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ToggleSe a inquilina do Palácio de Governo decidisse falar com os jornalistas, estes poderiam perguntar a ela por que autorizou o ingresso no Peru de 600 soldados da Marinha dos EUA com armamento de guerra, helicópteros, aviões e navios, além de outros apetrechos de ordem militar. Ela poderia recordar o Ouvidor Zárate e dar uma resposta concreta: “por 3 razões”. E se insistissem em perguntar quais eram essas razões, a senhora aludiria ao relato de Ricardo Palma em suas saborosas Tradições Peruanas: por medo, por medo e por medo.
“Medo do quê?”, poderiam perguntar. Então ela se envolveria na torrente de palavras confusas à qual costuma recorrer quando não tem nada a dizer nem encontra motivo para falar.
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Poderia citar a greve decretada pelo setor do transporte, as mobilizações convocadas pelas Frentes Regionais no interior do país, as marchas e plantões organizados na capital, o bloqueio de estradas e outras vias de comunicação, e até a ofensiva desatada pela delinquência comum, que se expressa em atos de extorsão, assassinato por encomenda, assaltos à mão armada e outras modalidades predominantes no Peru de hoje.
Em relação a tudo isso, ela tem medo, um pânico que a faz cambalear. Porém, segue desrespeitando as normas legais e os princípios que a obrigam a prestar contas de sua gestão, ainda que esta tenha tido origem duvidosa.
Por isso, os soldados ianques e todo o seu armamento. E por isso também a mobilização de 14 mil efetivos, entre policiais e soldados, que ela ordenou para garantir “a segurança” da cúpula recente, a chamada APEC.
Presença antiga
A presença de tropas norte-americanas em nosso território é antiga. De fato, no norte do país, existiu desde os anos 1930 do século passado a Base de El Pato. Mais recentemente, e para não perder o hábito, o governo peruano aceitou a Base de Santa Lucía, na selva, que ainda hoje opera sob o pretexto de combater o narcotráfico.
Mas devemos lembrar também que, nos anos 1960, quando a guerrilha do MIR iniciava suas operações, Belaunde Terry ordenou o uso de helicópteros norte-americanos para incendiar as montanhas e assegurar o aniquilamento de combatentes e moradores, que pereceram sem que nunca fossem investigadas as circunstâncias de tais crimes. Essas bombas, similares às que o exército ianque usou no Vietnã, destruíram aldeias e causaram perdas inestimáveis às comunidades locais.
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Depois, no marco do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca – o sinistro TIAR –, as Forças Armadas dos Estados Unidos operaram aqui como em sua própria casa, legitimadas pelos governos de Toledo, García, Humala e PPK. Por isso, mais recentemente, sob a administração de Boluarte, os soldados da marinha agiram livremente. Até Laura Richardson, a poderosa generala à frente do Comando Sul dos Estados Unidos, esteve várias vezes no Peru para “inspecionar” tratados desse tipo.
O que diria a “Grande Imprensa” se, em vez de soldados Made in USA, viessem, por exemplo, soldados cubanos ou venezuelanos, enviados por seus respectivos governos? Também nesse tema prevalece o duplo padrão: se os estadunidenses o fazem, é bom, mas, se outros o fazem, é péssimo.
Medo do povo
O que ocorre, no fundo, é que a classe dominante tem medo do povo. Aterrorizam-se com a possibilidade de que as massas despertem da letargia em que estão imersas e decidam se tornar protagonistas de primeira ordem, forjando uma nova história. Cada uma das greves recentes, em que os trabalhadores dos transportes, somados aos comerciantes, tiveram um papel decisivo, a enlouquece. Por isso, em cada uma de suas mensagens, a única coisa que faz é tentar atenuar a força de um movimento que sabe que a deixa isolada.
E por isso sua insistência em exigir que as mobilizações sociais sejam “pacíficas”. Nada os assusta mais do que “a violência”. E não se referem à violência terrorista, mas à popular, que é a que mais temem. Ficam arrepiados só de imaginá-la. E isso, como se a jornada de 8 horas no Peru tivesse sido conquistada com “métodos pacíficos”; como se a aposentadoria na França de 1968 tivesse sido alcançada apenas com “diálogo”, como se os trabalhadores nunca tivessem precisado de marchas, mobilizações e greves para obter a reintegração de seus dirigentes demitidos ou o aumento de alguns centavos no salário.
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A história da humanidade, que é a história da luta de classes, confirma que os “métodos pacíficos” são válidos na medida em que se baseiam em ações de força. Sem elas, carecem de sentido e não serviriam para alcançar objetivo algum.
Voltamos a ver isso recentemente: em Arequipa, houve 5 feridos por disparos policiais de balas de borracha; em Lima, dezenas de feridos, agredidos e detidos; no norte do país, as pessoas foram atacadas com gás lacrimogêneo e agredidas; e, no sul andino, nem se fala. Essa região — para Dina — “não é o Peru”.
A recente paralisação de 72 horas, realizada em paralelo à cúpula da APEC, conseguiu chamar a atenção do mundo, apesar de ter sido “escondida” pela Grande Imprensa. Foi tão intensa que rompeu as barreiras de “segurança” impostas contra ela. Outra vez se confirmou que a palavra do povo é mais poderosa do que o silêncio dos opressores.
Além disso, a presença dos presidentes da China e do Vietnã não pôde ser ignorada. No centro da APEC, esteve sua presença, que não pôde ser desprezada, mas que causou medo, como as 3 razões do Ouvidor.