e maioria social, mas sim dirigindo-se a uma minoria extremista, com o objetivo de radicalizá-la e para alimentar um tensionamento constante na sociedade. No fundo, Bolsonaro quer uma saída autoritária e uma ruptura institucional no país. A avaliação é de Guilherme Boulos, candidato do PSOL à presidência da República em 2018 e uma das lideranças do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Em entrevista ao Sul21, Boulos faz um balanço dos oito primeiros meses do governo Bolsonaro, chama a atenção para as táticas militares usadas pelo atual presidente em sua ação política (como a do bombardeio de saturação) e aponta o que considera ser o principal desafio para a esquerda e a oposição em geral nos próximos meses:
“Depois de oito meses, nós já percebemos como é que eles agem. Se, num primeiro momento, existia, para usar uma palavra do Moro, a escusa desse método ser uma novidade, agora não existe mais. O caminho para a esquerda brasileira agora é criar um movimento contra o governo Bolsonaro como um todo. Não dá para criar um movimento em torno apenas de agendas específicas do governo, pois ele trata dessas agendas adotando a tática do bombardeiro de saturação. Se você fica só correndo para apagar incêndios dessas agendas específicas, você acaba perdendo o foco. Precisamos criar um movimento que diga ‘Chega de Bolsonaro’, um movimento nas ruas para enfrentar e derrotar o governo Bolsonaro, a sua agenda e a sua política.”
Sul21: Estamos completando quase nove meses de governo Bolsonaro. Como você definiria esse governo e a situação que o Brasil vive hoje?
Guilherme Boulos: Já ficou muito claro que o Bolsonaro tem um projeto de destruição nacional. Ele não tem um projeto para governar o Brasil, para construir maiorias na sociedade ou para construir um diálogo e algum tipo de coesão institucional. Ao contrário, o projeto dele é de destruição. Para tanto ele usa inclusive táticas militares de guerra que utiliza recorrentemente no seu discurso e na sua prática política para atacar pilares historicamente construídos na sociedade brasileira.
Gostaria de destacar alguns pontos que considero especialmente graves e que apareceram na agenda neste período. O primeiro diz respeito à soberania nacional. O governo que se elegeu com o lema ‘Brasil acima de tudo’ é o governo mais lesa pátria da nossa história recente. Entregou a base de Alcântara, no Maranhão, fez um discurso patriótico em relação à Amazônia, mas, pouco antes, disse que pretendia explorá-la conjuntamente com os Estados Unidos, promoveu um alinhamento incondicional da nossa política externa, subordinando-a ao governo de Donald Trump, e está entregando o pré-sal e outros recursos ao capital estrangeiro. É um governo de entrega e destruição nacional, portanto.
Além disso, temos um ataque brutal aos direitos humanos e sociais, a toda rede de direitos que foi construída em torno da Constituição de 1988. O que o Brasil teve de início de Estado Social está sendo aceleradamente desmontado. Atinge também a legislação trabalhista, que é muito anterior à Constituição de 88. A proposta do governo Bolsonaro incluiu o fim do descanso remunerado aos domingos. Ele fala em legitimar o trabalho infantil, em combater os mecanismos de prevenção e punição do trabalho escravo. A tal da carteira verde amarela representa o fim de qualquer direito. Tudo isso se expressa, desde a Reforma Trabalhista aprovada pelo governo Temer, no tipo de emprego que tem sido gerado no Brasil. Mais de 80% dos empregos gerados nos últimos dois anos são informais e precários.
A Reforma da Previdência aprovada, ainda que tenha sido menos ruim que a proposta original de Paulo Guedes, é muito perversa, fazendo com que a Previdência atue como mais um elemento concentrador de renda e não distributivo. Isso terá um impacto na vida das pessoas. Os trabalhadores mais pobres perderão pensão por morte, aposentadoria por invalidez, vão se aposentar mais tarde ganhando menos.
Por fim, temos um profundo ataque à democracia no brasil. O Bolsonaro é, sim, uma ameaça à democracia. Democracia não significa meramente respeitar o jogo eleitoral. É uma prática cotidiana que envolve respeitar a oposição, os direitos e as liberdades. A atuação do governo Bolsonaro é predatória neste sentido. Ele ataca e desrespeita as oposições, defende os valores e a memória da ditadura, chama o Ustra de herói nacional, ofende a memória dos perseguidos e mortos pela ditadura, como foi o caso de Fernando Santa Cruz e do pai da ex-presidente chilena Michele Bachelet. Ele também legitimou aquele tuite desastroso do filho Carlos Bolsonaro dizendo que não há mudanças rápidas pela via da democracia. A todo momento, ele dá um passo além no sentido de testar o ambiente democrático brasileiro, já tão deteriorado.
