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Não há dúvida de que vivemos tempos de grandes ameaças às conquistas democráticas que América Latina acumulou ao longo dos últimos anos, desde o início do século XXI. A um ciclo de expansão da participação social em projetos políticos populares, de ampliação do gasto público em políticas sociais (mesmo quando não se avançou em mudanças econômicas estruturais) e de importantes avanços nos processos de integração regional, ameaça impor-se um período de restauração conservadora no continente.
Monica Bruckmann*
Trata-se de um retorno a um pensamento econômico profundamente falido em suas próprias bases, o neoliberalismo do século XX, e sua provada receita econômica que extrapolou os níveis de pobreza e miséria na região e reduziu as economias de América Latina a níveis recessivas. Trata-se do regresso à rupturas do estado de direito e o voto popular, já não pela via dos golpes militares, mas através do uso de representações parlamentares profundamente questionáveis articuladas com poderosas campanhas mediáticas desenvolvidas pelos monopólios comunicacionais. Trata-se de um boicote sistemático aos projetos de integração regional e às diversas tentativas de elaboração estratégica para retornar a uma política de realinhamento com a visão hegemônica de Estados Unidos. Trata-se de utilizar o conceito de autonomia para suprimir o domínio democrático de instituições absurdamente poderosas, como os Bancos Centrais, cujos técnicos pretendem estar acima de qualquer política pública sujeita a controle democrático.
A pergunta chave é: Quanto tempo poderá durar essa ofensiva?
É pouco provável que este ciclo de restauração conservadora se estenda por muito tempo. São várias as razões que conduzem a essa análise. Em primeiro lugar, o fato de que as classes dominantes e os setores políticos que promovem este processo, se articulam a uma potência hegemônica decadente. Os principais indicadores da economia mundial mostram que Estados Unidos vem perdendo, desde há algum tempo, sua condição de maior economia do mundo. Segundo o Fundo Monetário Internacional, em 2014 o Produto Interno Bruto de Estados Unidos, medido em dólar estadunidense por poder paritário de compra (PPP), tinha passado a segundo lugar no nível mundial, depois da China. Em 2015 a diferença entre o PIB chinês e o de Estados Unidos se amplia. As projeções de PwC(1) indicam que em 2030 a economia estadunidense representará apenas 66% da economia chinesa e em 2050, o PIB de Estados Unidos estará em terceiro lugar, depois da Índia e da China. Os indicadores de ciência e tecnologia mostram o deslocamento dos centros mais dinâmicos de Estados Unidos e Europa para o sudeste asiático. Talvez a única dimensão em que Estados Unidos permaneçam ainda com uma hegemonia inquestionável seja no âmbito militar, daí seu grande interesse em negociar com a UE um acordo contra “a ameaça russa” e o “terrorismo” que signifique a obrigatoriedade de destinar o 2% do PIB dos países do bloco ao gasto militar. Vale observar que esse 2% está muito acima dos níveis de gasto militar da maioria de países da UE. Evidentemente este acordo tem como finalidade dinamizar a indústria militar dos Estados Unidos.
Este é, talvez, o mais grave erro de cálculo das classes dominantes da região, pouco interessadas em uma análise mais pertinente da economia e da geopolítica mundial e profundamente subordinadas a interesses, sobretudo ideológicos, que resultem em benefícios econômicos particulares
A segunda razão que propomos para uma duração efêmera do ciclo de restauração conservadora é o potencial da resposta popular e a consciência política acumulada ao longo de mais de uma década de participação da população organizada, as comunas, os movimentos populares em diferentes esferas de gestão de governo e tomada de decisões nas várias e diversas experiências de construção do poder popular na região. Quanto maior o desenvolvimento de projetos neoliberais articulados com a contenção de gasto pública, a redução do investimento em políticas sociais, a criação de estruturas normativas que legitimem a perda de direitos trabalhistas e civis, a perda da soberania, a redução dos serviços de saúde e educação, et., mais rápido será o desgaste político e a corrosão da base social que, eventualmente, apoiar esse processo. Daí a necessidade de restaurar práticas autoritárias, antidemocráticas e de criminalização dos espaços e mecanismos democráticos.
Do anterior se deduz que uma análise histórica de longo prazo talvez seja uma das dimensões analíticas mais contundentes para esclarecer as tendências da conjuntura latino-americana que se inicia em fins de 2015, com a eleição de Maurício Macri na Argentina, seguida da destituição da presidenta Dilma Rousseff no Brasil e o recrudescimento das tentativas para derrubar o governo de Nicolás Maduro na Venezuela.
O conteúdo democrático das lutas na América Latina
América Latina tem uma vasta tradição de lutas democráticas, desde o período colonial em que os poderes locais chegaram a exercer um influência significativa e colocar em risco o poder colonial, através dos conselhos de comunitários (recorde-se o levantamento das comunidades no Paraguai 1717-1735 ou a Rebelião de Tocuyo na Venezuela 1749-1751, por exemplo) As lutas pela independência resultaram em governos republicanos com poucas exceções, como o caso do Brasil.
Durante todo o século XIX a luta pelo fim da escravatura e o servilismo foi permanente e alcançou sua culminação com algumas das vitória mais importante como foi a descolonização de Cuba e de Porto Rico, a que Estados Unidos tentou esmagar em nome de sua participação na “guerra contra Espanha”. Essa estratégia de anexação teve um êxito relativo em Porto Rico e com uma forte oposição em Cuba, cujo processo abriu caminho, 50 anos depois, ao triunfo do movimento guerrilheiro comandado por Fidel Castro.
Dessa maneira, a soberania dos povos se aproxima da soberania nacional uma vez que a autonomia dos Estados Nacionais é condição para o exercício da soberania dos povos. É importante destacar que, tanto a soberania dos povos como as soberanias nacionais em nosso continente se integram fortemente à ideia de uma soberania regional. A força da figura de Bolívar é prova da dimensão profunda do ideal de soberania regional contra um poder considerado ameaçador, que seria o de Estados Unidos quando se apodera de terras mexicanas e levanta a doutrina Monroe como base de uma visão hemisférica Pan-americanista que se opõe drasticamente à unidade sub regional.
É muito importante destacar que as lutas pela democratização e contra as ditaduras nos anos 1950, 60 e 70 tiveram um forte conteúdo regional,. A manutenção do processo revolucionário em Cuba se articula com o ideal martiniano de “Nossa América”. Ideal contra quem se levantou a Organização de Estados Americanos (OEA), sob a imposição de Estados Unidos, quando promoveu a ruptura de relações de todos os países da região com Cuba, exceto o México. Historicamente, a afirmação de projetos de direita no continente, sempre passaram pela negação e o combate à unidade continental.
No âmbito econômico, os projetos de desenvolvimento envolvem sempre uma cooperação regional que enfrentou dificuldade em realizar-se pela oposição sistemática de Estados Unidos e os instrumentos criados ao longo do século XX no contexto do desenvolvimento pan-americanista. Só no início do século XXI se pode verificar que essa acumulação de lutas históricas consegue se materializar na criação de espaços continentais de integração como a União de Nações Sul-americanas (Unasul) em 2007 e a Comunidade de Estados de América Latina e Caribe (Celac), em 2012, com um elemento crucial para o êxito da cooperação continental que é a participação de todos os países do Caribe que já tinham alcançado uma cooperação inter-regional importante, através da Comunidade do Caribe (Caricom).
Esta integração econômica requer uma integração política fundada em governos populares e em sistemas democráticos que envolvam a participação direta das comunidades, da sociedade civil e dos povos na gestão do Estado. A construção de Estados Plurinacionais na Bolívia e no Equador, ao incorporar diversas esferas do poder comunitário ao poder do Estado, não só representa um questionamento ao modelo de Estado moderno europeu (e estadunidense) que inspirou a formação dos Estados nacionais na América Latina, mas que nos coloca diante da possibilidade de ressignificar a democracia representativa ao incorporar poderosos instrumentos de participação popular. Esse conjunto de experiências encontra uma expressão mais radical nas tentativas de construir um poder popular que emerge das organizações comunitárias de base, como elemento estruturante de uma nova concepção de democracia participativa. A compreensão desses processos políticos requer a formulação de novos enfoques teóricos sobre o Estado na América Latina e tem aberto uma ampla discussão em torno a um novo constitucionalismo.
As experiências de participação comunitária na Venezuela, muito próximas das de Cuba, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra no Brasil e a Via Campesina, tem influído nos programas e projetos políticos em todo o continente, como o Orçamento Participativo no Brasil e experiência de autogestão na Argentina, Nicarágua, etc.. Como expressão desse movimento “de baixo para cima”, podemos destacar em particular a criação do Foro Social Mundial, que elevou essa visão regional à esfera do debate mundial.
Todas essas experiências demonstram as inquietações sociais diante das debilidades da democracia representativa para atender às demandas das forças populares. Tema que está em discussão a partir de mobilizações de massa nos últimos anos no Brasil, por exemplo, e em outras partes da região, que expressam uma perda de legitimidade das formas de representação política.
Ameaças e resistências
- Os “golpes brandos” e a criminalização da política
Nesse contexto, é previsível o amplo deslocamento de ações sistemáticas das classes dominantes e centros hegemônicos do poder mundial para inviabilizar e impedir a consolidação dos avanços democráticos na região. A ofensiva antidemocrática iniciada com o fracassado golpe de Estado contra o governo constitucional de Hugo Chávez na Venezuela (11 de abril de 2002), encontra seu auge no novo ciclo de restauração conservadora que tem início em fins de 2015.