Por outro lado, não dá para falar sobre o que representam esses oito meses e meio de governo sem também constatar o desgaste acelerado de Bolsonaro e do seu grupo político. Em oito meses, ele perdeu mais da metade do seu capital político. No dia 1° de janeiro, ele tinha 60% de aprovação. Hoje tem 29%. Isso é resultado de sua prática de governar acirrando o núcleo mais raivoso da sua torcida organizada. Ele não governa para o povo brasileiro. Você já ouviu o Bolsonaro falando alguma vez sobre emprego ou sobre educação, que não fosse sobre cortes, ideologia de gênero ou para atacar professor? Alguém já viu o Bolsonaro falar sobre o SUS? Os temas essenciais que interessam ao povo brasileiro estão fora da agenda dele.
Você se referiu ao grupo político de Bolsonaro. Em meio a esse processo de perda de apoio e dissidências, quem é mesmo o grupo político de Bolsonaro hoje?
O governo Bolsonaro é uma aliança precária de um amontoado de grupos políticos e econômicos. Os principais grupos econômicos que sustentam o governo Bolsonaro são o capital financeiro, que tem Paulo Guedes como seu maior representante, e o agronegócio que está no governo representado pela Teresa Cristina e está sendo amplamente atendido da maneira mais selvagem com liberação desenfreada de agrotóxicos, mineração em terras indígenas e devastação da Amazônia.
Foto: Giulia Cassol/Sul21 “A pauta da defesa da liberdade de Lula é parte da agenda democrática do país”
Dentro desse grupo, temos também o lavajatismo representado pelo Moro no governo, que está em crise e em conflito aberto com Bolsonaro. Bolsonaro antecipou um conflito que poderia acontecer só na véspera de 2022, ao tirar o diretor da Polícia Federal no Rio de Janeiro, para proteger o Flavio, e ameaçar tirar o diretor geral da Polícia Federal, ele diminuiu a autonomia do Moro. Eles estão em conflito, mas é uma ala que ainda está no governo. Moro, mesmo humilhado e enfraquecido, segue no governo.
Há ainda a ala dos generais da reserva, onde está um setor das forças armadas, sobretudo do Exército. A Aeronáutica e a Marinha tem uma presença muito menos expressiva. As forças armadas brasileiras não são tão ruins quanto o governo Bolsonaro. Quem está no governo é um setor mais autoritário e menos nacionalista do Exército. O general Heleno é uma expressão disso. É importante não esquecer que ele foi ajudante de obras do general Silvio Frota, no ocaso da ditadura militar. Frota, que tentou dar um golpe no Geisel, porque ele não estava suficientemente alinhado com os Estados Unidos e queria fazer a transição para a democracia. O Bolsonaro é desse mesmo setor. É daí que essa turma vem. É a turma do porão.
E temos também o que poderia ser chamado de bolsonarismo duro, que é esse núcleo duro para quem Bolsonaro fala o tempo todo. A família Bolsonaro faz parte desse grupo, junto com essa figura estarrecedora que é o Olavo de Carvalho e algumas lideranças evangélicas que, por uma pauta ultraconservadora ligada aos costumes, acabam se alinhando ideologicamente ao bolsonarismo mais duro. Bolsonaro está privilegiando esse núcleo duro em detrimento das outras alas do governo, o que também tem gerado conflitos internos e constrangimentos.
Há uma estratégia por trás dessa escolha em privilegiar esse núcleo duro?
Eu acho que tem uma estratégia. Essa é uma das grandes perguntas: para onde vai o governo Bolsonaro? O que Bolsonaro quer com isso? Todos os outros presidentes da Nova República tentaram construir governabilidade e maioria social. Alguns conseguiram e outros não. Alguns caíram por não conseguir, mas todos fizeram um esforço para ter maioria parlamentar, para ter uma relação com o Judiciário e, sobretudo, com a sociedade. Se Bolsonaro faz uma besteira e a sociedade rejeita, ele dobra a aposta. Ele indica o filho embaixador, a própria base dele rejeita, 70% da sociedade brasileira é contra e ele triplica a aposta, suspende outras pautas no Senado para poder priorizar a aprovação do filho. Para onde isso leva? Perda de apoio social, que já está acontecendo, não construção de uma base de sustentação parlamentar, o que já aconteceu, e um tensionamento constante do país.
As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.