Fracassados o golpe de Estado na Venezuela, a tentativa de golpe de Estado no Equador (2010) sob o comando de setores da Polícia Nacional e a preparação de um confronto armado na Bolívia, se elabora uma intervenção mais sofisticada com o mesmo objetivo de restaurar o projeto neoliberal. Pode-se afirmar que essa estratégia começa a ser desenhada na experiência de Honduras que demonstrou que uma aliança do Parlamento com o Poder Judiciário, mesmo com pouca participação militar mas contando com poderoso instrumento dos meios de comunicação monopolizados, consegue derrubar o governo de Manuel Zelaya (2009). Essa mesma experiência foi repetida no Paraguai (2012), onde as instâncias de integração sul-americana, particularmente a Unasul, não conseguiram mudar o rumo do processo golpista. No caso do Brasil, imediatamente depois de uma derrota eleitoral da direita, instala-se um processo de destituição da presidente Dilma Rousseff, que utiliza uma aparência legal através de uma combinação de processos jurídico sem fundamento, articulação sistemática de lobbies empresariais e políticos, manipulação de movimentos de rua e a coordenação de todo o sistema midiático multimídia,. Assim se consegue concretizar um golpe de Estado institucional com a destituição da presidenta da República sem a comprovação de crimes.
- A restauração neoliberal
Diante da expansão dos governos populares do século XXI, os representantes do grande capital se empenharam em uma ação sistemática com o objetivo de restaurar o projeto neoliberal. Em primeiro lugar está o convencimento de que a hegemonia de Estados Unidos sobre o sistema mundial e’, e deve ser mantido, diante da expansão econômica, política e ideológica originada nas regiões consideradas periféricas. Esta negação sistemática dos fatos conduz à ideia de restauração da hegemonia estadunidense como princípio ideológico. Em segundo lugar, a tentativa de preservar o papel determinante do chamado “livre mercado” apoiado na ideia do intercâmbio entre produtores privados organizados pela mão invisível do mercado. Essa visão ignora o papel fundamental dos monopólios privados e da intervenção estatal como os organizadores de um mercado mundial que determina cada vez mais os mercados nacionais e locais.
O sistema que se estrutura depois da Segunda Guerra Mundial, sob a liderança do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial é concebido como uma forma de viabilizar economias de livre mercado quando de fato são gigantescas formas de intervenção do Estado, especialmente sobre as economias periféricas e dependentes., Em terceiro lugar, diante das mudanças de correlação de forças e das estratégias geológicas de alcance regional que se desdobram cada vez mais em estratégias mundiais, o centro do sistema tenta garantir sua hegemonia através de ações militares, atos de força e controle ideológico que tem um alto custo econômico, financeiro e humano.
Quarto, ao ignorar os interesses de amplos setores da população afetados por essas políticas e desprezar sua capacidade de reação, configura-se uma visão de mundo e um sistema irracional que colocam em risco a sobrevivência da humanidade, seja através da crescente militarização e das guerras permanentes, seja através de uma capacidade imensa de destruir o meio ambiente e o planeta.
Recolonização e militarização dos territórios
A expansão da demanda de recursos naturais no nível mundial, aprofunda essas contradições. A disputa pela acesso, estão e apropriação de recursos naturais estratégicos se converte num elemento central da acumulação capitalista que privatiza e financeiriza a natureza. A visão estratégica de Estados Unidos, que estabelece que o acesso e gestão de recursos naturais é uma “questão de segurança nacional” que garanta “a saúde de sua economia e de sua população”, tem sido capaz de articular uma estratégia muldimensionada de apropriação de recursos naturais de âmbito global, na medida em que as principais reservas dos mesmos estão fundamentalmente fora de seu território continental e de ultramar. A partir dessa visão, Estados Unidos tem empenhado um conjunto de políticas de recolonização dos territórios e dos países que detêm esses recursos.
Na América Latina temos inúmeros exemplos da posta em marcha dessa estratégia que combina instrumentos militares, políticos, diplomáticos e econômicos e cujos operadores, as empresas transnacionais que atuam no setor, desenvolvem também estratégias globais (2). O ciclo de restauração conservadora na América Latina tem colocado, como um dos principais objetivos de seus programas, a articulação dos governos para essa visão estratégica de Estados Unidos, através de uma política sistemática dirigida a debilitar os processos de integração regional que se desenvolveram no marco de uma nova visão de soberania em relação ao aproveitamento e gestão desses recursos.
Nesse contexto se coloca a necessidade de um debate sério para analisar as tendências da conjuntura atual na América Latina e elaborar uma agenda regional que articule a ação das forças progressistas diante das ameaças às conquistas populares e a restauração do projeto neoliberal que unifica os interesses da direita.
*Monica Bruckmann é socióloga, professora da Universidade Federal de Rio de janeiro, diretora de pesquisa da Cátedra UNESCO sobre Economia Global e Desenvolvimento Sustentável, Reggen, e presidenta da ALAI.
[1] PwC: Will the shift in global economic power continue? Febrero de 2015.
[2] Véase: BRUCKMANN, Monica. Recursos naturales y la geopolítica de la integración sudamericana. Editorial de la Vicepresidencia de Bolívia: La Paz. 2016.
Artículo publicado en la Revista América Latina en Movimiento: Democracia en jaque 19/10/2016
http://www.alainet.org/es/articulo/181372